Noemisa Batista dos Santos (2 de agosto de 1947, Caraí, MG — 10 de abril de 2024, Caraí, MG), mais conhecida como Mestra Noemisa Batista, ou apenas Noemisa Batista, foi uma ceramista e escultora brasileira. Reconhecida como uma das maiores expoentes da arte popular do Vale do Jequitinhonha, Noemisa aprendeu a trabalhar com o barro ainda na infância, orientada por sua mãe, Joana Batista, também ceramista, responsável pela criação da tradicional moringa feminina com três bolas. Sofreu influência de vivências comunitárias e pelo universo feminino rural, além de integrar uma rede de mestras ceramistas do Jequitinhonha que incluía outras artistas populares como Ulbana de Tal e Maria da Soledade. Suas obras destacam-se por representar cenas do cotidiano, festas religiosas, maternidade e figuras femininas detalhadas, com traços expressivos, roupas adornadas e sutis toques de cor, mantendo o barro natural como base. Recebeu reconhecimento nacional e internacional, participando de exposições como Brésil – Arts Populaires no Grand Palais (Paris, 1987) e a Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 Anos (São Paulo, 2000). Suas peças integram acervos de instituições como o Museu do Folclore Edison Carneiro (RJ), o Museu da Casa do Pontal (RJ) e o Museu de Arte Popular Brasileira, em João Pessoa (PB), além de diversas coleções privadas.
Noemisa Batista dos Santos | Arremate Arte
Nascida por volta de 1947 em Caraí, município do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Noemisa Batista dos Santos, conhecida como Mestra Noemisa Batista, construiu uma das trajetórias mais emblemáticas da arte popular brasileira. Filha de Joana Batista, ceramista reconhecida por suas moringas femininas com três bolas — um ícone visual da tradição ceramista local —, Noemisa cresceu em um ambiente no qual o barro não era apenas matéria-prima, mas expressão cultural, memória familiar e resistência feminina.
Desde muito jovem, acompanhava o trabalho da mãe, absorvendo as técnicas tradicionais de modelagem enquanto desenvolvia um olhar atento ao cotidiano das mulheres e comunidades ao seu redor. O saber ancestral, transmitido oralmente e pelas mãos, foi a base de sua formação, mas o que Noemisa fez com esse legado a tornou única: em vez de apenas replicar formas consagradas, ela passou a moldar cenas inteiras de vivência rural — festas religiosas, procissões, batizados, casamentos, mães com filhos, lavadeiras, mulheres sonhadoras. Suas peças, quase sempre figurativas e narrativas, traziam o povo do Jequitinhonha à tona, com detalhes minuciosos, gestos delicados e uma expressividade profundamente poética.
A artista não apenas criou personagens; ela moldou vidas. Suas figuras femininas, muitas vezes esculpidas com vestidos rendados, colares, brincos e cabelos trançados, revelam uma estética própria, que valoriza a beleza do barro natural com pequenas intervenções de cor, geralmente em tons suaves. A paleta usada era comedida, mas estrategicamente aplicada para acentuar emoções, elementos simbólicos ou peças do vestuário. Em muitas esculturas, Noemisa se autorretratava: uma mulher de feições serenas, quase contemplativas, revelando não apenas seu domínio técnico, mas uma introspecção rara na cerâmica figurativa popular.
Seu trabalho começou a ganhar notoriedade nacional a partir dos anos 1980, quando pesquisadores, curadores e colecionadores voltaram seus olhares para o Vale do Jequitinhonha. Em 1987, participou da mostra internacional Brésil – Arts Populaires, no Grand Palais, em Paris, projetando sua arte para além das fronteiras do Brasil. No ano 2000, foi uma das artistas destacadas na Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 Anos, realizada em São Paulo, evento que reafirmou sua importância dentro do panorama da arte brasileira. Ao longo das décadas seguintes, Mestra Noemisa consolidou-se como referência absoluta da cerâmica de tradição popular, sendo reconhecida também como uma voz feminina potente dentro de um campo muitas vezes dominado por nomes masculinos.
Suas obras integram os acervos de instituições de prestígio, como o Museu do Folclore Edison Carneiro (Rio de Janeiro), o Museu da Casa do Pontal (Rio de Janeiro), e o Museu de Arte Popular Brasileira, no Centro Cultural São Francisco, em João Pessoa. Cada peça sua carrega não apenas uma assinatura artística, mas uma crônica silenciosa sobre a vida no sertão mineiro, marcada por fé, afeto e resistência.
Apesar do reconhecimento crescente, Noemisa sempre permaneceu em Caraí, fiel às raízes e à simplicidade de sua vida no interior. Recusou-se a transformar sua arte em produto de massa e nunca deixou de moldar com as próprias mãos, mantendo um processo manual e íntimo, em que cada escultura nascia do barro e do silêncio de sua casa-ateliê.
Noemisa Batista dos Santos faleceu em sua cidade natal, em 10 de abril de 2024, deixando um legado artístico inestimável e uma memória viva que segue inspirando novas gerações de ceramistas, pesquisadores e amantes da cultura brasileira. Sua trajetória é hoje reconhecida como símbolo da força criativa do Vale do Jequitinhonha e da centralidade das mulheres na preservação das tradições culturais do país.
Noemisa Batista dos Santos | Itaú Cultural
Noemisa Batista dos Santos (Caraí, Minas Gerais, 1947). Ceramista. Artista da região do Vale do Jequitinhonha e com uma produção figurativa, suas peças representam cenas do cotidiano e ritos católicos e se distinguem pela decoração em engobe1 com motivos florais e zoomorfos.
Nascida em Ribeirão da Capivara, distrito do município mineiro de Caraí, filha de um agricultor e uma artesã, aprende a modelar o barro com a mãe, Joana Gomes dos Santos, ceramista respeitada na região. A partir dos sete anos de idade começa a criar peças figurativas para brincar, como bois e cavalos. Em seguida, recebe encomendas de presépios e a produção em cerâmica se torna um trabalho remunerado por meio do qual a artista desenvolve uma linguagem pessoal, que se distingue da tradição familiar voltada para a produção de cerâmica utilitária. As irmãs também se dedicam à cerâmica, trabalhando a partir do repertório criado pela mãe e por Noemisa, de maneira que a produção da família adquire um estilo característico que pode ser facilmente reconhecido. Ainda que a cerâmica no Jequitinhonha seja uma atividade tradicionalmente ligada ao trabalho de mulheres, tanto a família de Noemisa quanto as de outros artistas e artesãos da região reconhecem em Ulisses Pereira Chaves (1922-2006) um grande incentivador do trabalho com argila em Caraí.
O barro de coloração rosa, vermelha ou branca vem de uma olaria próxima e é preparado de acordo com técnicas, supostamente, transmitidas pelos povos originários da região. As ferramentas utilizadas são aquelas disponíveis no ambiente, como espigas de milho, pedaços de pau e penas. Após a modelagem, as peças são pintadas com engobe vermelho e branco e decoradas com motivos florais ou desenhos de animais. As flores aparecem também em alto relevo, feito a partir da delicada aplicação desses motivos em argila sobre as peças. Em geral, os trabalhos de Noemisa são compostos a partir de uma placa de argila sobre a qual são colocadas as figuras que compõem as cenas. A produção é queimada em fornos a lenha que costumam ser construídos pelas próprias artesãs.
Cabe notar que o acabamento da cerâmica do município de Caraí se distingue daquele encontrado nas demais regiões do Vale do Jequitinhonha, não só por conta do uso dos engobes vermelho e branco e da decoração, mas por explorar a cor natural da argila queimada, exposta em grande parte da superfície das peças. Nas outras regiões, a tendência é o uso do engobe recobrindo as peças por inteiro e apresentando uma maior variedade de cores e texturas.
No que diz respeito à temática, a produção de Noemisa constitui uma crônica da vida no bairro rural em que vive a artista. Além de uma grande variedade de animais, como cachorros e tatus, estão presentes cenas do dia-a-dia e ritos religiosos, como batizados e casamentos. As mulheres são representadas com vestidos estampados e acessórios elaborados, como brincos, bolsas e sapatos; os homens, em postura viril, com ombros largos, aparecem como caçadores, soldados ou médicos. Com um repertório de cerca de 40 bonecos, as figuras da artista incluem roda de fiar, roda de girar mandioca, cadeia, folião, cantador e abelha fazendo mel, entre vários outros.
A cena do casamento é recorrente na produção da artista, ainda que haja variações em sua representação. A vestimenta dos noivos e convidados é sempre muito elaborada, com riqueza de detalhes, mas eles podem aparecer todos dentro de uma capelinha ou próximos ao altar, na presença do padre. As capelinhas também apresentam variações, com a cruz do topo mostrando a imagem de Jesus ou não. Mas, independentemente das variações, costumam estar presentes: a placa de argila como base para construção da cena, a minuciosa decoração em engobe e o nome da artista, assinado em letra cursiva, que orna com os motivos da decoração, geralmente ocupando lugar de destaque na peça.
Quanto aos animais, chama atenção o Cachorro caçador, trabalho no qual um cachorro em posição de alerta, tendo o corpo decorado com grafismos e carregando uma grossa coleira, observa uma cobra toda enrolada. O padrão gráfico pontilhado que cobre toda a superfície da cobra está presente também no corpo do cachorro e no adorno lateral da placa que sustenta a cena, gerando integração entre os elementos da peça. Já em Tatu, enquanto o animal recebe um tratamento que acrescenta textura aos grafismos, buscando remeter à sensação de um casco de tatu real, a toca do tatu é idealizada como tendo um formato semelhante a um forno de cerâmica recoberto de motivos florais e com um buquê de flores no topo.
A partir da década de 1970, o trabalho de Noemisa passa a ser exposto pelo Brasil e no exterior, integrando acervos de museus e coleções particulares. Entre as exposições estão Brésil Arts Populaires (Paris, 1987) e a Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento (São Paulo, 2000). Suas obras também integram o acervo do Museu Casa do Pontal e do Museu de Folclore Edison Carneiro, ambos no Rio de Janeiro, e do Centro Cultural de São Francisco, na Paraíba, dentre outros.
Um dos nomes mais destacados da arte figurativa do Vale do Jequitinhonha, Noemisa desenvolve uma linguagem própria a partir da herança cultural familiar, na qual interpreta a realidade que a cerca.
Exposições Individuais
1989 – Individual de Noemisa
2000 – Individual de Noemisa
2017 – Crônicas de Noemisa – 50 anos de cerâmica
Exposições Coletivas
1987 – Brésil – Arts Populaires
2000 – Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento
2000 – Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento (edição de dezembro)
2001 – Mostra Vale do Jequitinhonha
2001 – Expressão Popular
2003 – Santorixá
2006 – Viva Cultura Viva
2008 – Afluências – A arte do Jequitinhonha
2009 – Influências da Arte do Vale do Jequitinhonha
2014 – Há Escolas que São Gaiolas e Há Escolas que São Asas
2019 – Assim, Como Acontece
2020 – Mulheres na Arte Popular
Exposições Póstumas
2020 – Até logo, até já
2022 – Terra/Terra – O Jequitinhonha e suas tradições
2022 – Coleção Brasileira – de Alberto e Priscila Freire
2024 – Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro
2025 – Coleção Vilma Eid – Em cada canto
Fonte: NOEMISA. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025. Acesso em: 21 de agosto de 2025. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
Noemisa Batista dos Santos | Wikipédia
Noemisa Batista dos Santos (Caraí, 1946 – 2024) foi uma renomada escultora e ceramista brasileira, considerada uma das mais importantes representantes da arte popular do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.
Aprendeu a trabalhar com barro ainda na infância, observando e auxiliando sua mãe, Joana Batista, que produzia panelas. Com o tempo, desenvolveu um estilo próprio, figurativo e detalhado, moldando cenas do cotidiano sertanejo com forte presença feminina. Suas esculturas retratam com sensibilidade momentos como casamentos, batizados, romarias, além de animais e figuras religiosas. Muitas obras apresentam autorrepresentações — tanto idealizadas quanto realistas — que evidenciam seu olhar autobiográfico e poético sobre o mundo rural.
As peças de Noemisa foram expostas em diversos espaços de importância nacional e internacional, como a exposição Brésil – Arts Populaires (em Paris, 1987), e a Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 Anos (em São Paulo, 2000).[2] Suas obras também integram acervos de instituições como o Museu do Louvre (na seção de arte popular), o Museu do Folclore Edison Carneiro e o Museu Afro Brasil.
Apesar do reconhecimento, Noemisa viveu de forma simples em sua terra natal, mantendo uma produção artística ligada à sua comunidade e às tradições do sertão mineiro. Era considerada uma "mestra" no universo da cerâmica popular brasileira e uma das vozes mais marcantes da produção artística do Jequitinhonha.
Faleceu em 2024, aos 78 anos, deixando um legado que continua a influenciar gerações de artistas populares e artesãos da região.
Legado e reconhecimento
A obra de Noemisa Batista é amplamente valorizada por estudiosos da arte popular brasileira. Sua poética visual e a maneira como traduzia o universo feminino e rural mineiro fizeram com que sua produção fosse frequentemente comparada à de outros mestres do barro do Vale do Jequitinhonha. Em vida, foi homenageada por instituições acadêmicas e culturais, como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Funarte e diversas galerias especializadas em arte popular.
Fonte: Wikipédia. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa, uma arte feminina | IPHAN
Em 10 de abril, Minas Gerais, o Brasil e os mundos da arte popular perderam Noemisa Batista Santos, nascida em Ribeirão da Capivara, em Caraí, no Vale do Jequitinhonha em 1946. A mãe, Joana, paneleira, dominava os usos do barro para abastecer a casa de utensílios – panelas, vasos, potes, moringas – também confeccionados para a esporádica venda na feira de sábado, troca por alguma outra coisa ou presentear vizinhos e amigos. Na meninice, Noemisa, como muitas crianças em centros oleiros, modelava seus boizinhos, cavalinhos, para brincar. Jovem, vivenciou mudanças na região, quando houve gradativa substituição de objetos feitos artesanalmente com o barro por produtos industrializados, e o início da ação de política pública voltada para a promoção da atividade artesanal como fonte de renda, pela então autarquia Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha), a partir dos anos 1970. Era nesse contexto de transformação que os usos do barro passaram a ter como alvo a criação de objetos investidos de outros sentidos, voltados para o mercado das camadas médias urbanas, de instituições museológicas, de colecionadores, de galerias e lojas de decoração de interiores.
Com marcas simbólicas personalíssimas, Noemisa produziu cenas incomparáveis de flagrantes da vida cotidiana, notadamente rural, impressas no barro. A pesquisadora Lalada Dalglish, em sua pesquisa Noivas da seca: cerâmica popular no Vale do Jequitinhonha, menciona a afinidade eletiva entre Noemisa e Mestre Vitalino: “as cenas figurativas, realistas e descritivas, poderiam ser comparadas às de Mestre Vitalino, pois lidam com temas do cotidiano de pessoas comuns”. Contudo, vale salientar que Noemisa, numa das regiões mais ásperas, pobres, castigadas por secas intermitentes, recria, nos anos 1970, o leque temático, imprimindo em suas composições sua assinatura inconfundível, na qual o ritual ou o banal, a celebração ou o trabalho, as figuras humanas ou os animais revestem-se de ornamento, como se estivessem cotidianamente prontas para uma ocasião especial em suas vidas. Seus bois não parecem nem um pouco destinados ao matadouro, por exemplo, nem para o trabalho de tração. Há uma atmosfera, digamos, solene em seu trabalho, que alia dois matizes dos pigmentos de barro, o tauá (tom terroso, matiz de vermelho) e tabatinga (branco). Angela Mascelani, em Caminhos da arte popular – O vale do Jequitinhonha, observa na artista o estilo “econômico e exuberante”, em que detalhes sobressaem em suas cenas. Enfim, com a parcimoniosa paleta de cores retiradas dos recursos disponíveis na região, a artista cria cenas exuberantes numa das mais vigorosas linhagens das artes visuais populares, o figurativismo descritivo, que ela marca com estilo pessoal, impregnado da inarredável adesão ao adorno.
Em Bonecos e vasilhas de barro no Vale do Jequitinhonha: Minas Gerais – Brasil, Lélia Coelho Frota realizou um registro pioneiro que desvela o surgimento de figurado, classificado como artístico, artesanato, mas, localmente, então, nomeado “enfeite”, categoria nativa que compreende o que estava destinado aos mercados de bens simbólicos urbanos, às coleções, galerias, instituições museológicas. Em seu Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, Lélia distingue a obra de Noemisa: “uma das artistas mais originais da arte em cerâmica brasileira”, com “sua arte feminina”.
É notável perceber como certos elementos do fazer artístico de Noemisa habitavam a vida cotidiana. A casa de alvenaria, por exemplo, onde morava, em Ribeirão da Capivara, instalada numa paisagem isolada, sem casas vizinhas, sem um estabelecimento de comércio; nela, o voto de beleza surgia nas linhas suaves dos ornamentos florais desenhados com tabatinga e tauá sobre a superfície branca da parede.
Era o ano de 2019, quando lá chegamos para entrevista e registro fotográfico com a expectativa de exibição e venda do trabalho em cerâmica das famílias de Noemisa e de Ulisses Pereira Chaves (1924-2006), na exposição Arte do barro, arte na vida – Caraí, MG, no Programa Sala do Artista popular. Participaram a irmã, Geralda, também ceramista, os filhos de Ulisses Margarida e José Maria, e a neta, Rosana, filha de Margarida. Embora não nos estivesse aguardando, Noemisa recebeu-nos em vestido colorido com detalhes florais e seus inseparáveis brincos e colar, o que nos pareceu em sintonia com suas cenas que emprestam ao cotidiano um toque de cuidado, de esmero. A certa altura mostrou-nos um relógio de pulso guardado na caixa, dentro da gaveta. Presente recebido, sem uso. É provável que a escolha do relógio tenha sido suscitada pelas suas composições, em que tal objeto, exibido no pulso de suas figuras, é onipresente. Presenteá-la com um relógio seria então preencher uma falta, um suposto desejo secreto de consumo da artista, mas inacessível? Aos olhos de Noemisa, um relógio pode ser mais um elemento que compõe seu universo criativo, em que vigora o adorno, e não algo útil, uma marca da modernidade que cronometra a passagem do tempo.
Na visita breve, a artista levou-nos à sua antiga casa de taipa, que havia adaptado para uma espécie de oficina de trabalho. Esse momento evocou-me um episódio que testemunhei, em que os adornos e as cenas de casamento, elementos marcantes de sua obra, serviram de pretexto para que um jovem colecionador de São Paulo exibisse o registro fotográfico que tinha feito da artista vestida de noiva diante da casa de taipa, seu local de trabalho. Ao público presente no evento, o jovem colecionador narrou que havia dito à artista que o vestido de noiva pertencera à sua avó, trazendo assim, para a fotografia, algo da memória de família. A exibição do registro fotográfico de Noemisa vestida de noiva, em diferentes contextos, pareceu-me, no momento, um ato inteiramente deslocado de seu trabalho como artista, do lugar de pertencimento da artista. A iniciativa não levava em conta, sobretudo, a dinâmica das artes populares, o fato de que copiosas e variadas cenas de casamento, desde Mestre Vitalino e a Escola. de Caruaru, no século passado, e noivas, desde Mestre Isabel e sua Escola, no Vale do Jequitinhonha, têm sido marcas simbólicas da arte figurativa brasileira em cerâmica.
Era esse o universo em que trafegava essa artista com suas cenas inconfundíveis de rituais, dentre os quais o casamento. Modelar noiva em barro, com o requinte dos detalhes que imprimia em suas composições, pode ser lido como exercício de habilidade e o gosto pela criação; e ali também está presente esse outro, urbano, de camadas médias que as adquiria. Trata-se de um dos temas de sua obra, enfim, e não de algo que faltaria na biografia de uma mulher, quase uma sentença – casar vestida de noiva.
Na ocasião em que estivemos em sua casa, pudemos perceber, contudo, que a artista havia interrompido a sua produção em cerâmica, tendo o orçamento sido preenchido com os proventos da aposentadoria. Diferentemente do que tem ocorrido em outros centros de produção artesanal, em que a obra de um mestre se dissemina, integra pessoas da família, ou mesmo se irradia na vizinhança ou localidades nas redondezas, Noemisa não deixa seguidores, como assinala Lalada. Sua obra integrou exposições no país e no exterior, faz parte de acervos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Museu do Pontal, Sítio Burle Marx, entre outras coleções privadas e públicas.
A obra de Noemisa, o figurado que floresceu nos distritos rurais de Caraí, comparece, em 2018, no inventário empreendido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais que registrou como patrimônio imaterial o “Artesanato em barro do Vale do Jequitinhonha: saberes, ofícios e expressões artísticas”.
Fonte: Iphan, “Noemisa, uma arte feminina”, texto de Guacira Waldeck, antropóloga e pesquisadora. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Mestra Noemisa Batista tem legado perpetuado pelos sobrinhos | Casa
Noemisa Batista do Santos foi a responsável por uma das trajetórias mais eloquentes da arte popular brasileira. Falecida em abril de 2024, aos 77 anos, a artesã é reconhecida por sua originalidade e pela capacidade de contar histórias a partir do barro.
Considerada pioneira em algumas das temáticas da região, tornou-se uma das principais referências do Vale do Jequitinhonha, região em Minas Gerais – berço da cerâmica artística e utilitária brasileira. Natural da cidade mineira de Caraí, Noemisa vivia e produzia as suas peças na região do Córrego de Ribeirão da Capivara.
“O trabalho dela é de uma expressividade tão forte sobre Caraí, sendo possível afirmar que não existiria a arte do município como a conhecemos hoje se não fosse pela Noemisa. Usando o barro, ela se tornou uma espécie de cronista, retratando o trivial e transformando a simplicidade do cotidiano em obras de arte”, revela o curador de arte popular Lucas Lassen, diretor da Pairol, marca que atua com artesanato popular brasileiro.
Noemisa começou a modelar o barro ainda criança, quando acompanhava a mãe ceramista na confecção de peças que serviam para complementar a renda da família. Ela fazia pequenos brinquedos e o seu trabalho diferenciado começou a se destacar entre os artesãos locais.
“Sem uma preocupação muito grande com a função do objeto, ela passou a retratar o cotidiano do vale, trazendo animais, pessoas e cenas específicas ligadas às celebrações populares, como casamentos e batizados, além de peças com contexto religiosos, como igrejas e presépios. Como tinha a ludicidade muito aflorada, também representava contos antigos”, conta Lucas.
A delicadeza da obra de Noemisa a levou a inúmeras mostras pelo Brasil e todo o mundo. Em 1987, suas esculturas integraram a exposição Brésil, Arts Populaires, no Grand Palais, em Paris. Já em 2000, algumas peças fizeram parte da Mostra do Redescobrimento, da Fundação Bienal de São Paulo.
Além disso, a sua arte está no acervo permanente do Museu de Folclore Edison Carneiro (RJ), no Museu da Casa do Pontal - Coleção de Jacques van de Beuque (RJ) e no Museu de Arte Popular Brasileira do Centro Cultural de São Francisco, em João Pessoa (PB).
Como ela nunca se casou nem teve filhos, coube a seus dois sobrinhos levar o seu legado adiante. Hoje com 46 anos, José Nilo Francisco do Santos, filho do irmão de Noemisa, começou no mundo das artes aos 10 anos.
“Na nossa família, a cerâmica chegou muito antes da tia Noemisa, mas foi com ela que fui aprendendo a partir da observação. Depois, comecei a arriscar fazendo uma coisinha aqui e outra ali, até que ela foi nos ensinando as técnicas”, revela José, que também é lavrador.
Adriano Rosa do Santos, de 44 anos, também tem seguido os passos da tia na cerâmica, profissão que divide com a de lavrador, como o primo. Como uma homenagem à trajetória de Noemisa, os dois sobrinhos tiveram algumas de suas peças apresentadas pela Paiol no 18º Salão de Artesanato em São Paulo, que aconteceu no final de agosto.
Fonte: Casa e Jardim, “Mestra Noemisa Batista tem legado perpetuado pelos sobrinhos”, publicado em 4 de setembro de 2024. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa | Arte Popular do Brasil
Noemisa Batista dos Santos é uma das mais conhecidas ceramistas do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Ela juntamente com outros nomes como, Isabel Mendes da Cunha e Ulisses Pereira Chaves são responsáveis pela enorme projeção nacional e internacional da arte do Vale do Jequitinhonha, alguns autores chegam a considerá-la uma espécie de mestre Vitalino de Minas Gerais. Noemisa nasceu em 1947 em Ribeirão do Capivara, Município de Caraí, Minas Gerais. Filha de um lavrador e de uma respeitada ceramista, Joana Gomes dos Santos, Noemisa aprendeu sua arte com a mãe, quando tinha apenas sete anos. Apesar de sua mãe trabalhar com cerâmica utilitária, Noemisa nunca gostou de fazer panelas, potes ou jarras; desde muito pequena gostava de criar pequenos animais de barro para suas brincadeiras. Noemisa se tornou um dos mais requisitados nomes da arte figurativa do Vale do Jequitinhonha; ainda na década de 70 seu trabalho já era exposto no Brasil e no exterior e fazia parte do acervo de museus e de importantes coleções particulares.
O barro usado por Noemisa é o mesmo utilizado pelos demais ceramistas de Caraí. De coloração rosa, vermelha e branca, o barro é extraído da fazenda Senhor Serafim; sua irmã Santa é a responsável pela extração. O preparo do barro e as técnicas utilizadas foram provavelmente aprendidos com os nativos da região e são os mesmos utilizados pelos demais artesãos. O barro depois de extraído e seco ao sol é triturado e pulverizado. Depois de misturado com água é armazenado em locais escuros e sem ventilação até ser usado na modelagem. Concluída a modelagem, as peças são pintadas e decoradas usando sempre a técnica do engobe nas cores vermelha e branca. Os temas dos decorados são quase sempre motivos florais ou figuras de animais.
A temática do universo artístico de Noemisa é bastante diversificada: vai das cenas cotidianas à arte religiosa. Ritos religiosos, como casamentos, batizados e funerais, igrejas e santuários são temas sempre presentes na sua obra. As “mulheres de Noemisa” são mostradas em atividades consideradas como respeitosas e necessárias. Elas normalmente usam vestidos estampados e assessórios como brincos, sapatos e bolsas. Os homens, normalmente em poses viris usam chapéu, relógio, botas e esporas. São mostrados como caçadores, soldados ou médicos. Noemisa também cria uma variedade enorme de animais, como bois, cavalos e cachorros.
Apesar de os trabalhos de Noemisa terem alcançado um alto preço no mercado, ela continua vivendo precariamente; quem lucra com seus trabalhos são os intermediários. Ela conta que pelo fato de ser analfabeta, não soube administrar com eficiência uma das melhores fases de sua produção, a década de 80, quando vendeu muitas peças para a CODEVALE. Ela continua produzindo, mas não com a mesma intensidade de antes.
Dentre as exposições mais importantes que participou pode-se citar a exposição Brésil Arts Populaires (Paris, 1987) e a Mostra do Redescobrimento (São Paulo, 2000). Importantes museus como o Museu Casa do Pontal (Rio de Janeiro, RJ), o Museu de Folclore Edison Carneiro (Rio de Janeiro, RJ) e o Centro Cultural de São Francisco (João Pessoa, PB) possuem em seus acervos obras de Noemisa.
Fonte: Arte Popular do Brasil, “Noemisa”. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa Batista dos Santos | IPHAN
Em 10 de abril, Minas Gerais, o Brasil e os mundos da arte popular perderam Noemisa Batista Santos, nascida em Ribeirão da Capivara, em Caraí, no Vale do Jequitinhonha em 1946. A mãe, Joana, paneleira, dominava os usos do barro para abastecer a casa de utensílios – panelas, vasos, potes, moringas – também confeccionados para a esporádica venda na feira de sábado, troca por alguma outra coisa ou presentear vizinhos e amigos. Na meninice, Noemisa, como muitas crianças em centros oleiros, modelava seus boizinhos, cavalinhos, para brincar. Jovem, vivenciou mudanças na região, quando houve gradativa substituição de objetos feitos artesanalmente com o barro por produtos industrializados, e o início da ação de política pública voltada para a promoção da atividade artesanal como fonte de renda, pela então autarquia Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha), a partir dos anos 1970. Era nesse contexto de transformação que os usos do barro passaram a ter como alvo a criação de objetos investidos de outros sentidos, voltados para o mercado das camadas médias urbanas, de instituições museológicas, de colecionadores, de galerias e lojas de decoração de interiores. Com marcas simbólicas personalíssimas, Noemisa produziu cenas incomparáveis de flagrantes da vida cotidiana, notadamente rural, impressas no barro. A pesquisadora Lalada Dalglish, em sua pesquisa Noivas da seca: cerâmica popular no Vale do Jequitinhonha, menciona a afinidade eletiva entre Noemisa e Mestre Vitalino: “as cenas figurativas, realistas e descritivas, poderiam ser comparadas às de Mestre Vitalino, pois lidam com temas do cotidiano de pessoas comuns”.
Contudo, vale salientar que Noemisa, numa das regiões mais ásperas, pobres, castigadas por secas intermitentes, recria, nos anos 1970, o leque temático, imprimindo em suas composições sua assinatura inconfundível, na qual o ritual ou o banal, a celebração ou o trabalho, as figuras humanas ou os animais revestem-se de ornamento, como se estivessem cotidianamente prontas para uma ocasião especial em suas vidas. Seus bois não parecem nem um pouco destinados ao matadouro, por exemplo, nem para o trabalho de tração. Há uma atmosfera, digamos, solene em seu trabalho, que alia dois matizes dos pigmentos de barro, o tauá (tom terroso, matiz de vermelho) e tabatinga (branco). Angela Mascelani, em Caminhos da arte popular – O vale do Jequitinhonha, observa na artista o estilo “econômico e exuberante”, em que detalhes sobressaem em suas cenas. Enfim, com a parcimoniosa paleta de cores retiradas dos recursos disponíveis na região, a artista cria cenas exuberantes numa das mais vigorosas linhagens das artes visuais populares, o figurativismo descritivo, que ela marca com estilo pessoal, impregnado da inarredável adesão ao adorno. Em Bonecos e vasilhas de barro no Vale do Jequitinhonha: Minas Gerais – Brasil, Lélia Coelho Frota realizou um registro pioneiro que desvela o surgimento de figurado, classificado como artístico, artesanato, mas, localmente, então, nomeado “enfeite”, categoria nativa que compreende o que estava destinado aos mercados de bens simbólicos urbanos, às coleções, galerias, instituições museológicas. Em seu Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, Lélia distingue a obra de Noemisa: “uma das artistas mais originais da arte em cerâmica brasileira”, com “sua arte feminina”. É notável perceber como certos elementos do fazer artístico de Noemisa habitavam a vida cotidiana. A casa de alvenaria, por exemplo, onde morava, em Ribeirão da Capivara, instalada numa paisagem isolada, sem casas vizinhas, sem um estabelecimento de comércio; nela, o voto de beleza surgia nas linhas suaves dos ornamentos florais desenhados com tabatinga e tauá sobre a superfície branca da parede. Era o ano de 2019, quando lá chegamos para entrevista e registro fotográfico com a expectativa de exibição e venda do trabalho em cerâmica das famílias de Noemisa e de Ulisses Pereira Chaves (1924-2006), na exposição Arte do barro, arte na vida – Caraí, MG, no Programa Sala do Artista popular. Participaram a irmã, Geralda, também ceramista, os filhos de Ulisses Margarida e José Maria, e a neta, Rosana, filha de Margarida. Embora não nos estivesse aguardando, Noemisa recebeu-nos em vestido colorido com detalhes florais e seus inseparáveis brincos e colar, o que nos pareceu em sintonia com suas cenas que emprestam ao cotidiano um toque de cuidado, de esmero. A certa altura mostrou-nos um relógio de pulso guardado na caixa, dentro da gaveta. Presente recebido, sem uso. É provável que a escolha do relógio tenha sido suscitada pelas suas composições, em que tal objeto, exibido no pulso de suas figuras, é onipresente. Presenteá-la com um relógio seria então preencher uma falta, um suposto desejo secreto de consumo da artista, mas inacessível? Aos olhos de Noemisa, um relógio pode ser mais um elemento que compõe seu universo criativo, em que vigora o adorno, e não algo útil, uma marca da modernidade que cronometra a passagem do tempo. Na visita breve, a artista levou-nos à sua antiga casa de taipa, que havia adaptado para uma espécie de oficina de trabalho. Esse momento evocou-me um episódio que testemunhei, em que os adornos e as cenas de casamento, elementos marcantes de sua obra, serviram de pretexto para que um jovem colecionador de São Paulo exibisse o registro fotográfico que tinha feito da artista vestida de noiva diante da casa de taipa, seu local de trabalho. Ao público presente no evento, o jovem colecionador narrou que havia dito à artista que o vestido de noiva pertencera à sua avó, trazendo assim, para a fotografia, algo da memória de família. A exibição do registro fotográfico de Noemisa vestida de noiva, em diferentes contextos, pareceu-me, no momento, um ato inteiramente deslocado de seu trabalho como artista, do lugar de pertencimento da artista. A iniciativa não levava em conta, sobretudo, a dinâmica das artes populares, o fato de que copiosas e variadas cenas de casamento, desde Mestre Vitalino e a Escola de Caruaru, no século passado, e noivas, desde Mestre Isabel e sua Escola, no Vale do Jequitinhonha, têm sido marcas simbólicas da arte figurativa brasileira em cerâmica. Era esse o universo em que trafegava essa artista com suas cenas inconfundíveis de rituais, dentre os quais o casamento. Modelar noiva em barro, com o requinte dos detalhes que imprimia em suas composições, pode ser lido como exercício de habilidade e o gosto pela criação; e ali também está presente esse outro, urbano, de camadas médias que as adquiria. Trata-se de um dos temas de sua obra, enfim, e não de algo que faltaria na biografia de uma mulher, quase uma sentença – casar vestida de noiva. Na ocasião em que estivemos em sua casa, pudemos perceber, contudo, que a artista havia interrompido a sua produção em cerâmica, tendo o orçamento sido preenchido com os proventos da aposentadoria. Diferentemente do que tem ocorrido em outros centros de produção artesanal, em que a obra de um mestre se dissemina, integra pessoas da família, ou mesmo se irradia na vizinhança ou localidades nas redondezas, Noemisa não deixa seguidores, como assinala Lalada. Sua obra integrou exposições no país e no exterior, faz parte de acervos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Museu do Pontal, Sítio Burle Marx, entre outras coleções privadas e públicas. A obra de Noemisa, o figurado que floresceu nos distritos rurais de Caraí, comparece, em 2018, no inventário empreendido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais que registrou como patrimônio imaterial o “Artesanato em barro do Vale do Jequitinhonha: saberes, ofícios e expressões artísticas”.
Fonte: IPHAN, “Noemisa, uma arte feminina”, publicado por Guacira Waldeck, antropóloga e pesquisadora. Consultado pela última vez em 27 de agosto de 2025.
Crédito fotográfico: Museu do Pontal, “Noemisa Batista dos Santos”. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa Batista dos Santos (2 de agosto de 1947, Caraí, MG — 10 de abril de 2024, Caraí, MG), mais conhecida como Mestra Noemisa Batista, ou apenas Noemisa Batista, foi uma ceramista e escultora brasileira. Reconhecida como uma das maiores expoentes da arte popular do Vale do Jequitinhonha, Noemisa aprendeu a trabalhar com o barro ainda na infância, orientada por sua mãe, Joana Batista, também ceramista, responsável pela criação da tradicional moringa feminina com três bolas. Sofreu influência de vivências comunitárias e pelo universo feminino rural, além de integrar uma rede de mestras ceramistas do Jequitinhonha que incluía outras artistas populares como Ulbana de Tal e Maria da Soledade. Suas obras destacam-se por representar cenas do cotidiano, festas religiosas, maternidade e figuras femininas detalhadas, com traços expressivos, roupas adornadas e sutis toques de cor, mantendo o barro natural como base. Recebeu reconhecimento nacional e internacional, participando de exposições como Brésil – Arts Populaires no Grand Palais (Paris, 1987) e a Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 Anos (São Paulo, 2000). Suas peças integram acervos de instituições como o Museu do Folclore Edison Carneiro (RJ), o Museu da Casa do Pontal (RJ) e o Museu de Arte Popular Brasileira, em João Pessoa (PB), além de diversas coleções privadas.
Noemisa Batista dos Santos | Arremate Arte
Nascida por volta de 1947 em Caraí, município do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Noemisa Batista dos Santos, conhecida como Mestra Noemisa Batista, construiu uma das trajetórias mais emblemáticas da arte popular brasileira. Filha de Joana Batista, ceramista reconhecida por suas moringas femininas com três bolas — um ícone visual da tradição ceramista local —, Noemisa cresceu em um ambiente no qual o barro não era apenas matéria-prima, mas expressão cultural, memória familiar e resistência feminina.
Desde muito jovem, acompanhava o trabalho da mãe, absorvendo as técnicas tradicionais de modelagem enquanto desenvolvia um olhar atento ao cotidiano das mulheres e comunidades ao seu redor. O saber ancestral, transmitido oralmente e pelas mãos, foi a base de sua formação, mas o que Noemisa fez com esse legado a tornou única: em vez de apenas replicar formas consagradas, ela passou a moldar cenas inteiras de vivência rural — festas religiosas, procissões, batizados, casamentos, mães com filhos, lavadeiras, mulheres sonhadoras. Suas peças, quase sempre figurativas e narrativas, traziam o povo do Jequitinhonha à tona, com detalhes minuciosos, gestos delicados e uma expressividade profundamente poética.
A artista não apenas criou personagens; ela moldou vidas. Suas figuras femininas, muitas vezes esculpidas com vestidos rendados, colares, brincos e cabelos trançados, revelam uma estética própria, que valoriza a beleza do barro natural com pequenas intervenções de cor, geralmente em tons suaves. A paleta usada era comedida, mas estrategicamente aplicada para acentuar emoções, elementos simbólicos ou peças do vestuário. Em muitas esculturas, Noemisa se autorretratava: uma mulher de feições serenas, quase contemplativas, revelando não apenas seu domínio técnico, mas uma introspecção rara na cerâmica figurativa popular.
Seu trabalho começou a ganhar notoriedade nacional a partir dos anos 1980, quando pesquisadores, curadores e colecionadores voltaram seus olhares para o Vale do Jequitinhonha. Em 1987, participou da mostra internacional Brésil – Arts Populaires, no Grand Palais, em Paris, projetando sua arte para além das fronteiras do Brasil. No ano 2000, foi uma das artistas destacadas na Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 Anos, realizada em São Paulo, evento que reafirmou sua importância dentro do panorama da arte brasileira. Ao longo das décadas seguintes, Mestra Noemisa consolidou-se como referência absoluta da cerâmica de tradição popular, sendo reconhecida também como uma voz feminina potente dentro de um campo muitas vezes dominado por nomes masculinos.
Suas obras integram os acervos de instituições de prestígio, como o Museu do Folclore Edison Carneiro (Rio de Janeiro), o Museu da Casa do Pontal (Rio de Janeiro), e o Museu de Arte Popular Brasileira, no Centro Cultural São Francisco, em João Pessoa. Cada peça sua carrega não apenas uma assinatura artística, mas uma crônica silenciosa sobre a vida no sertão mineiro, marcada por fé, afeto e resistência.
Apesar do reconhecimento crescente, Noemisa sempre permaneceu em Caraí, fiel às raízes e à simplicidade de sua vida no interior. Recusou-se a transformar sua arte em produto de massa e nunca deixou de moldar com as próprias mãos, mantendo um processo manual e íntimo, em que cada escultura nascia do barro e do silêncio de sua casa-ateliê.
Noemisa Batista dos Santos faleceu em sua cidade natal, em 10 de abril de 2024, deixando um legado artístico inestimável e uma memória viva que segue inspirando novas gerações de ceramistas, pesquisadores e amantes da cultura brasileira. Sua trajetória é hoje reconhecida como símbolo da força criativa do Vale do Jequitinhonha e da centralidade das mulheres na preservação das tradições culturais do país.
Noemisa Batista dos Santos | Itaú Cultural
Noemisa Batista dos Santos (Caraí, Minas Gerais, 1947). Ceramista. Artista da região do Vale do Jequitinhonha e com uma produção figurativa, suas peças representam cenas do cotidiano e ritos católicos e se distinguem pela decoração em engobe1 com motivos florais e zoomorfos.
Nascida em Ribeirão da Capivara, distrito do município mineiro de Caraí, filha de um agricultor e uma artesã, aprende a modelar o barro com a mãe, Joana Gomes dos Santos, ceramista respeitada na região. A partir dos sete anos de idade começa a criar peças figurativas para brincar, como bois e cavalos. Em seguida, recebe encomendas de presépios e a produção em cerâmica se torna um trabalho remunerado por meio do qual a artista desenvolve uma linguagem pessoal, que se distingue da tradição familiar voltada para a produção de cerâmica utilitária. As irmãs também se dedicam à cerâmica, trabalhando a partir do repertório criado pela mãe e por Noemisa, de maneira que a produção da família adquire um estilo característico que pode ser facilmente reconhecido. Ainda que a cerâmica no Jequitinhonha seja uma atividade tradicionalmente ligada ao trabalho de mulheres, tanto a família de Noemisa quanto as de outros artistas e artesãos da região reconhecem em Ulisses Pereira Chaves (1922-2006) um grande incentivador do trabalho com argila em Caraí.
O barro de coloração rosa, vermelha ou branca vem de uma olaria próxima e é preparado de acordo com técnicas, supostamente, transmitidas pelos povos originários da região. As ferramentas utilizadas são aquelas disponíveis no ambiente, como espigas de milho, pedaços de pau e penas. Após a modelagem, as peças são pintadas com engobe vermelho e branco e decoradas com motivos florais ou desenhos de animais. As flores aparecem também em alto relevo, feito a partir da delicada aplicação desses motivos em argila sobre as peças. Em geral, os trabalhos de Noemisa são compostos a partir de uma placa de argila sobre a qual são colocadas as figuras que compõem as cenas. A produção é queimada em fornos a lenha que costumam ser construídos pelas próprias artesãs.
Cabe notar que o acabamento da cerâmica do município de Caraí se distingue daquele encontrado nas demais regiões do Vale do Jequitinhonha, não só por conta do uso dos engobes vermelho e branco e da decoração, mas por explorar a cor natural da argila queimada, exposta em grande parte da superfície das peças. Nas outras regiões, a tendência é o uso do engobe recobrindo as peças por inteiro e apresentando uma maior variedade de cores e texturas.
No que diz respeito à temática, a produção de Noemisa constitui uma crônica da vida no bairro rural em que vive a artista. Além de uma grande variedade de animais, como cachorros e tatus, estão presentes cenas do dia-a-dia e ritos religiosos, como batizados e casamentos. As mulheres são representadas com vestidos estampados e acessórios elaborados, como brincos, bolsas e sapatos; os homens, em postura viril, com ombros largos, aparecem como caçadores, soldados ou médicos. Com um repertório de cerca de 40 bonecos, as figuras da artista incluem roda de fiar, roda de girar mandioca, cadeia, folião, cantador e abelha fazendo mel, entre vários outros.
A cena do casamento é recorrente na produção da artista, ainda que haja variações em sua representação. A vestimenta dos noivos e convidados é sempre muito elaborada, com riqueza de detalhes, mas eles podem aparecer todos dentro de uma capelinha ou próximos ao altar, na presença do padre. As capelinhas também apresentam variações, com a cruz do topo mostrando a imagem de Jesus ou não. Mas, independentemente das variações, costumam estar presentes: a placa de argila como base para construção da cena, a minuciosa decoração em engobe e o nome da artista, assinado em letra cursiva, que orna com os motivos da decoração, geralmente ocupando lugar de destaque na peça.
Quanto aos animais, chama atenção o Cachorro caçador, trabalho no qual um cachorro em posição de alerta, tendo o corpo decorado com grafismos e carregando uma grossa coleira, observa uma cobra toda enrolada. O padrão gráfico pontilhado que cobre toda a superfície da cobra está presente também no corpo do cachorro e no adorno lateral da placa que sustenta a cena, gerando integração entre os elementos da peça. Já em Tatu, enquanto o animal recebe um tratamento que acrescenta textura aos grafismos, buscando remeter à sensação de um casco de tatu real, a toca do tatu é idealizada como tendo um formato semelhante a um forno de cerâmica recoberto de motivos florais e com um buquê de flores no topo.
A partir da década de 1970, o trabalho de Noemisa passa a ser exposto pelo Brasil e no exterior, integrando acervos de museus e coleções particulares. Entre as exposições estão Brésil Arts Populaires (Paris, 1987) e a Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento (São Paulo, 2000). Suas obras também integram o acervo do Museu Casa do Pontal e do Museu de Folclore Edison Carneiro, ambos no Rio de Janeiro, e do Centro Cultural de São Francisco, na Paraíba, dentre outros.
Um dos nomes mais destacados da arte figurativa do Vale do Jequitinhonha, Noemisa desenvolve uma linguagem própria a partir da herança cultural familiar, na qual interpreta a realidade que a cerca.
Exposições Individuais
1989 – Individual de Noemisa
2000 – Individual de Noemisa
2017 – Crônicas de Noemisa – 50 anos de cerâmica
Exposições Coletivas
1987 – Brésil – Arts Populaires
2000 – Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento
2000 – Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento (edição de dezembro)
2001 – Mostra Vale do Jequitinhonha
2001 – Expressão Popular
2003 – Santorixá
2006 – Viva Cultura Viva
2008 – Afluências – A arte do Jequitinhonha
2009 – Influências da Arte do Vale do Jequitinhonha
2014 – Há Escolas que São Gaiolas e Há Escolas que São Asas
2019 – Assim, Como Acontece
2020 – Mulheres na Arte Popular
Exposições Póstumas
2020 – Até logo, até já
2022 – Terra/Terra – O Jequitinhonha e suas tradições
2022 – Coleção Brasileira – de Alberto e Priscila Freire
2024 – Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro
2025 – Coleção Vilma Eid – Em cada canto
Fonte: NOEMISA. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025. Acesso em: 21 de agosto de 2025. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
Noemisa Batista dos Santos | Wikipédia
Noemisa Batista dos Santos (Caraí, 1946 – 2024) foi uma renomada escultora e ceramista brasileira, considerada uma das mais importantes representantes da arte popular do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.
Aprendeu a trabalhar com barro ainda na infância, observando e auxiliando sua mãe, Joana Batista, que produzia panelas. Com o tempo, desenvolveu um estilo próprio, figurativo e detalhado, moldando cenas do cotidiano sertanejo com forte presença feminina. Suas esculturas retratam com sensibilidade momentos como casamentos, batizados, romarias, além de animais e figuras religiosas. Muitas obras apresentam autorrepresentações — tanto idealizadas quanto realistas — que evidenciam seu olhar autobiográfico e poético sobre o mundo rural.
As peças de Noemisa foram expostas em diversos espaços de importância nacional e internacional, como a exposição Brésil – Arts Populaires (em Paris, 1987), e a Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 Anos (em São Paulo, 2000).[2] Suas obras também integram acervos de instituições como o Museu do Louvre (na seção de arte popular), o Museu do Folclore Edison Carneiro e o Museu Afro Brasil.
Apesar do reconhecimento, Noemisa viveu de forma simples em sua terra natal, mantendo uma produção artística ligada à sua comunidade e às tradições do sertão mineiro. Era considerada uma "mestra" no universo da cerâmica popular brasileira e uma das vozes mais marcantes da produção artística do Jequitinhonha.
Faleceu em 2024, aos 78 anos, deixando um legado que continua a influenciar gerações de artistas populares e artesãos da região.
Legado e reconhecimento
A obra de Noemisa Batista é amplamente valorizada por estudiosos da arte popular brasileira. Sua poética visual e a maneira como traduzia o universo feminino e rural mineiro fizeram com que sua produção fosse frequentemente comparada à de outros mestres do barro do Vale do Jequitinhonha. Em vida, foi homenageada por instituições acadêmicas e culturais, como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Funarte e diversas galerias especializadas em arte popular.
Fonte: Wikipédia. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa, uma arte feminina | IPHAN
Em 10 de abril, Minas Gerais, o Brasil e os mundos da arte popular perderam Noemisa Batista Santos, nascida em Ribeirão da Capivara, em Caraí, no Vale do Jequitinhonha em 1946. A mãe, Joana, paneleira, dominava os usos do barro para abastecer a casa de utensílios – panelas, vasos, potes, moringas – também confeccionados para a esporádica venda na feira de sábado, troca por alguma outra coisa ou presentear vizinhos e amigos. Na meninice, Noemisa, como muitas crianças em centros oleiros, modelava seus boizinhos, cavalinhos, para brincar. Jovem, vivenciou mudanças na região, quando houve gradativa substituição de objetos feitos artesanalmente com o barro por produtos industrializados, e o início da ação de política pública voltada para a promoção da atividade artesanal como fonte de renda, pela então autarquia Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha), a partir dos anos 1970. Era nesse contexto de transformação que os usos do barro passaram a ter como alvo a criação de objetos investidos de outros sentidos, voltados para o mercado das camadas médias urbanas, de instituições museológicas, de colecionadores, de galerias e lojas de decoração de interiores.
Com marcas simbólicas personalíssimas, Noemisa produziu cenas incomparáveis de flagrantes da vida cotidiana, notadamente rural, impressas no barro. A pesquisadora Lalada Dalglish, em sua pesquisa Noivas da seca: cerâmica popular no Vale do Jequitinhonha, menciona a afinidade eletiva entre Noemisa e Mestre Vitalino: “as cenas figurativas, realistas e descritivas, poderiam ser comparadas às de Mestre Vitalino, pois lidam com temas do cotidiano de pessoas comuns”. Contudo, vale salientar que Noemisa, numa das regiões mais ásperas, pobres, castigadas por secas intermitentes, recria, nos anos 1970, o leque temático, imprimindo em suas composições sua assinatura inconfundível, na qual o ritual ou o banal, a celebração ou o trabalho, as figuras humanas ou os animais revestem-se de ornamento, como se estivessem cotidianamente prontas para uma ocasião especial em suas vidas. Seus bois não parecem nem um pouco destinados ao matadouro, por exemplo, nem para o trabalho de tração. Há uma atmosfera, digamos, solene em seu trabalho, que alia dois matizes dos pigmentos de barro, o tauá (tom terroso, matiz de vermelho) e tabatinga (branco). Angela Mascelani, em Caminhos da arte popular – O vale do Jequitinhonha, observa na artista o estilo “econômico e exuberante”, em que detalhes sobressaem em suas cenas. Enfim, com a parcimoniosa paleta de cores retiradas dos recursos disponíveis na região, a artista cria cenas exuberantes numa das mais vigorosas linhagens das artes visuais populares, o figurativismo descritivo, que ela marca com estilo pessoal, impregnado da inarredável adesão ao adorno.
Em Bonecos e vasilhas de barro no Vale do Jequitinhonha: Minas Gerais – Brasil, Lélia Coelho Frota realizou um registro pioneiro que desvela o surgimento de figurado, classificado como artístico, artesanato, mas, localmente, então, nomeado “enfeite”, categoria nativa que compreende o que estava destinado aos mercados de bens simbólicos urbanos, às coleções, galerias, instituições museológicas. Em seu Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, Lélia distingue a obra de Noemisa: “uma das artistas mais originais da arte em cerâmica brasileira”, com “sua arte feminina”.
É notável perceber como certos elementos do fazer artístico de Noemisa habitavam a vida cotidiana. A casa de alvenaria, por exemplo, onde morava, em Ribeirão da Capivara, instalada numa paisagem isolada, sem casas vizinhas, sem um estabelecimento de comércio; nela, o voto de beleza surgia nas linhas suaves dos ornamentos florais desenhados com tabatinga e tauá sobre a superfície branca da parede.
Era o ano de 2019, quando lá chegamos para entrevista e registro fotográfico com a expectativa de exibição e venda do trabalho em cerâmica das famílias de Noemisa e de Ulisses Pereira Chaves (1924-2006), na exposição Arte do barro, arte na vida – Caraí, MG, no Programa Sala do Artista popular. Participaram a irmã, Geralda, também ceramista, os filhos de Ulisses Margarida e José Maria, e a neta, Rosana, filha de Margarida. Embora não nos estivesse aguardando, Noemisa recebeu-nos em vestido colorido com detalhes florais e seus inseparáveis brincos e colar, o que nos pareceu em sintonia com suas cenas que emprestam ao cotidiano um toque de cuidado, de esmero. A certa altura mostrou-nos um relógio de pulso guardado na caixa, dentro da gaveta. Presente recebido, sem uso. É provável que a escolha do relógio tenha sido suscitada pelas suas composições, em que tal objeto, exibido no pulso de suas figuras, é onipresente. Presenteá-la com um relógio seria então preencher uma falta, um suposto desejo secreto de consumo da artista, mas inacessível? Aos olhos de Noemisa, um relógio pode ser mais um elemento que compõe seu universo criativo, em que vigora o adorno, e não algo útil, uma marca da modernidade que cronometra a passagem do tempo.
Na visita breve, a artista levou-nos à sua antiga casa de taipa, que havia adaptado para uma espécie de oficina de trabalho. Esse momento evocou-me um episódio que testemunhei, em que os adornos e as cenas de casamento, elementos marcantes de sua obra, serviram de pretexto para que um jovem colecionador de São Paulo exibisse o registro fotográfico que tinha feito da artista vestida de noiva diante da casa de taipa, seu local de trabalho. Ao público presente no evento, o jovem colecionador narrou que havia dito à artista que o vestido de noiva pertencera à sua avó, trazendo assim, para a fotografia, algo da memória de família. A exibição do registro fotográfico de Noemisa vestida de noiva, em diferentes contextos, pareceu-me, no momento, um ato inteiramente deslocado de seu trabalho como artista, do lugar de pertencimento da artista. A iniciativa não levava em conta, sobretudo, a dinâmica das artes populares, o fato de que copiosas e variadas cenas de casamento, desde Mestre Vitalino e a Escola. de Caruaru, no século passado, e noivas, desde Mestre Isabel e sua Escola, no Vale do Jequitinhonha, têm sido marcas simbólicas da arte figurativa brasileira em cerâmica.
Era esse o universo em que trafegava essa artista com suas cenas inconfundíveis de rituais, dentre os quais o casamento. Modelar noiva em barro, com o requinte dos detalhes que imprimia em suas composições, pode ser lido como exercício de habilidade e o gosto pela criação; e ali também está presente esse outro, urbano, de camadas médias que as adquiria. Trata-se de um dos temas de sua obra, enfim, e não de algo que faltaria na biografia de uma mulher, quase uma sentença – casar vestida de noiva.
Na ocasião em que estivemos em sua casa, pudemos perceber, contudo, que a artista havia interrompido a sua produção em cerâmica, tendo o orçamento sido preenchido com os proventos da aposentadoria. Diferentemente do que tem ocorrido em outros centros de produção artesanal, em que a obra de um mestre se dissemina, integra pessoas da família, ou mesmo se irradia na vizinhança ou localidades nas redondezas, Noemisa não deixa seguidores, como assinala Lalada. Sua obra integrou exposições no país e no exterior, faz parte de acervos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Museu do Pontal, Sítio Burle Marx, entre outras coleções privadas e públicas.
A obra de Noemisa, o figurado que floresceu nos distritos rurais de Caraí, comparece, em 2018, no inventário empreendido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais que registrou como patrimônio imaterial o “Artesanato em barro do Vale do Jequitinhonha: saberes, ofícios e expressões artísticas”.
Fonte: Iphan, “Noemisa, uma arte feminina”, texto de Guacira Waldeck, antropóloga e pesquisadora. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Mestra Noemisa Batista tem legado perpetuado pelos sobrinhos | Casa
Noemisa Batista do Santos foi a responsável por uma das trajetórias mais eloquentes da arte popular brasileira. Falecida em abril de 2024, aos 77 anos, a artesã é reconhecida por sua originalidade e pela capacidade de contar histórias a partir do barro.
Considerada pioneira em algumas das temáticas da região, tornou-se uma das principais referências do Vale do Jequitinhonha, região em Minas Gerais – berço da cerâmica artística e utilitária brasileira. Natural da cidade mineira de Caraí, Noemisa vivia e produzia as suas peças na região do Córrego de Ribeirão da Capivara.
“O trabalho dela é de uma expressividade tão forte sobre Caraí, sendo possível afirmar que não existiria a arte do município como a conhecemos hoje se não fosse pela Noemisa. Usando o barro, ela se tornou uma espécie de cronista, retratando o trivial e transformando a simplicidade do cotidiano em obras de arte”, revela o curador de arte popular Lucas Lassen, diretor da Pairol, marca que atua com artesanato popular brasileiro.
Noemisa começou a modelar o barro ainda criança, quando acompanhava a mãe ceramista na confecção de peças que serviam para complementar a renda da família. Ela fazia pequenos brinquedos e o seu trabalho diferenciado começou a se destacar entre os artesãos locais.
“Sem uma preocupação muito grande com a função do objeto, ela passou a retratar o cotidiano do vale, trazendo animais, pessoas e cenas específicas ligadas às celebrações populares, como casamentos e batizados, além de peças com contexto religiosos, como igrejas e presépios. Como tinha a ludicidade muito aflorada, também representava contos antigos”, conta Lucas.
A delicadeza da obra de Noemisa a levou a inúmeras mostras pelo Brasil e todo o mundo. Em 1987, suas esculturas integraram a exposição Brésil, Arts Populaires, no Grand Palais, em Paris. Já em 2000, algumas peças fizeram parte da Mostra do Redescobrimento, da Fundação Bienal de São Paulo.
Além disso, a sua arte está no acervo permanente do Museu de Folclore Edison Carneiro (RJ), no Museu da Casa do Pontal - Coleção de Jacques van de Beuque (RJ) e no Museu de Arte Popular Brasileira do Centro Cultural de São Francisco, em João Pessoa (PB).
Como ela nunca se casou nem teve filhos, coube a seus dois sobrinhos levar o seu legado adiante. Hoje com 46 anos, José Nilo Francisco do Santos, filho do irmão de Noemisa, começou no mundo das artes aos 10 anos.
“Na nossa família, a cerâmica chegou muito antes da tia Noemisa, mas foi com ela que fui aprendendo a partir da observação. Depois, comecei a arriscar fazendo uma coisinha aqui e outra ali, até que ela foi nos ensinando as técnicas”, revela José, que também é lavrador.
Adriano Rosa do Santos, de 44 anos, também tem seguido os passos da tia na cerâmica, profissão que divide com a de lavrador, como o primo. Como uma homenagem à trajetória de Noemisa, os dois sobrinhos tiveram algumas de suas peças apresentadas pela Paiol no 18º Salão de Artesanato em São Paulo, que aconteceu no final de agosto.
Fonte: Casa e Jardim, “Mestra Noemisa Batista tem legado perpetuado pelos sobrinhos”, publicado em 4 de setembro de 2024. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa | Arte Popular do Brasil
Noemisa Batista dos Santos é uma das mais conhecidas ceramistas do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Ela juntamente com outros nomes como, Isabel Mendes da Cunha e Ulisses Pereira Chaves são responsáveis pela enorme projeção nacional e internacional da arte do Vale do Jequitinhonha, alguns autores chegam a considerá-la uma espécie de mestre Vitalino de Minas Gerais. Noemisa nasceu em 1947 em Ribeirão do Capivara, Município de Caraí, Minas Gerais. Filha de um lavrador e de uma respeitada ceramista, Joana Gomes dos Santos, Noemisa aprendeu sua arte com a mãe, quando tinha apenas sete anos. Apesar de sua mãe trabalhar com cerâmica utilitária, Noemisa nunca gostou de fazer panelas, potes ou jarras; desde muito pequena gostava de criar pequenos animais de barro para suas brincadeiras. Noemisa se tornou um dos mais requisitados nomes da arte figurativa do Vale do Jequitinhonha; ainda na década de 70 seu trabalho já era exposto no Brasil e no exterior e fazia parte do acervo de museus e de importantes coleções particulares.
O barro usado por Noemisa é o mesmo utilizado pelos demais ceramistas de Caraí. De coloração rosa, vermelha e branca, o barro é extraído da fazenda Senhor Serafim; sua irmã Santa é a responsável pela extração. O preparo do barro e as técnicas utilizadas foram provavelmente aprendidos com os nativos da região e são os mesmos utilizados pelos demais artesãos. O barro depois de extraído e seco ao sol é triturado e pulverizado. Depois de misturado com água é armazenado em locais escuros e sem ventilação até ser usado na modelagem. Concluída a modelagem, as peças são pintadas e decoradas usando sempre a técnica do engobe nas cores vermelha e branca. Os temas dos decorados são quase sempre motivos florais ou figuras de animais.
A temática do universo artístico de Noemisa é bastante diversificada: vai das cenas cotidianas à arte religiosa. Ritos religiosos, como casamentos, batizados e funerais, igrejas e santuários são temas sempre presentes na sua obra. As “mulheres de Noemisa” são mostradas em atividades consideradas como respeitosas e necessárias. Elas normalmente usam vestidos estampados e assessórios como brincos, sapatos e bolsas. Os homens, normalmente em poses viris usam chapéu, relógio, botas e esporas. São mostrados como caçadores, soldados ou médicos. Noemisa também cria uma variedade enorme de animais, como bois, cavalos e cachorros.
Apesar de os trabalhos de Noemisa terem alcançado um alto preço no mercado, ela continua vivendo precariamente; quem lucra com seus trabalhos são os intermediários. Ela conta que pelo fato de ser analfabeta, não soube administrar com eficiência uma das melhores fases de sua produção, a década de 80, quando vendeu muitas peças para a CODEVALE. Ela continua produzindo, mas não com a mesma intensidade de antes.
Dentre as exposições mais importantes que participou pode-se citar a exposição Brésil Arts Populaires (Paris, 1987) e a Mostra do Redescobrimento (São Paulo, 2000). Importantes museus como o Museu Casa do Pontal (Rio de Janeiro, RJ), o Museu de Folclore Edison Carneiro (Rio de Janeiro, RJ) e o Centro Cultural de São Francisco (João Pessoa, PB) possuem em seus acervos obras de Noemisa.
Fonte: Arte Popular do Brasil, “Noemisa”. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa Batista dos Santos | IPHAN
Em 10 de abril, Minas Gerais, o Brasil e os mundos da arte popular perderam Noemisa Batista Santos, nascida em Ribeirão da Capivara, em Caraí, no Vale do Jequitinhonha em 1946. A mãe, Joana, paneleira, dominava os usos do barro para abastecer a casa de utensílios – panelas, vasos, potes, moringas – também confeccionados para a esporádica venda na feira de sábado, troca por alguma outra coisa ou presentear vizinhos e amigos. Na meninice, Noemisa, como muitas crianças em centros oleiros, modelava seus boizinhos, cavalinhos, para brincar. Jovem, vivenciou mudanças na região, quando houve gradativa substituição de objetos feitos artesanalmente com o barro por produtos industrializados, e o início da ação de política pública voltada para a promoção da atividade artesanal como fonte de renda, pela então autarquia Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha), a partir dos anos 1970. Era nesse contexto de transformação que os usos do barro passaram a ter como alvo a criação de objetos investidos de outros sentidos, voltados para o mercado das camadas médias urbanas, de instituições museológicas, de colecionadores, de galerias e lojas de decoração de interiores. Com marcas simbólicas personalíssimas, Noemisa produziu cenas incomparáveis de flagrantes da vida cotidiana, notadamente rural, impressas no barro. A pesquisadora Lalada Dalglish, em sua pesquisa Noivas da seca: cerâmica popular no Vale do Jequitinhonha, menciona a afinidade eletiva entre Noemisa e Mestre Vitalino: “as cenas figurativas, realistas e descritivas, poderiam ser comparadas às de Mestre Vitalino, pois lidam com temas do cotidiano de pessoas comuns”.
Contudo, vale salientar que Noemisa, numa das regiões mais ásperas, pobres, castigadas por secas intermitentes, recria, nos anos 1970, o leque temático, imprimindo em suas composições sua assinatura inconfundível, na qual o ritual ou o banal, a celebração ou o trabalho, as figuras humanas ou os animais revestem-se de ornamento, como se estivessem cotidianamente prontas para uma ocasião especial em suas vidas. Seus bois não parecem nem um pouco destinados ao matadouro, por exemplo, nem para o trabalho de tração. Há uma atmosfera, digamos, solene em seu trabalho, que alia dois matizes dos pigmentos de barro, o tauá (tom terroso, matiz de vermelho) e tabatinga (branco). Angela Mascelani, em Caminhos da arte popular – O vale do Jequitinhonha, observa na artista o estilo “econômico e exuberante”, em que detalhes sobressaem em suas cenas. Enfim, com a parcimoniosa paleta de cores retiradas dos recursos disponíveis na região, a artista cria cenas exuberantes numa das mais vigorosas linhagens das artes visuais populares, o figurativismo descritivo, que ela marca com estilo pessoal, impregnado da inarredável adesão ao adorno. Em Bonecos e vasilhas de barro no Vale do Jequitinhonha: Minas Gerais – Brasil, Lélia Coelho Frota realizou um registro pioneiro que desvela o surgimento de figurado, classificado como artístico, artesanato, mas, localmente, então, nomeado “enfeite”, categoria nativa que compreende o que estava destinado aos mercados de bens simbólicos urbanos, às coleções, galerias, instituições museológicas. Em seu Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, Lélia distingue a obra de Noemisa: “uma das artistas mais originais da arte em cerâmica brasileira”, com “sua arte feminina”. É notável perceber como certos elementos do fazer artístico de Noemisa habitavam a vida cotidiana. A casa de alvenaria, por exemplo, onde morava, em Ribeirão da Capivara, instalada numa paisagem isolada, sem casas vizinhas, sem um estabelecimento de comércio; nela, o voto de beleza surgia nas linhas suaves dos ornamentos florais desenhados com tabatinga e tauá sobre a superfície branca da parede. Era o ano de 2019, quando lá chegamos para entrevista e registro fotográfico com a expectativa de exibição e venda do trabalho em cerâmica das famílias de Noemisa e de Ulisses Pereira Chaves (1924-2006), na exposição Arte do barro, arte na vida – Caraí, MG, no Programa Sala do Artista popular. Participaram a irmã, Geralda, também ceramista, os filhos de Ulisses Margarida e José Maria, e a neta, Rosana, filha de Margarida. Embora não nos estivesse aguardando, Noemisa recebeu-nos em vestido colorido com detalhes florais e seus inseparáveis brincos e colar, o que nos pareceu em sintonia com suas cenas que emprestam ao cotidiano um toque de cuidado, de esmero. A certa altura mostrou-nos um relógio de pulso guardado na caixa, dentro da gaveta. Presente recebido, sem uso. É provável que a escolha do relógio tenha sido suscitada pelas suas composições, em que tal objeto, exibido no pulso de suas figuras, é onipresente. Presenteá-la com um relógio seria então preencher uma falta, um suposto desejo secreto de consumo da artista, mas inacessível? Aos olhos de Noemisa, um relógio pode ser mais um elemento que compõe seu universo criativo, em que vigora o adorno, e não algo útil, uma marca da modernidade que cronometra a passagem do tempo. Na visita breve, a artista levou-nos à sua antiga casa de taipa, que havia adaptado para uma espécie de oficina de trabalho. Esse momento evocou-me um episódio que testemunhei, em que os adornos e as cenas de casamento, elementos marcantes de sua obra, serviram de pretexto para que um jovem colecionador de São Paulo exibisse o registro fotográfico que tinha feito da artista vestida de noiva diante da casa de taipa, seu local de trabalho. Ao público presente no evento, o jovem colecionador narrou que havia dito à artista que o vestido de noiva pertencera à sua avó, trazendo assim, para a fotografia, algo da memória de família. A exibição do registro fotográfico de Noemisa vestida de noiva, em diferentes contextos, pareceu-me, no momento, um ato inteiramente deslocado de seu trabalho como artista, do lugar de pertencimento da artista. A iniciativa não levava em conta, sobretudo, a dinâmica das artes populares, o fato de que copiosas e variadas cenas de casamento, desde Mestre Vitalino e a Escola de Caruaru, no século passado, e noivas, desde Mestre Isabel e sua Escola, no Vale do Jequitinhonha, têm sido marcas simbólicas da arte figurativa brasileira em cerâmica. Era esse o universo em que trafegava essa artista com suas cenas inconfundíveis de rituais, dentre os quais o casamento. Modelar noiva em barro, com o requinte dos detalhes que imprimia em suas composições, pode ser lido como exercício de habilidade e o gosto pela criação; e ali também está presente esse outro, urbano, de camadas médias que as adquiria. Trata-se de um dos temas de sua obra, enfim, e não de algo que faltaria na biografia de uma mulher, quase uma sentença – casar vestida de noiva. Na ocasião em que estivemos em sua casa, pudemos perceber, contudo, que a artista havia interrompido a sua produção em cerâmica, tendo o orçamento sido preenchido com os proventos da aposentadoria. Diferentemente do que tem ocorrido em outros centros de produção artesanal, em que a obra de um mestre se dissemina, integra pessoas da família, ou mesmo se irradia na vizinhança ou localidades nas redondezas, Noemisa não deixa seguidores, como assinala Lalada. Sua obra integrou exposições no país e no exterior, faz parte de acervos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Museu do Pontal, Sítio Burle Marx, entre outras coleções privadas e públicas. A obra de Noemisa, o figurado que floresceu nos distritos rurais de Caraí, comparece, em 2018, no inventário empreendido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais que registrou como patrimônio imaterial o “Artesanato em barro do Vale do Jequitinhonha: saberes, ofícios e expressões artísticas”.
Fonte: IPHAN, “Noemisa, uma arte feminina”, publicado por Guacira Waldeck, antropóloga e pesquisadora. Consultado pela última vez em 27 de agosto de 2025.
Crédito fotográfico: Museu do Pontal, “Noemisa Batista dos Santos”. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa Batista dos Santos (2 de agosto de 1947, Caraí, MG — 10 de abril de 2024, Caraí, MG), mais conhecida como Mestra Noemisa Batista, ou apenas Noemisa Batista, foi uma ceramista e escultora brasileira. Reconhecida como uma das maiores expoentes da arte popular do Vale do Jequitinhonha, Noemisa aprendeu a trabalhar com o barro ainda na infância, orientada por sua mãe, Joana Batista, também ceramista, responsável pela criação da tradicional moringa feminina com três bolas. Sofreu influência de vivências comunitárias e pelo universo feminino rural, além de integrar uma rede de mestras ceramistas do Jequitinhonha que incluía outras artistas populares como Ulbana de Tal e Maria da Soledade. Suas obras destacam-se por representar cenas do cotidiano, festas religiosas, maternidade e figuras femininas detalhadas, com traços expressivos, roupas adornadas e sutis toques de cor, mantendo o barro natural como base. Recebeu reconhecimento nacional e internacional, participando de exposições como Brésil – Arts Populaires no Grand Palais (Paris, 1987) e a Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 Anos (São Paulo, 2000). Suas peças integram acervos de instituições como o Museu do Folclore Edison Carneiro (RJ), o Museu da Casa do Pontal (RJ) e o Museu de Arte Popular Brasileira, em João Pessoa (PB), além de diversas coleções privadas.
Noemisa Batista dos Santos | Arremate Arte
Nascida por volta de 1947 em Caraí, município do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Noemisa Batista dos Santos, conhecida como Mestra Noemisa Batista, construiu uma das trajetórias mais emblemáticas da arte popular brasileira. Filha de Joana Batista, ceramista reconhecida por suas moringas femininas com três bolas — um ícone visual da tradição ceramista local —, Noemisa cresceu em um ambiente no qual o barro não era apenas matéria-prima, mas expressão cultural, memória familiar e resistência feminina.
Desde muito jovem, acompanhava o trabalho da mãe, absorvendo as técnicas tradicionais de modelagem enquanto desenvolvia um olhar atento ao cotidiano das mulheres e comunidades ao seu redor. O saber ancestral, transmitido oralmente e pelas mãos, foi a base de sua formação, mas o que Noemisa fez com esse legado a tornou única: em vez de apenas replicar formas consagradas, ela passou a moldar cenas inteiras de vivência rural — festas religiosas, procissões, batizados, casamentos, mães com filhos, lavadeiras, mulheres sonhadoras. Suas peças, quase sempre figurativas e narrativas, traziam o povo do Jequitinhonha à tona, com detalhes minuciosos, gestos delicados e uma expressividade profundamente poética.
A artista não apenas criou personagens; ela moldou vidas. Suas figuras femininas, muitas vezes esculpidas com vestidos rendados, colares, brincos e cabelos trançados, revelam uma estética própria, que valoriza a beleza do barro natural com pequenas intervenções de cor, geralmente em tons suaves. A paleta usada era comedida, mas estrategicamente aplicada para acentuar emoções, elementos simbólicos ou peças do vestuário. Em muitas esculturas, Noemisa se autorretratava: uma mulher de feições serenas, quase contemplativas, revelando não apenas seu domínio técnico, mas uma introspecção rara na cerâmica figurativa popular.
Seu trabalho começou a ganhar notoriedade nacional a partir dos anos 1980, quando pesquisadores, curadores e colecionadores voltaram seus olhares para o Vale do Jequitinhonha. Em 1987, participou da mostra internacional Brésil – Arts Populaires, no Grand Palais, em Paris, projetando sua arte para além das fronteiras do Brasil. No ano 2000, foi uma das artistas destacadas na Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 Anos, realizada em São Paulo, evento que reafirmou sua importância dentro do panorama da arte brasileira. Ao longo das décadas seguintes, Mestra Noemisa consolidou-se como referência absoluta da cerâmica de tradição popular, sendo reconhecida também como uma voz feminina potente dentro de um campo muitas vezes dominado por nomes masculinos.
Suas obras integram os acervos de instituições de prestígio, como o Museu do Folclore Edison Carneiro (Rio de Janeiro), o Museu da Casa do Pontal (Rio de Janeiro), e o Museu de Arte Popular Brasileira, no Centro Cultural São Francisco, em João Pessoa. Cada peça sua carrega não apenas uma assinatura artística, mas uma crônica silenciosa sobre a vida no sertão mineiro, marcada por fé, afeto e resistência.
Apesar do reconhecimento crescente, Noemisa sempre permaneceu em Caraí, fiel às raízes e à simplicidade de sua vida no interior. Recusou-se a transformar sua arte em produto de massa e nunca deixou de moldar com as próprias mãos, mantendo um processo manual e íntimo, em que cada escultura nascia do barro e do silêncio de sua casa-ateliê.
Noemisa Batista dos Santos faleceu em sua cidade natal, em 10 de abril de 2024, deixando um legado artístico inestimável e uma memória viva que segue inspirando novas gerações de ceramistas, pesquisadores e amantes da cultura brasileira. Sua trajetória é hoje reconhecida como símbolo da força criativa do Vale do Jequitinhonha e da centralidade das mulheres na preservação das tradições culturais do país.
Noemisa Batista dos Santos | Itaú Cultural
Noemisa Batista dos Santos (Caraí, Minas Gerais, 1947). Ceramista. Artista da região do Vale do Jequitinhonha e com uma produção figurativa, suas peças representam cenas do cotidiano e ritos católicos e se distinguem pela decoração em engobe1 com motivos florais e zoomorfos.
Nascida em Ribeirão da Capivara, distrito do município mineiro de Caraí, filha de um agricultor e uma artesã, aprende a modelar o barro com a mãe, Joana Gomes dos Santos, ceramista respeitada na região. A partir dos sete anos de idade começa a criar peças figurativas para brincar, como bois e cavalos. Em seguida, recebe encomendas de presépios e a produção em cerâmica se torna um trabalho remunerado por meio do qual a artista desenvolve uma linguagem pessoal, que se distingue da tradição familiar voltada para a produção de cerâmica utilitária. As irmãs também se dedicam à cerâmica, trabalhando a partir do repertório criado pela mãe e por Noemisa, de maneira que a produção da família adquire um estilo característico que pode ser facilmente reconhecido. Ainda que a cerâmica no Jequitinhonha seja uma atividade tradicionalmente ligada ao trabalho de mulheres, tanto a família de Noemisa quanto as de outros artistas e artesãos da região reconhecem em Ulisses Pereira Chaves (1922-2006) um grande incentivador do trabalho com argila em Caraí.
O barro de coloração rosa, vermelha ou branca vem de uma olaria próxima e é preparado de acordo com técnicas, supostamente, transmitidas pelos povos originários da região. As ferramentas utilizadas são aquelas disponíveis no ambiente, como espigas de milho, pedaços de pau e penas. Após a modelagem, as peças são pintadas com engobe vermelho e branco e decoradas com motivos florais ou desenhos de animais. As flores aparecem também em alto relevo, feito a partir da delicada aplicação desses motivos em argila sobre as peças. Em geral, os trabalhos de Noemisa são compostos a partir de uma placa de argila sobre a qual são colocadas as figuras que compõem as cenas. A produção é queimada em fornos a lenha que costumam ser construídos pelas próprias artesãs.
Cabe notar que o acabamento da cerâmica do município de Caraí se distingue daquele encontrado nas demais regiões do Vale do Jequitinhonha, não só por conta do uso dos engobes vermelho e branco e da decoração, mas por explorar a cor natural da argila queimada, exposta em grande parte da superfície das peças. Nas outras regiões, a tendência é o uso do engobe recobrindo as peças por inteiro e apresentando uma maior variedade de cores e texturas.
No que diz respeito à temática, a produção de Noemisa constitui uma crônica da vida no bairro rural em que vive a artista. Além de uma grande variedade de animais, como cachorros e tatus, estão presentes cenas do dia-a-dia e ritos religiosos, como batizados e casamentos. As mulheres são representadas com vestidos estampados e acessórios elaborados, como brincos, bolsas e sapatos; os homens, em postura viril, com ombros largos, aparecem como caçadores, soldados ou médicos. Com um repertório de cerca de 40 bonecos, as figuras da artista incluem roda de fiar, roda de girar mandioca, cadeia, folião, cantador e abelha fazendo mel, entre vários outros.
A cena do casamento é recorrente na produção da artista, ainda que haja variações em sua representação. A vestimenta dos noivos e convidados é sempre muito elaborada, com riqueza de detalhes, mas eles podem aparecer todos dentro de uma capelinha ou próximos ao altar, na presença do padre. As capelinhas também apresentam variações, com a cruz do topo mostrando a imagem de Jesus ou não. Mas, independentemente das variações, costumam estar presentes: a placa de argila como base para construção da cena, a minuciosa decoração em engobe e o nome da artista, assinado em letra cursiva, que orna com os motivos da decoração, geralmente ocupando lugar de destaque na peça.
Quanto aos animais, chama atenção o Cachorro caçador, trabalho no qual um cachorro em posição de alerta, tendo o corpo decorado com grafismos e carregando uma grossa coleira, observa uma cobra toda enrolada. O padrão gráfico pontilhado que cobre toda a superfície da cobra está presente também no corpo do cachorro e no adorno lateral da placa que sustenta a cena, gerando integração entre os elementos da peça. Já em Tatu, enquanto o animal recebe um tratamento que acrescenta textura aos grafismos, buscando remeter à sensação de um casco de tatu real, a toca do tatu é idealizada como tendo um formato semelhante a um forno de cerâmica recoberto de motivos florais e com um buquê de flores no topo.
A partir da década de 1970, o trabalho de Noemisa passa a ser exposto pelo Brasil e no exterior, integrando acervos de museus e coleções particulares. Entre as exposições estão Brésil Arts Populaires (Paris, 1987) e a Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento (São Paulo, 2000). Suas obras também integram o acervo do Museu Casa do Pontal e do Museu de Folclore Edison Carneiro, ambos no Rio de Janeiro, e do Centro Cultural de São Francisco, na Paraíba, dentre outros.
Um dos nomes mais destacados da arte figurativa do Vale do Jequitinhonha, Noemisa desenvolve uma linguagem própria a partir da herança cultural familiar, na qual interpreta a realidade que a cerca.
Exposições Individuais
1989 – Individual de Noemisa
2000 – Individual de Noemisa
2017 – Crônicas de Noemisa – 50 anos de cerâmica
Exposições Coletivas
1987 – Brésil – Arts Populaires
2000 – Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento
2000 – Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento (edição de dezembro)
2001 – Mostra Vale do Jequitinhonha
2001 – Expressão Popular
2003 – Santorixá
2006 – Viva Cultura Viva
2008 – Afluências – A arte do Jequitinhonha
2009 – Influências da Arte do Vale do Jequitinhonha
2014 – Há Escolas que São Gaiolas e Há Escolas que São Asas
2019 – Assim, Como Acontece
2020 – Mulheres na Arte Popular
Exposições Póstumas
2020 – Até logo, até já
2022 – Terra/Terra – O Jequitinhonha e suas tradições
2022 – Coleção Brasileira – de Alberto e Priscila Freire
2024 – Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro
2025 – Coleção Vilma Eid – Em cada canto
Fonte: NOEMISA. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025. Acesso em: 21 de agosto de 2025. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
Noemisa Batista dos Santos | Wikipédia
Noemisa Batista dos Santos (Caraí, 1946 – 2024) foi uma renomada escultora e ceramista brasileira, considerada uma das mais importantes representantes da arte popular do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.
Aprendeu a trabalhar com barro ainda na infância, observando e auxiliando sua mãe, Joana Batista, que produzia panelas. Com o tempo, desenvolveu um estilo próprio, figurativo e detalhado, moldando cenas do cotidiano sertanejo com forte presença feminina. Suas esculturas retratam com sensibilidade momentos como casamentos, batizados, romarias, além de animais e figuras religiosas. Muitas obras apresentam autorrepresentações — tanto idealizadas quanto realistas — que evidenciam seu olhar autobiográfico e poético sobre o mundo rural.
As peças de Noemisa foram expostas em diversos espaços de importância nacional e internacional, como a exposição Brésil – Arts Populaires (em Paris, 1987), e a Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 Anos (em São Paulo, 2000).[2] Suas obras também integram acervos de instituições como o Museu do Louvre (na seção de arte popular), o Museu do Folclore Edison Carneiro e o Museu Afro Brasil.
Apesar do reconhecimento, Noemisa viveu de forma simples em sua terra natal, mantendo uma produção artística ligada à sua comunidade e às tradições do sertão mineiro. Era considerada uma "mestra" no universo da cerâmica popular brasileira e uma das vozes mais marcantes da produção artística do Jequitinhonha.
Faleceu em 2024, aos 78 anos, deixando um legado que continua a influenciar gerações de artistas populares e artesãos da região.
Legado e reconhecimento
A obra de Noemisa Batista é amplamente valorizada por estudiosos da arte popular brasileira. Sua poética visual e a maneira como traduzia o universo feminino e rural mineiro fizeram com que sua produção fosse frequentemente comparada à de outros mestres do barro do Vale do Jequitinhonha. Em vida, foi homenageada por instituições acadêmicas e culturais, como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Funarte e diversas galerias especializadas em arte popular.
Fonte: Wikipédia. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa, uma arte feminina | IPHAN
Em 10 de abril, Minas Gerais, o Brasil e os mundos da arte popular perderam Noemisa Batista Santos, nascida em Ribeirão da Capivara, em Caraí, no Vale do Jequitinhonha em 1946. A mãe, Joana, paneleira, dominava os usos do barro para abastecer a casa de utensílios – panelas, vasos, potes, moringas – também confeccionados para a esporádica venda na feira de sábado, troca por alguma outra coisa ou presentear vizinhos e amigos. Na meninice, Noemisa, como muitas crianças em centros oleiros, modelava seus boizinhos, cavalinhos, para brincar. Jovem, vivenciou mudanças na região, quando houve gradativa substituição de objetos feitos artesanalmente com o barro por produtos industrializados, e o início da ação de política pública voltada para a promoção da atividade artesanal como fonte de renda, pela então autarquia Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha), a partir dos anos 1970. Era nesse contexto de transformação que os usos do barro passaram a ter como alvo a criação de objetos investidos de outros sentidos, voltados para o mercado das camadas médias urbanas, de instituições museológicas, de colecionadores, de galerias e lojas de decoração de interiores.
Com marcas simbólicas personalíssimas, Noemisa produziu cenas incomparáveis de flagrantes da vida cotidiana, notadamente rural, impressas no barro. A pesquisadora Lalada Dalglish, em sua pesquisa Noivas da seca: cerâmica popular no Vale do Jequitinhonha, menciona a afinidade eletiva entre Noemisa e Mestre Vitalino: “as cenas figurativas, realistas e descritivas, poderiam ser comparadas às de Mestre Vitalino, pois lidam com temas do cotidiano de pessoas comuns”. Contudo, vale salientar que Noemisa, numa das regiões mais ásperas, pobres, castigadas por secas intermitentes, recria, nos anos 1970, o leque temático, imprimindo em suas composições sua assinatura inconfundível, na qual o ritual ou o banal, a celebração ou o trabalho, as figuras humanas ou os animais revestem-se de ornamento, como se estivessem cotidianamente prontas para uma ocasião especial em suas vidas. Seus bois não parecem nem um pouco destinados ao matadouro, por exemplo, nem para o trabalho de tração. Há uma atmosfera, digamos, solene em seu trabalho, que alia dois matizes dos pigmentos de barro, o tauá (tom terroso, matiz de vermelho) e tabatinga (branco). Angela Mascelani, em Caminhos da arte popular – O vale do Jequitinhonha, observa na artista o estilo “econômico e exuberante”, em que detalhes sobressaem em suas cenas. Enfim, com a parcimoniosa paleta de cores retiradas dos recursos disponíveis na região, a artista cria cenas exuberantes numa das mais vigorosas linhagens das artes visuais populares, o figurativismo descritivo, que ela marca com estilo pessoal, impregnado da inarredável adesão ao adorno.
Em Bonecos e vasilhas de barro no Vale do Jequitinhonha: Minas Gerais – Brasil, Lélia Coelho Frota realizou um registro pioneiro que desvela o surgimento de figurado, classificado como artístico, artesanato, mas, localmente, então, nomeado “enfeite”, categoria nativa que compreende o que estava destinado aos mercados de bens simbólicos urbanos, às coleções, galerias, instituições museológicas. Em seu Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, Lélia distingue a obra de Noemisa: “uma das artistas mais originais da arte em cerâmica brasileira”, com “sua arte feminina”.
É notável perceber como certos elementos do fazer artístico de Noemisa habitavam a vida cotidiana. A casa de alvenaria, por exemplo, onde morava, em Ribeirão da Capivara, instalada numa paisagem isolada, sem casas vizinhas, sem um estabelecimento de comércio; nela, o voto de beleza surgia nas linhas suaves dos ornamentos florais desenhados com tabatinga e tauá sobre a superfície branca da parede.
Era o ano de 2019, quando lá chegamos para entrevista e registro fotográfico com a expectativa de exibição e venda do trabalho em cerâmica das famílias de Noemisa e de Ulisses Pereira Chaves (1924-2006), na exposição Arte do barro, arte na vida – Caraí, MG, no Programa Sala do Artista popular. Participaram a irmã, Geralda, também ceramista, os filhos de Ulisses Margarida e José Maria, e a neta, Rosana, filha de Margarida. Embora não nos estivesse aguardando, Noemisa recebeu-nos em vestido colorido com detalhes florais e seus inseparáveis brincos e colar, o que nos pareceu em sintonia com suas cenas que emprestam ao cotidiano um toque de cuidado, de esmero. A certa altura mostrou-nos um relógio de pulso guardado na caixa, dentro da gaveta. Presente recebido, sem uso. É provável que a escolha do relógio tenha sido suscitada pelas suas composições, em que tal objeto, exibido no pulso de suas figuras, é onipresente. Presenteá-la com um relógio seria então preencher uma falta, um suposto desejo secreto de consumo da artista, mas inacessível? Aos olhos de Noemisa, um relógio pode ser mais um elemento que compõe seu universo criativo, em que vigora o adorno, e não algo útil, uma marca da modernidade que cronometra a passagem do tempo.
Na visita breve, a artista levou-nos à sua antiga casa de taipa, que havia adaptado para uma espécie de oficina de trabalho. Esse momento evocou-me um episódio que testemunhei, em que os adornos e as cenas de casamento, elementos marcantes de sua obra, serviram de pretexto para que um jovem colecionador de São Paulo exibisse o registro fotográfico que tinha feito da artista vestida de noiva diante da casa de taipa, seu local de trabalho. Ao público presente no evento, o jovem colecionador narrou que havia dito à artista que o vestido de noiva pertencera à sua avó, trazendo assim, para a fotografia, algo da memória de família. A exibição do registro fotográfico de Noemisa vestida de noiva, em diferentes contextos, pareceu-me, no momento, um ato inteiramente deslocado de seu trabalho como artista, do lugar de pertencimento da artista. A iniciativa não levava em conta, sobretudo, a dinâmica das artes populares, o fato de que copiosas e variadas cenas de casamento, desde Mestre Vitalino e a Escola. de Caruaru, no século passado, e noivas, desde Mestre Isabel e sua Escola, no Vale do Jequitinhonha, têm sido marcas simbólicas da arte figurativa brasileira em cerâmica.
Era esse o universo em que trafegava essa artista com suas cenas inconfundíveis de rituais, dentre os quais o casamento. Modelar noiva em barro, com o requinte dos detalhes que imprimia em suas composições, pode ser lido como exercício de habilidade e o gosto pela criação; e ali também está presente esse outro, urbano, de camadas médias que as adquiria. Trata-se de um dos temas de sua obra, enfim, e não de algo que faltaria na biografia de uma mulher, quase uma sentença – casar vestida de noiva.
Na ocasião em que estivemos em sua casa, pudemos perceber, contudo, que a artista havia interrompido a sua produção em cerâmica, tendo o orçamento sido preenchido com os proventos da aposentadoria. Diferentemente do que tem ocorrido em outros centros de produção artesanal, em que a obra de um mestre se dissemina, integra pessoas da família, ou mesmo se irradia na vizinhança ou localidades nas redondezas, Noemisa não deixa seguidores, como assinala Lalada. Sua obra integrou exposições no país e no exterior, faz parte de acervos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Museu do Pontal, Sítio Burle Marx, entre outras coleções privadas e públicas.
A obra de Noemisa, o figurado que floresceu nos distritos rurais de Caraí, comparece, em 2018, no inventário empreendido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais que registrou como patrimônio imaterial o “Artesanato em barro do Vale do Jequitinhonha: saberes, ofícios e expressões artísticas”.
Fonte: Iphan, “Noemisa, uma arte feminina”, texto de Guacira Waldeck, antropóloga e pesquisadora. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Mestra Noemisa Batista tem legado perpetuado pelos sobrinhos | Casa
Noemisa Batista do Santos foi a responsável por uma das trajetórias mais eloquentes da arte popular brasileira. Falecida em abril de 2024, aos 77 anos, a artesã é reconhecida por sua originalidade e pela capacidade de contar histórias a partir do barro.
Considerada pioneira em algumas das temáticas da região, tornou-se uma das principais referências do Vale do Jequitinhonha, região em Minas Gerais – berço da cerâmica artística e utilitária brasileira. Natural da cidade mineira de Caraí, Noemisa vivia e produzia as suas peças na região do Córrego de Ribeirão da Capivara.
“O trabalho dela é de uma expressividade tão forte sobre Caraí, sendo possível afirmar que não existiria a arte do município como a conhecemos hoje se não fosse pela Noemisa. Usando o barro, ela se tornou uma espécie de cronista, retratando o trivial e transformando a simplicidade do cotidiano em obras de arte”, revela o curador de arte popular Lucas Lassen, diretor da Pairol, marca que atua com artesanato popular brasileiro.
Noemisa começou a modelar o barro ainda criança, quando acompanhava a mãe ceramista na confecção de peças que serviam para complementar a renda da família. Ela fazia pequenos brinquedos e o seu trabalho diferenciado começou a se destacar entre os artesãos locais.
“Sem uma preocupação muito grande com a função do objeto, ela passou a retratar o cotidiano do vale, trazendo animais, pessoas e cenas específicas ligadas às celebrações populares, como casamentos e batizados, além de peças com contexto religiosos, como igrejas e presépios. Como tinha a ludicidade muito aflorada, também representava contos antigos”, conta Lucas.
A delicadeza da obra de Noemisa a levou a inúmeras mostras pelo Brasil e todo o mundo. Em 1987, suas esculturas integraram a exposição Brésil, Arts Populaires, no Grand Palais, em Paris. Já em 2000, algumas peças fizeram parte da Mostra do Redescobrimento, da Fundação Bienal de São Paulo.
Além disso, a sua arte está no acervo permanente do Museu de Folclore Edison Carneiro (RJ), no Museu da Casa do Pontal - Coleção de Jacques van de Beuque (RJ) e no Museu de Arte Popular Brasileira do Centro Cultural de São Francisco, em João Pessoa (PB).
Como ela nunca se casou nem teve filhos, coube a seus dois sobrinhos levar o seu legado adiante. Hoje com 46 anos, José Nilo Francisco do Santos, filho do irmão de Noemisa, começou no mundo das artes aos 10 anos.
“Na nossa família, a cerâmica chegou muito antes da tia Noemisa, mas foi com ela que fui aprendendo a partir da observação. Depois, comecei a arriscar fazendo uma coisinha aqui e outra ali, até que ela foi nos ensinando as técnicas”, revela José, que também é lavrador.
Adriano Rosa do Santos, de 44 anos, também tem seguido os passos da tia na cerâmica, profissão que divide com a de lavrador, como o primo. Como uma homenagem à trajetória de Noemisa, os dois sobrinhos tiveram algumas de suas peças apresentadas pela Paiol no 18º Salão de Artesanato em São Paulo, que aconteceu no final de agosto.
Fonte: Casa e Jardim, “Mestra Noemisa Batista tem legado perpetuado pelos sobrinhos”, publicado em 4 de setembro de 2024. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa | Arte Popular do Brasil
Noemisa Batista dos Santos é uma das mais conhecidas ceramistas do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Ela juntamente com outros nomes como, Isabel Mendes da Cunha e Ulisses Pereira Chaves são responsáveis pela enorme projeção nacional e internacional da arte do Vale do Jequitinhonha, alguns autores chegam a considerá-la uma espécie de mestre Vitalino de Minas Gerais. Noemisa nasceu em 1947 em Ribeirão do Capivara, Município de Caraí, Minas Gerais. Filha de um lavrador e de uma respeitada ceramista, Joana Gomes dos Santos, Noemisa aprendeu sua arte com a mãe, quando tinha apenas sete anos. Apesar de sua mãe trabalhar com cerâmica utilitária, Noemisa nunca gostou de fazer panelas, potes ou jarras; desde muito pequena gostava de criar pequenos animais de barro para suas brincadeiras. Noemisa se tornou um dos mais requisitados nomes da arte figurativa do Vale do Jequitinhonha; ainda na década de 70 seu trabalho já era exposto no Brasil e no exterior e fazia parte do acervo de museus e de importantes coleções particulares.
O barro usado por Noemisa é o mesmo utilizado pelos demais ceramistas de Caraí. De coloração rosa, vermelha e branca, o barro é extraído da fazenda Senhor Serafim; sua irmã Santa é a responsável pela extração. O preparo do barro e as técnicas utilizadas foram provavelmente aprendidos com os nativos da região e são os mesmos utilizados pelos demais artesãos. O barro depois de extraído e seco ao sol é triturado e pulverizado. Depois de misturado com água é armazenado em locais escuros e sem ventilação até ser usado na modelagem. Concluída a modelagem, as peças são pintadas e decoradas usando sempre a técnica do engobe nas cores vermelha e branca. Os temas dos decorados são quase sempre motivos florais ou figuras de animais.
A temática do universo artístico de Noemisa é bastante diversificada: vai das cenas cotidianas à arte religiosa. Ritos religiosos, como casamentos, batizados e funerais, igrejas e santuários são temas sempre presentes na sua obra. As “mulheres de Noemisa” são mostradas em atividades consideradas como respeitosas e necessárias. Elas normalmente usam vestidos estampados e assessórios como brincos, sapatos e bolsas. Os homens, normalmente em poses viris usam chapéu, relógio, botas e esporas. São mostrados como caçadores, soldados ou médicos. Noemisa também cria uma variedade enorme de animais, como bois, cavalos e cachorros.
Apesar de os trabalhos de Noemisa terem alcançado um alto preço no mercado, ela continua vivendo precariamente; quem lucra com seus trabalhos são os intermediários. Ela conta que pelo fato de ser analfabeta, não soube administrar com eficiência uma das melhores fases de sua produção, a década de 80, quando vendeu muitas peças para a CODEVALE. Ela continua produzindo, mas não com a mesma intensidade de antes.
Dentre as exposições mais importantes que participou pode-se citar a exposição Brésil Arts Populaires (Paris, 1987) e a Mostra do Redescobrimento (São Paulo, 2000). Importantes museus como o Museu Casa do Pontal (Rio de Janeiro, RJ), o Museu de Folclore Edison Carneiro (Rio de Janeiro, RJ) e o Centro Cultural de São Francisco (João Pessoa, PB) possuem em seus acervos obras de Noemisa.
Fonte: Arte Popular do Brasil, “Noemisa”. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa Batista dos Santos | IPHAN
Em 10 de abril, Minas Gerais, o Brasil e os mundos da arte popular perderam Noemisa Batista Santos, nascida em Ribeirão da Capivara, em Caraí, no Vale do Jequitinhonha em 1946. A mãe, Joana, paneleira, dominava os usos do barro para abastecer a casa de utensílios – panelas, vasos, potes, moringas – também confeccionados para a esporádica venda na feira de sábado, troca por alguma outra coisa ou presentear vizinhos e amigos. Na meninice, Noemisa, como muitas crianças em centros oleiros, modelava seus boizinhos, cavalinhos, para brincar. Jovem, vivenciou mudanças na região, quando houve gradativa substituição de objetos feitos artesanalmente com o barro por produtos industrializados, e o início da ação de política pública voltada para a promoção da atividade artesanal como fonte de renda, pela então autarquia Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha), a partir dos anos 1970. Era nesse contexto de transformação que os usos do barro passaram a ter como alvo a criação de objetos investidos de outros sentidos, voltados para o mercado das camadas médias urbanas, de instituições museológicas, de colecionadores, de galerias e lojas de decoração de interiores. Com marcas simbólicas personalíssimas, Noemisa produziu cenas incomparáveis de flagrantes da vida cotidiana, notadamente rural, impressas no barro. A pesquisadora Lalada Dalglish, em sua pesquisa Noivas da seca: cerâmica popular no Vale do Jequitinhonha, menciona a afinidade eletiva entre Noemisa e Mestre Vitalino: “as cenas figurativas, realistas e descritivas, poderiam ser comparadas às de Mestre Vitalino, pois lidam com temas do cotidiano de pessoas comuns”.
Contudo, vale salientar que Noemisa, numa das regiões mais ásperas, pobres, castigadas por secas intermitentes, recria, nos anos 1970, o leque temático, imprimindo em suas composições sua assinatura inconfundível, na qual o ritual ou o banal, a celebração ou o trabalho, as figuras humanas ou os animais revestem-se de ornamento, como se estivessem cotidianamente prontas para uma ocasião especial em suas vidas. Seus bois não parecem nem um pouco destinados ao matadouro, por exemplo, nem para o trabalho de tração. Há uma atmosfera, digamos, solene em seu trabalho, que alia dois matizes dos pigmentos de barro, o tauá (tom terroso, matiz de vermelho) e tabatinga (branco). Angela Mascelani, em Caminhos da arte popular – O vale do Jequitinhonha, observa na artista o estilo “econômico e exuberante”, em que detalhes sobressaem em suas cenas. Enfim, com a parcimoniosa paleta de cores retiradas dos recursos disponíveis na região, a artista cria cenas exuberantes numa das mais vigorosas linhagens das artes visuais populares, o figurativismo descritivo, que ela marca com estilo pessoal, impregnado da inarredável adesão ao adorno. Em Bonecos e vasilhas de barro no Vale do Jequitinhonha: Minas Gerais – Brasil, Lélia Coelho Frota realizou um registro pioneiro que desvela o surgimento de figurado, classificado como artístico, artesanato, mas, localmente, então, nomeado “enfeite”, categoria nativa que compreende o que estava destinado aos mercados de bens simbólicos urbanos, às coleções, galerias, instituições museológicas. Em seu Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, Lélia distingue a obra de Noemisa: “uma das artistas mais originais da arte em cerâmica brasileira”, com “sua arte feminina”. É notável perceber como certos elementos do fazer artístico de Noemisa habitavam a vida cotidiana. A casa de alvenaria, por exemplo, onde morava, em Ribeirão da Capivara, instalada numa paisagem isolada, sem casas vizinhas, sem um estabelecimento de comércio; nela, o voto de beleza surgia nas linhas suaves dos ornamentos florais desenhados com tabatinga e tauá sobre a superfície branca da parede. Era o ano de 2019, quando lá chegamos para entrevista e registro fotográfico com a expectativa de exibição e venda do trabalho em cerâmica das famílias de Noemisa e de Ulisses Pereira Chaves (1924-2006), na exposição Arte do barro, arte na vida – Caraí, MG, no Programa Sala do Artista popular. Participaram a irmã, Geralda, também ceramista, os filhos de Ulisses Margarida e José Maria, e a neta, Rosana, filha de Margarida. Embora não nos estivesse aguardando, Noemisa recebeu-nos em vestido colorido com detalhes florais e seus inseparáveis brincos e colar, o que nos pareceu em sintonia com suas cenas que emprestam ao cotidiano um toque de cuidado, de esmero. A certa altura mostrou-nos um relógio de pulso guardado na caixa, dentro da gaveta. Presente recebido, sem uso. É provável que a escolha do relógio tenha sido suscitada pelas suas composições, em que tal objeto, exibido no pulso de suas figuras, é onipresente. Presenteá-la com um relógio seria então preencher uma falta, um suposto desejo secreto de consumo da artista, mas inacessível? Aos olhos de Noemisa, um relógio pode ser mais um elemento que compõe seu universo criativo, em que vigora o adorno, e não algo útil, uma marca da modernidade que cronometra a passagem do tempo. Na visita breve, a artista levou-nos à sua antiga casa de taipa, que havia adaptado para uma espécie de oficina de trabalho. Esse momento evocou-me um episódio que testemunhei, em que os adornos e as cenas de casamento, elementos marcantes de sua obra, serviram de pretexto para que um jovem colecionador de São Paulo exibisse o registro fotográfico que tinha feito da artista vestida de noiva diante da casa de taipa, seu local de trabalho. Ao público presente no evento, o jovem colecionador narrou que havia dito à artista que o vestido de noiva pertencera à sua avó, trazendo assim, para a fotografia, algo da memória de família. A exibição do registro fotográfico de Noemisa vestida de noiva, em diferentes contextos, pareceu-me, no momento, um ato inteiramente deslocado de seu trabalho como artista, do lugar de pertencimento da artista. A iniciativa não levava em conta, sobretudo, a dinâmica das artes populares, o fato de que copiosas e variadas cenas de casamento, desde Mestre Vitalino e a Escola de Caruaru, no século passado, e noivas, desde Mestre Isabel e sua Escola, no Vale do Jequitinhonha, têm sido marcas simbólicas da arte figurativa brasileira em cerâmica. Era esse o universo em que trafegava essa artista com suas cenas inconfundíveis de rituais, dentre os quais o casamento. Modelar noiva em barro, com o requinte dos detalhes que imprimia em suas composições, pode ser lido como exercício de habilidade e o gosto pela criação; e ali também está presente esse outro, urbano, de camadas médias que as adquiria. Trata-se de um dos temas de sua obra, enfim, e não de algo que faltaria na biografia de uma mulher, quase uma sentença – casar vestida de noiva. Na ocasião em que estivemos em sua casa, pudemos perceber, contudo, que a artista havia interrompido a sua produção em cerâmica, tendo o orçamento sido preenchido com os proventos da aposentadoria. Diferentemente do que tem ocorrido em outros centros de produção artesanal, em que a obra de um mestre se dissemina, integra pessoas da família, ou mesmo se irradia na vizinhança ou localidades nas redondezas, Noemisa não deixa seguidores, como assinala Lalada. Sua obra integrou exposições no país e no exterior, faz parte de acervos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Museu do Pontal, Sítio Burle Marx, entre outras coleções privadas e públicas. A obra de Noemisa, o figurado que floresceu nos distritos rurais de Caraí, comparece, em 2018, no inventário empreendido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais que registrou como patrimônio imaterial o “Artesanato em barro do Vale do Jequitinhonha: saberes, ofícios e expressões artísticas”.
Fonte: IPHAN, “Noemisa, uma arte feminina”, publicado por Guacira Waldeck, antropóloga e pesquisadora. Consultado pela última vez em 27 de agosto de 2025.
Crédito fotográfico: Museu do Pontal, “Noemisa Batista dos Santos”. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa Batista dos Santos (2 de agosto de 1947, Caraí, MG — 10 de abril de 2024, Caraí, MG), mais conhecida como Mestra Noemisa Batista, ou apenas Noemisa Batista, foi uma ceramista e escultora brasileira. Reconhecida como uma das maiores expoentes da arte popular do Vale do Jequitinhonha, Noemisa aprendeu a trabalhar com o barro ainda na infância, orientada por sua mãe, Joana Batista, também ceramista, responsável pela criação da tradicional moringa feminina com três bolas. Sofreu influência de vivências comunitárias e pelo universo feminino rural, além de integrar uma rede de mestras ceramistas do Jequitinhonha que incluía outras artistas populares como Ulbana de Tal e Maria da Soledade. Suas obras destacam-se por representar cenas do cotidiano, festas religiosas, maternidade e figuras femininas detalhadas, com traços expressivos, roupas adornadas e sutis toques de cor, mantendo o barro natural como base. Recebeu reconhecimento nacional e internacional, participando de exposições como Brésil – Arts Populaires no Grand Palais (Paris, 1987) e a Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 Anos (São Paulo, 2000). Suas peças integram acervos de instituições como o Museu do Folclore Edison Carneiro (RJ), o Museu da Casa do Pontal (RJ) e o Museu de Arte Popular Brasileira, em João Pessoa (PB), além de diversas coleções privadas.
Noemisa Batista dos Santos | Arremate Arte
Nascida por volta de 1947 em Caraí, município do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Noemisa Batista dos Santos, conhecida como Mestra Noemisa Batista, construiu uma das trajetórias mais emblemáticas da arte popular brasileira. Filha de Joana Batista, ceramista reconhecida por suas moringas femininas com três bolas — um ícone visual da tradição ceramista local —, Noemisa cresceu em um ambiente no qual o barro não era apenas matéria-prima, mas expressão cultural, memória familiar e resistência feminina.
Desde muito jovem, acompanhava o trabalho da mãe, absorvendo as técnicas tradicionais de modelagem enquanto desenvolvia um olhar atento ao cotidiano das mulheres e comunidades ao seu redor. O saber ancestral, transmitido oralmente e pelas mãos, foi a base de sua formação, mas o que Noemisa fez com esse legado a tornou única: em vez de apenas replicar formas consagradas, ela passou a moldar cenas inteiras de vivência rural — festas religiosas, procissões, batizados, casamentos, mães com filhos, lavadeiras, mulheres sonhadoras. Suas peças, quase sempre figurativas e narrativas, traziam o povo do Jequitinhonha à tona, com detalhes minuciosos, gestos delicados e uma expressividade profundamente poética.
A artista não apenas criou personagens; ela moldou vidas. Suas figuras femininas, muitas vezes esculpidas com vestidos rendados, colares, brincos e cabelos trançados, revelam uma estética própria, que valoriza a beleza do barro natural com pequenas intervenções de cor, geralmente em tons suaves. A paleta usada era comedida, mas estrategicamente aplicada para acentuar emoções, elementos simbólicos ou peças do vestuário. Em muitas esculturas, Noemisa se autorretratava: uma mulher de feições serenas, quase contemplativas, revelando não apenas seu domínio técnico, mas uma introspecção rara na cerâmica figurativa popular.
Seu trabalho começou a ganhar notoriedade nacional a partir dos anos 1980, quando pesquisadores, curadores e colecionadores voltaram seus olhares para o Vale do Jequitinhonha. Em 1987, participou da mostra internacional Brésil – Arts Populaires, no Grand Palais, em Paris, projetando sua arte para além das fronteiras do Brasil. No ano 2000, foi uma das artistas destacadas na Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 Anos, realizada em São Paulo, evento que reafirmou sua importância dentro do panorama da arte brasileira. Ao longo das décadas seguintes, Mestra Noemisa consolidou-se como referência absoluta da cerâmica de tradição popular, sendo reconhecida também como uma voz feminina potente dentro de um campo muitas vezes dominado por nomes masculinos.
Suas obras integram os acervos de instituições de prestígio, como o Museu do Folclore Edison Carneiro (Rio de Janeiro), o Museu da Casa do Pontal (Rio de Janeiro), e o Museu de Arte Popular Brasileira, no Centro Cultural São Francisco, em João Pessoa. Cada peça sua carrega não apenas uma assinatura artística, mas uma crônica silenciosa sobre a vida no sertão mineiro, marcada por fé, afeto e resistência.
Apesar do reconhecimento crescente, Noemisa sempre permaneceu em Caraí, fiel às raízes e à simplicidade de sua vida no interior. Recusou-se a transformar sua arte em produto de massa e nunca deixou de moldar com as próprias mãos, mantendo um processo manual e íntimo, em que cada escultura nascia do barro e do silêncio de sua casa-ateliê.
Noemisa Batista dos Santos faleceu em sua cidade natal, em 10 de abril de 2024, deixando um legado artístico inestimável e uma memória viva que segue inspirando novas gerações de ceramistas, pesquisadores e amantes da cultura brasileira. Sua trajetória é hoje reconhecida como símbolo da força criativa do Vale do Jequitinhonha e da centralidade das mulheres na preservação das tradições culturais do país.
Noemisa Batista dos Santos | Itaú Cultural
Noemisa Batista dos Santos (Caraí, Minas Gerais, 1947). Ceramista. Artista da região do Vale do Jequitinhonha e com uma produção figurativa, suas peças representam cenas do cotidiano e ritos católicos e se distinguem pela decoração em engobe1 com motivos florais e zoomorfos.
Nascida em Ribeirão da Capivara, distrito do município mineiro de Caraí, filha de um agricultor e uma artesã, aprende a modelar o barro com a mãe, Joana Gomes dos Santos, ceramista respeitada na região. A partir dos sete anos de idade começa a criar peças figurativas para brincar, como bois e cavalos. Em seguida, recebe encomendas de presépios e a produção em cerâmica se torna um trabalho remunerado por meio do qual a artista desenvolve uma linguagem pessoal, que se distingue da tradição familiar voltada para a produção de cerâmica utilitária. As irmãs também se dedicam à cerâmica, trabalhando a partir do repertório criado pela mãe e por Noemisa, de maneira que a produção da família adquire um estilo característico que pode ser facilmente reconhecido. Ainda que a cerâmica no Jequitinhonha seja uma atividade tradicionalmente ligada ao trabalho de mulheres, tanto a família de Noemisa quanto as de outros artistas e artesãos da região reconhecem em Ulisses Pereira Chaves (1922-2006) um grande incentivador do trabalho com argila em Caraí.
O barro de coloração rosa, vermelha ou branca vem de uma olaria próxima e é preparado de acordo com técnicas, supostamente, transmitidas pelos povos originários da região. As ferramentas utilizadas são aquelas disponíveis no ambiente, como espigas de milho, pedaços de pau e penas. Após a modelagem, as peças são pintadas com engobe vermelho e branco e decoradas com motivos florais ou desenhos de animais. As flores aparecem também em alto relevo, feito a partir da delicada aplicação desses motivos em argila sobre as peças. Em geral, os trabalhos de Noemisa são compostos a partir de uma placa de argila sobre a qual são colocadas as figuras que compõem as cenas. A produção é queimada em fornos a lenha que costumam ser construídos pelas próprias artesãs.
Cabe notar que o acabamento da cerâmica do município de Caraí se distingue daquele encontrado nas demais regiões do Vale do Jequitinhonha, não só por conta do uso dos engobes vermelho e branco e da decoração, mas por explorar a cor natural da argila queimada, exposta em grande parte da superfície das peças. Nas outras regiões, a tendência é o uso do engobe recobrindo as peças por inteiro e apresentando uma maior variedade de cores e texturas.
No que diz respeito à temática, a produção de Noemisa constitui uma crônica da vida no bairro rural em que vive a artista. Além de uma grande variedade de animais, como cachorros e tatus, estão presentes cenas do dia-a-dia e ritos religiosos, como batizados e casamentos. As mulheres são representadas com vestidos estampados e acessórios elaborados, como brincos, bolsas e sapatos; os homens, em postura viril, com ombros largos, aparecem como caçadores, soldados ou médicos. Com um repertório de cerca de 40 bonecos, as figuras da artista incluem roda de fiar, roda de girar mandioca, cadeia, folião, cantador e abelha fazendo mel, entre vários outros.
A cena do casamento é recorrente na produção da artista, ainda que haja variações em sua representação. A vestimenta dos noivos e convidados é sempre muito elaborada, com riqueza de detalhes, mas eles podem aparecer todos dentro de uma capelinha ou próximos ao altar, na presença do padre. As capelinhas também apresentam variações, com a cruz do topo mostrando a imagem de Jesus ou não. Mas, independentemente das variações, costumam estar presentes: a placa de argila como base para construção da cena, a minuciosa decoração em engobe e o nome da artista, assinado em letra cursiva, que orna com os motivos da decoração, geralmente ocupando lugar de destaque na peça.
Quanto aos animais, chama atenção o Cachorro caçador, trabalho no qual um cachorro em posição de alerta, tendo o corpo decorado com grafismos e carregando uma grossa coleira, observa uma cobra toda enrolada. O padrão gráfico pontilhado que cobre toda a superfície da cobra está presente também no corpo do cachorro e no adorno lateral da placa que sustenta a cena, gerando integração entre os elementos da peça. Já em Tatu, enquanto o animal recebe um tratamento que acrescenta textura aos grafismos, buscando remeter à sensação de um casco de tatu real, a toca do tatu é idealizada como tendo um formato semelhante a um forno de cerâmica recoberto de motivos florais e com um buquê de flores no topo.
A partir da década de 1970, o trabalho de Noemisa passa a ser exposto pelo Brasil e no exterior, integrando acervos de museus e coleções particulares. Entre as exposições estão Brésil Arts Populaires (Paris, 1987) e a Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento (São Paulo, 2000). Suas obras também integram o acervo do Museu Casa do Pontal e do Museu de Folclore Edison Carneiro, ambos no Rio de Janeiro, e do Centro Cultural de São Francisco, na Paraíba, dentre outros.
Um dos nomes mais destacados da arte figurativa do Vale do Jequitinhonha, Noemisa desenvolve uma linguagem própria a partir da herança cultural familiar, na qual interpreta a realidade que a cerca.
Exposições Individuais
1989 – Individual de Noemisa
2000 – Individual de Noemisa
2017 – Crônicas de Noemisa – 50 anos de cerâmica
Exposições Coletivas
1987 – Brésil – Arts Populaires
2000 – Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento
2000 – Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento (edição de dezembro)
2001 – Mostra Vale do Jequitinhonha
2001 – Expressão Popular
2003 – Santorixá
2006 – Viva Cultura Viva
2008 – Afluências – A arte do Jequitinhonha
2009 – Influências da Arte do Vale do Jequitinhonha
2014 – Há Escolas que São Gaiolas e Há Escolas que São Asas
2019 – Assim, Como Acontece
2020 – Mulheres na Arte Popular
Exposições Póstumas
2020 – Até logo, até já
2022 – Terra/Terra – O Jequitinhonha e suas tradições
2022 – Coleção Brasileira – de Alberto e Priscila Freire
2024 – Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro
2025 – Coleção Vilma Eid – Em cada canto
Fonte: NOEMISA. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025. Acesso em: 21 de agosto de 2025. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
Noemisa Batista dos Santos | Wikipédia
Noemisa Batista dos Santos (Caraí, 1946 – 2024) foi uma renomada escultora e ceramista brasileira, considerada uma das mais importantes representantes da arte popular do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.
Aprendeu a trabalhar com barro ainda na infância, observando e auxiliando sua mãe, Joana Batista, que produzia panelas. Com o tempo, desenvolveu um estilo próprio, figurativo e detalhado, moldando cenas do cotidiano sertanejo com forte presença feminina. Suas esculturas retratam com sensibilidade momentos como casamentos, batizados, romarias, além de animais e figuras religiosas. Muitas obras apresentam autorrepresentações — tanto idealizadas quanto realistas — que evidenciam seu olhar autobiográfico e poético sobre o mundo rural.
As peças de Noemisa foram expostas em diversos espaços de importância nacional e internacional, como a exposição Brésil – Arts Populaires (em Paris, 1987), e a Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 Anos (em São Paulo, 2000).[2] Suas obras também integram acervos de instituições como o Museu do Louvre (na seção de arte popular), o Museu do Folclore Edison Carneiro e o Museu Afro Brasil.
Apesar do reconhecimento, Noemisa viveu de forma simples em sua terra natal, mantendo uma produção artística ligada à sua comunidade e às tradições do sertão mineiro. Era considerada uma "mestra" no universo da cerâmica popular brasileira e uma das vozes mais marcantes da produção artística do Jequitinhonha.
Faleceu em 2024, aos 78 anos, deixando um legado que continua a influenciar gerações de artistas populares e artesãos da região.
Legado e reconhecimento
A obra de Noemisa Batista é amplamente valorizada por estudiosos da arte popular brasileira. Sua poética visual e a maneira como traduzia o universo feminino e rural mineiro fizeram com que sua produção fosse frequentemente comparada à de outros mestres do barro do Vale do Jequitinhonha. Em vida, foi homenageada por instituições acadêmicas e culturais, como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Funarte e diversas galerias especializadas em arte popular.
Fonte: Wikipédia. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa, uma arte feminina | IPHAN
Em 10 de abril, Minas Gerais, o Brasil e os mundos da arte popular perderam Noemisa Batista Santos, nascida em Ribeirão da Capivara, em Caraí, no Vale do Jequitinhonha em 1946. A mãe, Joana, paneleira, dominava os usos do barro para abastecer a casa de utensílios – panelas, vasos, potes, moringas – também confeccionados para a esporádica venda na feira de sábado, troca por alguma outra coisa ou presentear vizinhos e amigos. Na meninice, Noemisa, como muitas crianças em centros oleiros, modelava seus boizinhos, cavalinhos, para brincar. Jovem, vivenciou mudanças na região, quando houve gradativa substituição de objetos feitos artesanalmente com o barro por produtos industrializados, e o início da ação de política pública voltada para a promoção da atividade artesanal como fonte de renda, pela então autarquia Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha), a partir dos anos 1970. Era nesse contexto de transformação que os usos do barro passaram a ter como alvo a criação de objetos investidos de outros sentidos, voltados para o mercado das camadas médias urbanas, de instituições museológicas, de colecionadores, de galerias e lojas de decoração de interiores.
Com marcas simbólicas personalíssimas, Noemisa produziu cenas incomparáveis de flagrantes da vida cotidiana, notadamente rural, impressas no barro. A pesquisadora Lalada Dalglish, em sua pesquisa Noivas da seca: cerâmica popular no Vale do Jequitinhonha, menciona a afinidade eletiva entre Noemisa e Mestre Vitalino: “as cenas figurativas, realistas e descritivas, poderiam ser comparadas às de Mestre Vitalino, pois lidam com temas do cotidiano de pessoas comuns”. Contudo, vale salientar que Noemisa, numa das regiões mais ásperas, pobres, castigadas por secas intermitentes, recria, nos anos 1970, o leque temático, imprimindo em suas composições sua assinatura inconfundível, na qual o ritual ou o banal, a celebração ou o trabalho, as figuras humanas ou os animais revestem-se de ornamento, como se estivessem cotidianamente prontas para uma ocasião especial em suas vidas. Seus bois não parecem nem um pouco destinados ao matadouro, por exemplo, nem para o trabalho de tração. Há uma atmosfera, digamos, solene em seu trabalho, que alia dois matizes dos pigmentos de barro, o tauá (tom terroso, matiz de vermelho) e tabatinga (branco). Angela Mascelani, em Caminhos da arte popular – O vale do Jequitinhonha, observa na artista o estilo “econômico e exuberante”, em que detalhes sobressaem em suas cenas. Enfim, com a parcimoniosa paleta de cores retiradas dos recursos disponíveis na região, a artista cria cenas exuberantes numa das mais vigorosas linhagens das artes visuais populares, o figurativismo descritivo, que ela marca com estilo pessoal, impregnado da inarredável adesão ao adorno.
Em Bonecos e vasilhas de barro no Vale do Jequitinhonha: Minas Gerais – Brasil, Lélia Coelho Frota realizou um registro pioneiro que desvela o surgimento de figurado, classificado como artístico, artesanato, mas, localmente, então, nomeado “enfeite”, categoria nativa que compreende o que estava destinado aos mercados de bens simbólicos urbanos, às coleções, galerias, instituições museológicas. Em seu Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, Lélia distingue a obra de Noemisa: “uma das artistas mais originais da arte em cerâmica brasileira”, com “sua arte feminina”.
É notável perceber como certos elementos do fazer artístico de Noemisa habitavam a vida cotidiana. A casa de alvenaria, por exemplo, onde morava, em Ribeirão da Capivara, instalada numa paisagem isolada, sem casas vizinhas, sem um estabelecimento de comércio; nela, o voto de beleza surgia nas linhas suaves dos ornamentos florais desenhados com tabatinga e tauá sobre a superfície branca da parede.
Era o ano de 2019, quando lá chegamos para entrevista e registro fotográfico com a expectativa de exibição e venda do trabalho em cerâmica das famílias de Noemisa e de Ulisses Pereira Chaves (1924-2006), na exposição Arte do barro, arte na vida – Caraí, MG, no Programa Sala do Artista popular. Participaram a irmã, Geralda, também ceramista, os filhos de Ulisses Margarida e José Maria, e a neta, Rosana, filha de Margarida. Embora não nos estivesse aguardando, Noemisa recebeu-nos em vestido colorido com detalhes florais e seus inseparáveis brincos e colar, o que nos pareceu em sintonia com suas cenas que emprestam ao cotidiano um toque de cuidado, de esmero. A certa altura mostrou-nos um relógio de pulso guardado na caixa, dentro da gaveta. Presente recebido, sem uso. É provável que a escolha do relógio tenha sido suscitada pelas suas composições, em que tal objeto, exibido no pulso de suas figuras, é onipresente. Presenteá-la com um relógio seria então preencher uma falta, um suposto desejo secreto de consumo da artista, mas inacessível? Aos olhos de Noemisa, um relógio pode ser mais um elemento que compõe seu universo criativo, em que vigora o adorno, e não algo útil, uma marca da modernidade que cronometra a passagem do tempo.
Na visita breve, a artista levou-nos à sua antiga casa de taipa, que havia adaptado para uma espécie de oficina de trabalho. Esse momento evocou-me um episódio que testemunhei, em que os adornos e as cenas de casamento, elementos marcantes de sua obra, serviram de pretexto para que um jovem colecionador de São Paulo exibisse o registro fotográfico que tinha feito da artista vestida de noiva diante da casa de taipa, seu local de trabalho. Ao público presente no evento, o jovem colecionador narrou que havia dito à artista que o vestido de noiva pertencera à sua avó, trazendo assim, para a fotografia, algo da memória de família. A exibição do registro fotográfico de Noemisa vestida de noiva, em diferentes contextos, pareceu-me, no momento, um ato inteiramente deslocado de seu trabalho como artista, do lugar de pertencimento da artista. A iniciativa não levava em conta, sobretudo, a dinâmica das artes populares, o fato de que copiosas e variadas cenas de casamento, desde Mestre Vitalino e a Escola. de Caruaru, no século passado, e noivas, desde Mestre Isabel e sua Escola, no Vale do Jequitinhonha, têm sido marcas simbólicas da arte figurativa brasileira em cerâmica.
Era esse o universo em que trafegava essa artista com suas cenas inconfundíveis de rituais, dentre os quais o casamento. Modelar noiva em barro, com o requinte dos detalhes que imprimia em suas composições, pode ser lido como exercício de habilidade e o gosto pela criação; e ali também está presente esse outro, urbano, de camadas médias que as adquiria. Trata-se de um dos temas de sua obra, enfim, e não de algo que faltaria na biografia de uma mulher, quase uma sentença – casar vestida de noiva.
Na ocasião em que estivemos em sua casa, pudemos perceber, contudo, que a artista havia interrompido a sua produção em cerâmica, tendo o orçamento sido preenchido com os proventos da aposentadoria. Diferentemente do que tem ocorrido em outros centros de produção artesanal, em que a obra de um mestre se dissemina, integra pessoas da família, ou mesmo se irradia na vizinhança ou localidades nas redondezas, Noemisa não deixa seguidores, como assinala Lalada. Sua obra integrou exposições no país e no exterior, faz parte de acervos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Museu do Pontal, Sítio Burle Marx, entre outras coleções privadas e públicas.
A obra de Noemisa, o figurado que floresceu nos distritos rurais de Caraí, comparece, em 2018, no inventário empreendido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais que registrou como patrimônio imaterial o “Artesanato em barro do Vale do Jequitinhonha: saberes, ofícios e expressões artísticas”.
Fonte: Iphan, “Noemisa, uma arte feminina”, texto de Guacira Waldeck, antropóloga e pesquisadora. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Mestra Noemisa Batista tem legado perpetuado pelos sobrinhos | Casa
Noemisa Batista do Santos foi a responsável por uma das trajetórias mais eloquentes da arte popular brasileira. Falecida em abril de 2024, aos 77 anos, a artesã é reconhecida por sua originalidade e pela capacidade de contar histórias a partir do barro.
Considerada pioneira em algumas das temáticas da região, tornou-se uma das principais referências do Vale do Jequitinhonha, região em Minas Gerais – berço da cerâmica artística e utilitária brasileira. Natural da cidade mineira de Caraí, Noemisa vivia e produzia as suas peças na região do Córrego de Ribeirão da Capivara.
“O trabalho dela é de uma expressividade tão forte sobre Caraí, sendo possível afirmar que não existiria a arte do município como a conhecemos hoje se não fosse pela Noemisa. Usando o barro, ela se tornou uma espécie de cronista, retratando o trivial e transformando a simplicidade do cotidiano em obras de arte”, revela o curador de arte popular Lucas Lassen, diretor da Pairol, marca que atua com artesanato popular brasileiro.
Noemisa começou a modelar o barro ainda criança, quando acompanhava a mãe ceramista na confecção de peças que serviam para complementar a renda da família. Ela fazia pequenos brinquedos e o seu trabalho diferenciado começou a se destacar entre os artesãos locais.
“Sem uma preocupação muito grande com a função do objeto, ela passou a retratar o cotidiano do vale, trazendo animais, pessoas e cenas específicas ligadas às celebrações populares, como casamentos e batizados, além de peças com contexto religiosos, como igrejas e presépios. Como tinha a ludicidade muito aflorada, também representava contos antigos”, conta Lucas.
A delicadeza da obra de Noemisa a levou a inúmeras mostras pelo Brasil e todo o mundo. Em 1987, suas esculturas integraram a exposição Brésil, Arts Populaires, no Grand Palais, em Paris. Já em 2000, algumas peças fizeram parte da Mostra do Redescobrimento, da Fundação Bienal de São Paulo.
Além disso, a sua arte está no acervo permanente do Museu de Folclore Edison Carneiro (RJ), no Museu da Casa do Pontal - Coleção de Jacques van de Beuque (RJ) e no Museu de Arte Popular Brasileira do Centro Cultural de São Francisco, em João Pessoa (PB).
Como ela nunca se casou nem teve filhos, coube a seus dois sobrinhos levar o seu legado adiante. Hoje com 46 anos, José Nilo Francisco do Santos, filho do irmão de Noemisa, começou no mundo das artes aos 10 anos.
“Na nossa família, a cerâmica chegou muito antes da tia Noemisa, mas foi com ela que fui aprendendo a partir da observação. Depois, comecei a arriscar fazendo uma coisinha aqui e outra ali, até que ela foi nos ensinando as técnicas”, revela José, que também é lavrador.
Adriano Rosa do Santos, de 44 anos, também tem seguido os passos da tia na cerâmica, profissão que divide com a de lavrador, como o primo. Como uma homenagem à trajetória de Noemisa, os dois sobrinhos tiveram algumas de suas peças apresentadas pela Paiol no 18º Salão de Artesanato em São Paulo, que aconteceu no final de agosto.
Fonte: Casa e Jardim, “Mestra Noemisa Batista tem legado perpetuado pelos sobrinhos”, publicado em 4 de setembro de 2024. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa | Arte Popular do Brasil
Noemisa Batista dos Santos é uma das mais conhecidas ceramistas do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Ela juntamente com outros nomes como, Isabel Mendes da Cunha e Ulisses Pereira Chaves são responsáveis pela enorme projeção nacional e internacional da arte do Vale do Jequitinhonha, alguns autores chegam a considerá-la uma espécie de mestre Vitalino de Minas Gerais. Noemisa nasceu em 1947 em Ribeirão do Capivara, Município de Caraí, Minas Gerais. Filha de um lavrador e de uma respeitada ceramista, Joana Gomes dos Santos, Noemisa aprendeu sua arte com a mãe, quando tinha apenas sete anos. Apesar de sua mãe trabalhar com cerâmica utilitária, Noemisa nunca gostou de fazer panelas, potes ou jarras; desde muito pequena gostava de criar pequenos animais de barro para suas brincadeiras. Noemisa se tornou um dos mais requisitados nomes da arte figurativa do Vale do Jequitinhonha; ainda na década de 70 seu trabalho já era exposto no Brasil e no exterior e fazia parte do acervo de museus e de importantes coleções particulares.
O barro usado por Noemisa é o mesmo utilizado pelos demais ceramistas de Caraí. De coloração rosa, vermelha e branca, o barro é extraído da fazenda Senhor Serafim; sua irmã Santa é a responsável pela extração. O preparo do barro e as técnicas utilizadas foram provavelmente aprendidos com os nativos da região e são os mesmos utilizados pelos demais artesãos. O barro depois de extraído e seco ao sol é triturado e pulverizado. Depois de misturado com água é armazenado em locais escuros e sem ventilação até ser usado na modelagem. Concluída a modelagem, as peças são pintadas e decoradas usando sempre a técnica do engobe nas cores vermelha e branca. Os temas dos decorados são quase sempre motivos florais ou figuras de animais.
A temática do universo artístico de Noemisa é bastante diversificada: vai das cenas cotidianas à arte religiosa. Ritos religiosos, como casamentos, batizados e funerais, igrejas e santuários são temas sempre presentes na sua obra. As “mulheres de Noemisa” são mostradas em atividades consideradas como respeitosas e necessárias. Elas normalmente usam vestidos estampados e assessórios como brincos, sapatos e bolsas. Os homens, normalmente em poses viris usam chapéu, relógio, botas e esporas. São mostrados como caçadores, soldados ou médicos. Noemisa também cria uma variedade enorme de animais, como bois, cavalos e cachorros.
Apesar de os trabalhos de Noemisa terem alcançado um alto preço no mercado, ela continua vivendo precariamente; quem lucra com seus trabalhos são os intermediários. Ela conta que pelo fato de ser analfabeta, não soube administrar com eficiência uma das melhores fases de sua produção, a década de 80, quando vendeu muitas peças para a CODEVALE. Ela continua produzindo, mas não com a mesma intensidade de antes.
Dentre as exposições mais importantes que participou pode-se citar a exposição Brésil Arts Populaires (Paris, 1987) e a Mostra do Redescobrimento (São Paulo, 2000). Importantes museus como o Museu Casa do Pontal (Rio de Janeiro, RJ), o Museu de Folclore Edison Carneiro (Rio de Janeiro, RJ) e o Centro Cultural de São Francisco (João Pessoa, PB) possuem em seus acervos obras de Noemisa.
Fonte: Arte Popular do Brasil, “Noemisa”. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.
Noemisa Batista dos Santos | IPHAN
Em 10 de abril, Minas Gerais, o Brasil e os mundos da arte popular perderam Noemisa Batista Santos, nascida em Ribeirão da Capivara, em Caraí, no Vale do Jequitinhonha em 1946. A mãe, Joana, paneleira, dominava os usos do barro para abastecer a casa de utensílios – panelas, vasos, potes, moringas – também confeccionados para a esporádica venda na feira de sábado, troca por alguma outra coisa ou presentear vizinhos e amigos. Na meninice, Noemisa, como muitas crianças em centros oleiros, modelava seus boizinhos, cavalinhos, para brincar. Jovem, vivenciou mudanças na região, quando houve gradativa substituição de objetos feitos artesanalmente com o barro por produtos industrializados, e o início da ação de política pública voltada para a promoção da atividade artesanal como fonte de renda, pela então autarquia Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha), a partir dos anos 1970. Era nesse contexto de transformação que os usos do barro passaram a ter como alvo a criação de objetos investidos de outros sentidos, voltados para o mercado das camadas médias urbanas, de instituições museológicas, de colecionadores, de galerias e lojas de decoração de interiores. Com marcas simbólicas personalíssimas, Noemisa produziu cenas incomparáveis de flagrantes da vida cotidiana, notadamente rural, impressas no barro. A pesquisadora Lalada Dalglish, em sua pesquisa Noivas da seca: cerâmica popular no Vale do Jequitinhonha, menciona a afinidade eletiva entre Noemisa e Mestre Vitalino: “as cenas figurativas, realistas e descritivas, poderiam ser comparadas às de Mestre Vitalino, pois lidam com temas do cotidiano de pessoas comuns”.
Contudo, vale salientar que Noemisa, numa das regiões mais ásperas, pobres, castigadas por secas intermitentes, recria, nos anos 1970, o leque temático, imprimindo em suas composições sua assinatura inconfundível, na qual o ritual ou o banal, a celebração ou o trabalho, as figuras humanas ou os animais revestem-se de ornamento, como se estivessem cotidianamente prontas para uma ocasião especial em suas vidas. Seus bois não parecem nem um pouco destinados ao matadouro, por exemplo, nem para o trabalho de tração. Há uma atmosfera, digamos, solene em seu trabalho, que alia dois matizes dos pigmentos de barro, o tauá (tom terroso, matiz de vermelho) e tabatinga (branco). Angela Mascelani, em Caminhos da arte popular – O vale do Jequitinhonha, observa na artista o estilo “econômico e exuberante”, em que detalhes sobressaem em suas cenas. Enfim, com a parcimoniosa paleta de cores retiradas dos recursos disponíveis na região, a artista cria cenas exuberantes numa das mais vigorosas linhagens das artes visuais populares, o figurativismo descritivo, que ela marca com estilo pessoal, impregnado da inarredável adesão ao adorno. Em Bonecos e vasilhas de barro no Vale do Jequitinhonha: Minas Gerais – Brasil, Lélia Coelho Frota realizou um registro pioneiro que desvela o surgimento de figurado, classificado como artístico, artesanato, mas, localmente, então, nomeado “enfeite”, categoria nativa que compreende o que estava destinado aos mercados de bens simbólicos urbanos, às coleções, galerias, instituições museológicas. Em seu Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, Lélia distingue a obra de Noemisa: “uma das artistas mais originais da arte em cerâmica brasileira”, com “sua arte feminina”. É notável perceber como certos elementos do fazer artístico de Noemisa habitavam a vida cotidiana. A casa de alvenaria, por exemplo, onde morava, em Ribeirão da Capivara, instalada numa paisagem isolada, sem casas vizinhas, sem um estabelecimento de comércio; nela, o voto de beleza surgia nas linhas suaves dos ornamentos florais desenhados com tabatinga e tauá sobre a superfície branca da parede. Era o ano de 2019, quando lá chegamos para entrevista e registro fotográfico com a expectativa de exibição e venda do trabalho em cerâmica das famílias de Noemisa e de Ulisses Pereira Chaves (1924-2006), na exposição Arte do barro, arte na vida – Caraí, MG, no Programa Sala do Artista popular. Participaram a irmã, Geralda, também ceramista, os filhos de Ulisses Margarida e José Maria, e a neta, Rosana, filha de Margarida. Embora não nos estivesse aguardando, Noemisa recebeu-nos em vestido colorido com detalhes florais e seus inseparáveis brincos e colar, o que nos pareceu em sintonia com suas cenas que emprestam ao cotidiano um toque de cuidado, de esmero. A certa altura mostrou-nos um relógio de pulso guardado na caixa, dentro da gaveta. Presente recebido, sem uso. É provável que a escolha do relógio tenha sido suscitada pelas suas composições, em que tal objeto, exibido no pulso de suas figuras, é onipresente. Presenteá-la com um relógio seria então preencher uma falta, um suposto desejo secreto de consumo da artista, mas inacessível? Aos olhos de Noemisa, um relógio pode ser mais um elemento que compõe seu universo criativo, em que vigora o adorno, e não algo útil, uma marca da modernidade que cronometra a passagem do tempo. Na visita breve, a artista levou-nos à sua antiga casa de taipa, que havia adaptado para uma espécie de oficina de trabalho. Esse momento evocou-me um episódio que testemunhei, em que os adornos e as cenas de casamento, elementos marcantes de sua obra, serviram de pretexto para que um jovem colecionador de São Paulo exibisse o registro fotográfico que tinha feito da artista vestida de noiva diante da casa de taipa, seu local de trabalho. Ao público presente no evento, o jovem colecionador narrou que havia dito à artista que o vestido de noiva pertencera à sua avó, trazendo assim, para a fotografia, algo da memória de família. A exibição do registro fotográfico de Noemisa vestida de noiva, em diferentes contextos, pareceu-me, no momento, um ato inteiramente deslocado de seu trabalho como artista, do lugar de pertencimento da artista. A iniciativa não levava em conta, sobretudo, a dinâmica das artes populares, o fato de que copiosas e variadas cenas de casamento, desde Mestre Vitalino e a Escola de Caruaru, no século passado, e noivas, desde Mestre Isabel e sua Escola, no Vale do Jequitinhonha, têm sido marcas simbólicas da arte figurativa brasileira em cerâmica. Era esse o universo em que trafegava essa artista com suas cenas inconfundíveis de rituais, dentre os quais o casamento. Modelar noiva em barro, com o requinte dos detalhes que imprimia em suas composições, pode ser lido como exercício de habilidade e o gosto pela criação; e ali também está presente esse outro, urbano, de camadas médias que as adquiria. Trata-se de um dos temas de sua obra, enfim, e não de algo que faltaria na biografia de uma mulher, quase uma sentença – casar vestida de noiva. Na ocasião em que estivemos em sua casa, pudemos perceber, contudo, que a artista havia interrompido a sua produção em cerâmica, tendo o orçamento sido preenchido com os proventos da aposentadoria. Diferentemente do que tem ocorrido em outros centros de produção artesanal, em que a obra de um mestre se dissemina, integra pessoas da família, ou mesmo se irradia na vizinhança ou localidades nas redondezas, Noemisa não deixa seguidores, como assinala Lalada. Sua obra integrou exposições no país e no exterior, faz parte de acervos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Museu do Pontal, Sítio Burle Marx, entre outras coleções privadas e públicas. A obra de Noemisa, o figurado que floresceu nos distritos rurais de Caraí, comparece, em 2018, no inventário empreendido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais que registrou como patrimônio imaterial o “Artesanato em barro do Vale do Jequitinhonha: saberes, ofícios e expressões artísticas”.
Fonte: IPHAN, “Noemisa, uma arte feminina”, publicado por Guacira Waldeck, antropóloga e pesquisadora. Consultado pela última vez em 27 de agosto de 2025.
Crédito fotográfico: Museu do Pontal, “Noemisa Batista dos Santos”. Consultado pela última vez em 21 de agosto de 2025.