Raimundo Falcão de Oliveira (Feira de Santana, BA, 24 de abril de 1930 — Salvador, BA, 18 de janeiro de 1966) foi um gravador, pintor e desenhista brasileiro. Construiu sua obra em grande parte inspirada no universo religioso cristão e com ela obteve projeção internacional.
Biografia - Itaú Cultural
Inicia-se nas artes por intermédio da mãe, pintora de temática religiosa, que o encaminha para o desenho e a pintura, como também o orienta na religião. Incentivado pela professora de desenho, expõe pela primeira vez no Ginásio Santanópolis, onde retrata os professores da escola. Após a conclusão do curso ginasial, em 1947, segue para Salvador, onde faz cursos regulares de pintura com Maria Célia Amado, na Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia, e conhece Mario Cravo Júnior e Jenner Augusto . Realiza a primeira individual no hall da Prefeitura de Feira de Santana, em 1951, momento em que se liga a um grupo de artistas independentes, responsável pelos Cadernos da Bahia. Reside em São Paulo de 1958 a 1964, depois volta a morar na Bahia. Vive no Rio de Janeiro entre 1965 e 1966. No ano de seu suicídio, 1966, é editada a Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira. Xilogravuras, pela Galeria Bonino e Petite Galerie, organizada por Julio Pacello, com prefácio de Jorge Amado. Em 1982, é publicado o segundo álbum do artista, Via Crucis, pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, e é inaugurada a Galeria Raimundo de Oliveira, em Salvador.
Análise
A obra de Raimundo de Oliveira - desenho, guache, óleo e gravura - se desenrola no universo religioso, com santos, imagens e cenas bíblicas representados de diversas formas. Os críticos tendem a distinguir duas fases em sua produção em função das variações observadas no tratamento dado ao tema. Nas décadas de 1950 e 1960 predominam as composições com cores sombrias e caráter expressionista - as figuras marcadas por traços dolorosos e dramáticos, definidas com nanquim e contornos negros, como Cabeça de Cristo, 1957, Crucificado, s.d., e Moisés, 1960 - e algumas leituras mostram afinidades com a pintura de Georges Rouault. Em outro momento, as telas aproximam-se dos pequenos enredos, elaborados com o auxílio de figuras apequenadas (mais humorísticas que trágicas, pelas deformações e desproporções), que se repetem por causa das situações apresentadas. Estruturadas geometricamente, por um equilíbrio de planos horizontais e verticais, as novas telas possuem dinamismo particular, obtido pelos espaços construídos com base em círculos. A energia das cores vibrantes e o dinamismo da tela são as marcas salientes dessa fase, visto em O Sonho de Jacob, s.d. Além das influências simbolistas e da arte naif de Henri Rousseau, são perceptíveis, nessa fase, ecos da arte popular nordestina brasileira. O universo religioso é lido da ótica das festas e da religiosidade popular, misturando-se frequentemente ao mundo profano - procissões, bumba-meu-boi, altares domésticos etc. Os enredos e modos de figuração, por sua vez, remetem à arte dos gravadores e ceramistas do Nordeste. Elementos retirados da paisagem nacional, como árvores e animais tropicais, são outra forma de articular o erudito e o popular, o universal e o nacional - Jesus no Horto das Oliveiras, 1962, e Chegada em Jerusalém, 1964.
Críticas
"E então todos se deram conta que o burel não era um burel, era uma velha capa contra a chuva, e o cajado não era cajado, eram pincéis de pintura. E havia uma tela e o cujo sujeito pintava. Alguns quiseram apedrejá-lo, considerando-o um vigarista vindo de fora, mas outros reconheceram o peregrino e a ele se dirigiram, tratando-o familiarmente de Mundinho. Pois era Raimundo de Oliveira, filho da terra, desde menino um vago, sem jeito para o trabalho, a não ser para riscar papel, se isso é trabalho que se considere. Tinha ido embora fazia tempo, dele não havia notícia. Apareceu agora de repente e em torno de sua grande cabeça pairava uma atmosfera mágica, como se o cercasse a luz da madrugada. (...)
Esse pintor, esse grande pintor da Bíblia e da Bahia, esse que passou a limpo a violência do Velho Testamento e o tornou de maciez de veludo, esse que encheu de flores a áspera tragédia antiga, esse moço de voz tímida e segura certeza, esse Raimundo de Oliveira é um profeta com alma de Francisco de Assis. Só a Bahia o podia produzir, nos caminhos da cidade onde nasce o sertão; só a Bahia o podia alimentar e o oferecer às galerias do sul, à glória e à fama, pois sua Bíblia tem uma respiração de candomblé (não fosse ele filho de mãe Senhora de Ôpo Afonjá e não houvesse aprendido a cozinhar com Olga do Aleketu). Mestre pintor, não sei de outro que tenha crescido tanto em sua arte, mantendo-se tão fiel aos sonhos de sua meninice, às esperanças de sua Mãe e ao seu tesouro escondido. (...)
Raimundo de Oliveira (...) não ficou na Bahia. Era um profeta e tinha de levar sua profecia mundo adentro. Tinha de correr os caminhos e demorar em terras distantes. Anda por aqui e por ali, mas é na Bahia que ele vem se alimentar de terra, de animais, de Deus e de amor, é na Bahia que ele vem, humilde e vitorioso, reapreender o mistério do homem e sua necessidade de paz e de fartura".
Jorge Amado - 1966 (In: OLIVEIRA, Raimundo de. Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira. Xilogravuras. Prefácio Jorge Amado; organização Julio A. Pacello. São Paulo: Lia Cesar, 1966.)
"Este livro (de xilogravuras) nasceu há mais de dois anos, quando Raimundo de Oliveira me procurou para que eu o ajudasse a distribuir convites para a sua exposição, na Galeria Astréia. Saímos juntos, nessa simples missão, e foi no caminho que nasceu a idéia de fazer uma pequena Bíblia. Daí em diante, durante muitos meses, trabalhamos em estreita colaboração. Levamos bastante tempo escolhendo as cenas bíblicas que nos pareciam mais representativas. Essa escolha levava em consideração tanto o aspecto bíblico como o artístico. Além disso, teve que sujeitar-se às limitações impostas pela técnica da xilogravura".
Julio A. Pacello (In: OLIVEIRA, Raimundo de. Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira. Xilogravuras. Prefácio Jorge Amado; organização Julio A. Pacello. São Paulo: Lia Cesar, 1966.)
"Apesar da ingênua composição plástica de suas obras e de sua franca rebeldia em relação à disciplina escolar (...) jamais foi, como equivocadamente o apresentaram (...), um primitivo, um 'naif' (...) estava preocupado com a problemática estilística que lhe provocavam os temas e as narrativas religiosos, interpretando-os com cenas de extremo lirismo".
Clarival do Prado Valadares (PONTUAL, Roberto. Dicionário das artes plásticas no Brasil. Apresentação de Antônio Houaiss. Textos de Mário Barata et al. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.)
Exposições Individuais
1951 - Feira de Santana BA - Primeira individual, na Prefeitura Municipal
1951 - Salvador BA - Individual, na Galeria Oxumaré
1953 - Feira de Santana BA - Individual, na Prefeitura Municipal
1953 - Salvador BA - Individual, na Galeria Oxumaré
1956 - Salvador BA - O Drama do Calvário, no Belvedere da Sé
1957 - Buenos Aires (Argentina) - Individual, na Plástica Galeria de Arte
1958 - Salvador BA - Individual, na Galeria Oxumaré
1959 - Santos SP - Individual, no Hall do Edifício Indaiá
1959 - São Paulo SP - Individual, na Galeria Ambiente
1960 - São Paulo SP - Individual, no Teatro Novos Comediantes
1960 - São Paulo SP - Individual, no Teatro Oficina
1961 - Campinas SP - Individual, na Galeria Aremar
1961 - São Paulo SP- Individual, na Galeria Astréia
1962 - São Paulo SP - Individual, no Clubinho
1962 - São Paulo SP- Individual, na Galeria Astréia
1963 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Bonino
1964 - Buenos Aires (Argentina) - Individual, na Galeria Bonino
1964 - São Paulo SP - Individual, na Galeria Astréia
1965 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Bonino
1966 - Rio de Janeiro RJ - Individual, no MAM/RJ
Exposições Coletivas
1951 - Salvador BA - 1º Salão Universitário Baiano de Belas Artes
1952 - Feira de Santana BA - 1ª Exposição de Arte Moderna de Feira de Santana, no Banco Econômico da Bahia
1952 - Rio de Janeiro RJ - 1º Salão Nacional de Arte Moderna, no MAM/RJ
1952 - Salvador BA - 2º Salão Universitário Baiano de Belas Artes
1953 - Salvador BA - Poty, Carlos Bastos e Raimundo Oliveira, na Galeria Oxumaré
1953 - Salvador BA - 3º Salão Baiano de Belas Artes
1954 - Salvador BA - 4º Salão Baiano de Belas Artes, no Hotel Bahia
1955 - Salvador BA - 5º Salão Baiano de Belas Artes, na Galeria Belvedere da Sé - menção honrosa em desenho
1956 - Rio de Janeiro RJ - 5º Salão Nacional de Arte Moderna
1956 - Salvador BA - 6ª Salão Baiano de Belas Artes, na Galeria Oxumaré - menção honrosa em pintura
1956 - Salvador BA - Artistas Modernos da Bahia, na Galeria Oxumaré
1956 - Salvador BA - Exposição de Pintura Moderna, no Palácio Rio Branco
1957 - Rio de Janeiro RJ - 6º Salão Nacional de Arte Moderna
1957 - São Paulo SP - Artistas da Bahia, no MAM/SP
1959 - São Paulo SP - 47 Artistas, na Galeria de Arte das Folhas
1960 - São Paulo SP - 9º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia - medalha de bronze
1961 - Porto Alegre RS - Círculo dos Amigos da Arte, no Margs
1961 - São Paulo SP - Arte Sacra Contemporânea, na Sede do Movimento Graal
1961 - São Paulo SP - 10º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia - prêmio aquisição
1962 - São Paulo SP - 11º Salão Paulista de Arte Moderna - pequena medalha de prata
1963 - São Paulo SP - 12º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia
1963 - São Paulo SP - 7ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal
1964 - São Paulo SP - 13º Salão Paulista de Arte Moderna
1965 - Caracas (Venezuela) - Avaliação da Pintura Latino-Americana
1965 - Paris (França) - Salon Comparaisons, no Musée d'Art Moderne de La Ville de Paris
1965 - Paris (França) - Oito Pintores Ingênuos Brasileiros, na Galerie Jacques Massol
1965 - Rio de Janeiro RJ - 33 Artistas em Homenagem à Cidade do Rio de Janeiro - menção honrosa
1965 - São Paulo SP - 8ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal
1966 - Buenos Aires (Argentina) - Artistas Brasileiros Contemporâneos, no Museo de Arte Moderno
1966 - Lausanne (Suíça) - Artistas e Descobridores de Nosso Tempo
1966 - Nova York (Estados Unidos) - Brazilian Artists, na Amel Gallery
1966 - Montevidéu (Uruguai) - Artistas Brasileiros Contemporâneos, no Museo de Arte Moderno de Buenos Aires
1966 - Madri (Espanha) - Artistas da Bahia, no Instituto de Cultura Hispânica
1966 - Lausanne (Suíça) - Salão Internacional de Galerias - Piloto
1966 - Nova York (Estados Unidos) - Brazilian Artists, na Amel Gallery
1966 - Moscou (Rússia) - Pintores Primitivos Brasileiros
1966 - São Paulo SP - 15º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia
1966 - Nova York (Estados Unidos) - The Emergent Decade, no Solomon R. Guggenheim Museum
Exposições Póstumas
1966 - Rio de Janeiro RJ - 4ª Resumo de Arte do JB, no MAM/RJ
1966 - Salvador BA - 1ª Bienal Nacional de Artes Plásticas
1966 - São Paulo SP - 15º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia
1967 - Salvador BA - Exposição Coletiva de Natal, na Panorama Galeria de Arte
1969 - Rio de Janeiro RJ - Via Crucis, no Gabinete de Arte de Botafogo
1976 - São Paulo SP - Individual, na Galeria de Arte Portal
1979 - São Paulo SP - Raimundo de Oliveira: pinturas, na Galeria de Arte Ipanema
1982 - Salvador BA - A Arte Brasileira da Coleção Odorico Tavares, no Museu Carlos Costa Pinto
1984 - São Paulo SP - Coleção Gilberto Chateaubriand: retrato e auto-retrato da arte brasileira, no MAM/SP
1984 - São Paulo SP - Tradição e Ruptura: síntese de arte e cultura brasileiras, na Fundação Bienal
1986 - São Paulo SP - Individual, na Biblioteca Mário de Andrade
1988 - São Paulo SP - Pintura Ingênua Brasileira, no Espaço Quadros e Objetos de Arte
1990 - São Paulo SP - Figurativismo/Abstracionismo: o vermelho na pintura brasileira, na Itaugaleria
1992 - Belém PA - Décima Primeira Arte, na Fundação Romulo Maiorana
1992 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Bonino
1993 - João Pessoa PB - Xilogravura: do cordel à galeria, na Funesc
1993 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Ipanema
1994 - Poços de Caldas MG - Coleção Unibanco: exposição comemorativa dos 70 anos de Unibanco, na Casa da Cultura
1994 - São Paulo SP - Xilogravura: do cordel à galeria, no Metrô
1995 - Rio de Janeiro RJ - Coleção Unibanco: exposição comemorativa dos 70 anos de Unibanco, no MAM/RJ
1996 - Belém PA - 15º Salão Arte Pará, no Museu de Arte do Belém
1996 - São Paulo SP - Ex Libris/Home Page, no Paço das Artes
1997 - Porto Alegre RS - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1997 - São Paulo SP - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1998 - Curitiba PR - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1998 - Rio de Janeiro RJ - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1998 - São Paulo SP - Os Colecionadores - Guita e José Mindlin: matrizes e gravuras, na Galeria de Arte do Sesi
1999 - Salvador BA - 100 Artistas Plásticos da Bahia, no Museu de Arte Sacra
1999 - Salvador BA - 60 Anos de Arte Brasileira, no Espaço Cultural da Caixa Econômica Federal
2000 - São Paulo SP - Investigações. A Gravura Brasileira, no Itaú Cultural
2000 - São Paulo SP - Os Anjos Estão de Volta, na Pinacoteca do Estado
2001 - Brasília DF - Investigações. A Gravura Brasileira, na Itaú Galeria
2001 - Penápolis SP - Investigações. A Gravura Brasileira, na Galeria Itaú Cultural
2001 - São Paulo SP - Coleção Aldo Franco, na Pinacoteca do Estado
2002 - Rio de Janeiro RJ - Arte Brasileira na Coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem, no CCBB
2002 - São Paulo SP - Arte Brasileira na Coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem, no CCBB
2002 - São Paulo SP - Santa Ingenuidade, na Unifieo
Fonte: RAIMUNDO de Oliveira. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: Itaú Cultural. Acesso em: 06 de Jun. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
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O pintor feirense que expôs em Paris e Nova York
“O profeta Raimundo, grande da pintura brasileira, carregado de drama, de solidão e de pecado, é no entanto o mais alegre e terno, o mais puro e numeroso, jamais sozinho pois sua palavra é de solidariedade e sua mensagem é o amor entre os seres humanos, é a alegria fluindo dos pincéis e de seu coração. É o profeta de Feira de Sant’Ana, lá vem montado em seu jumento e vai levar sua carga de amor aos confins do mundo”.
Assim o escritor Jorge Amado descreveu o artista feirense Raimundo Falcão de Oliveira, um dos maiores nomes das artes plásticas que Feira de Santana já produziu. Nascido em 1930, Raimundo possui ampla obra, já exposta em Paris, Nova York, Madri e Moscou, além de outras cidades da Europa, America Latina e Brasil, a exemplo de Rio de Janeiro e São Paulo.
Sua primeira exposição, entretanto, ocorreu em no Colégio Santanópolis, na década de 40, onde estudava, seguindo-se uma outra no hall da Prefeitura Municipal de Feira de Santana, em 1951.
Raimundo teve conexão central com sua mãe, Dona Santa, assídua frequentadora da Igreja Matriz (Catedral de Santana).
Lembra Edivaldo Boaventura, em texto sobre Raimundo de Oliveira: “Habituei-me desde muito cedo, ao tempo em que criança morava na Praça da Matriz a ver Raimundo, sempre de calça e paletó escuros e aparentando mais idade do que realmente tinha, a passar bem devagar conduzindo pelo braço D. Santa. Vinham mãe e filho pelo beco de Santana, atravessavam o largo em cadência lenta e ritmada e entravam na Matriz pelo portão da frente”.
Em Salvador, Raimundo Oliveira chegou a cursar a Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia. Lá conheceu artistas como Mario Cravo Júnior e Jenner Augusto. Daí, para o mundo: morou em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde entrou em contato com artistas de renome nacional.
Juraci Dórea, artista feirense, em texto para o livro “A Via Crucis de Raimundo Oliveira”, descreve a personalidade de Raimundo já em Salvador: “Eu o conheci na pensão de Renato, em Salvador, onde moramos em quartos vizinhos. […] Não me pareceu uma criatura tão estranha como se costumava descrevê-lo aqui em Feira de Santana, embora tivesse aquele hábito (por certo adquirido no Sul) de andar, em plena cidade da Bahia, sempre vestido com paletó e gravata. Já passava dos 30 anos. Calmo no falar. Introspectivo. Entregava-se, na época, a um discreto alcoolismo. Queria saber, às vezes, das pessoas e das coisas de Feira, com as quais perdera o contato”.
A obra de Raimundo Oliveira é muito influenciada por temas cristãos católicos, influência atribuída à sua infância religiosa ao lado da mãe. Diz Juraci Dórea, sobre o momento em que Dona Santa faleceu, em 1954: “Raimundo entrou em pânico, entregou-se ao mais completo desespero, deixou de pintar e chegou mesmo a ser internado para tratamento”.
Para Antonio Celestino, os dramas familiares tiveram influências marcantes na vida de Raimundo de Oliveira: “Profundamente religioso, nascido de família modesta, de mãe devotadamente católica, problemas familiares marcaram-no indelevelmente, como detalhadamente me confessara nas mais estranhas condições e nas mais graves aflições de sua vida. Creio que foi esse clima de drama em que viveu seus verdes anos que originou suas primeiras manifestações artísticas”.
Raimundo tinha aspirações seminaristas, chegando a se matricular em uma instituição que recepcionava vocacionados tardios, mas não seguiu a trilha religiosa – pelo menos a tradicional. Restou-lhe, como disse Juraci Dórea “a sublimação, pela arte, de sua desesperada aventura mística”.
Em 1966, Raimundo de Oliveira foi encontrado morto no Hotel São Bento, em Salvador, após ter cometido suicídio.
Edivaldo Boaventura lembra das circunstâncias: “O prefeito de Feira, Joselito Falcão Amorim, mandou buscar o corpo e lhe deu sepultura. Helder Alencar, secretário do Governo Municipal, fora encarregado do transporte, embalsamento e demais providências. Fernando Santos, que assistiu o enterro, contou-me que o féretro saíra do mesmo lugar da primeira exposição de Raimundo em Feira. No mesmo recinto nobre, no mesmo mês quente de janeiro. Quinze anos depois. Foi a volta definitiva…
Fonte e crédito fotográfico: Feirenses, publicado em 22 de agosto de 2017.
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Raimundo de Oliveira, por Carlos Perktold
Há algumas semanas este articulista viu pela televisão a entrevista de um senhor idoso usando uma camiseta na qual havia recomendação de duvidoso gosto: live fast, die young. Infelizmente não é o único, mas se havia alguém neste país mais autorizado a usar roupa com esse aforismo no século XX chamou-se Raimundo Falcão de Oliveira, baiano de nascimento, artista que deixou acervo de incomparável beleza e com trágica passagem nesta vida. Viveu rápido, morreu jovem e se imortalizou como pintor e artista.
Transcorridos mais de trinta anos após sua morte, a carta com a qual ele se despediu deste mundo em 18 de janeiro de 1966 continua tão emocionante quanto a sua pintura. O texto registra a gratidão dele pelos amigos que o aceitaram, o acolheram e o ampararam durante sua curta vida e que, não suportando as dificuldades emocionais e financeiras e com aparente lucidez, lamentava “que não conseguisse mais agüentar”. A carta é dirigida “a todos os meus amigos”, mas vários são nomeados nela: Mário Cravo, Jorge Amado, Rodolfo e Getrudes Klein, Sarah Campos, Jenner, Genaro, Emanoel e outros, brasileiros como ele. Mas a carta de despedida, sem que ele sequer imaginasse, é endereçada também a seus admiradores do futuro que, não o conhecendo pessoalmente em Feira de Santana, Salvador, Rio ou São Paulo durante os anos 1940 até 1966, hoje reverenciam o brilhante e saudoso artista. Na despedida ele esclarece que o seu último gesto foi motivado “por problemas financeiros, pois é horrível todo mundo pensar que a gente é rico sem ser” [A Via Crucis de Raimundo de Oliveira, Fundação Cultural do Estado da Bahia. Salvador: 1982 p.166]. Não se pode duvidar da palavra literalmente final de pintor sensível que viveu numa época na qual o país valorizava pouco seus artistas, o mercado de arte era incipiente e os colecionadores eram raros. Assim, não foi somente Raimundo a queixar dificuldades financeiras, mas é possível que apenas ele tenha morrido por esse motivo. Em 1966 poucos artistas poderiam se dar ao luxo de viver apenas da venda de seus trabalhos. A maioria dos pintores tinha emprego público, era professor, fazia “bicos” com representação comercial ou retoques em fotografias enquanto aguardavam novos e melhores tempos artísticos ou sujeitava-se a viver com certa penúria. A origem do “problema financeiro” de Raimundo e de artistas em geral é o colecionador neófito visitar os seus ateliês, ver vários quadros armazenados um atrás do outro, multiplicá-los pelo preço de venda e calcular quanto ele tem dentro daquele imóvel, como se o pintor fosse um criador de dinheiro, lastreado nas suas próprias obras. Nessas condições, vê-se o artista como rico. Nada mais falso. É possível que tenha sido dessa riqueza de que ele falava. As vendas de obras de arte não ocorrem com a facilidade que a maioria do grande público imagina. Raríssimo são os artistas que selecionam seus compradores ou têm “lista de espera”. Mas, ainda naquela carta, Raimundo afirma ter “certeza que a minha morte não foi por causa dos meus problemas sexuais”. Ele se referia a certa orientação numa época na qual ela era inaceitável e mal vista. Vivendo hoje, veria que o mundo mudou, muitas coisas para pior, mas que a aceitação de pessoas portadoras do que ele chamou de “problemas” é infinitamente maior que na sua juventude. Por isso, suas angústias talvez fossem menores se ele tivesse suportado as pressões familiares e sociais e aguardado mais para viver menos infeliz no mundo de hoje. Para tentar diminuir sentimentos que lhe incomodavam tanto, levou vida boêmia pelas grandes cidades brasileiras e, em certas ocasiões, ela foi tão devastadora que ele não produziu nada durante meses. Na época, foi a saída objetiva e emocional que o permitiu viver o seu desejo. Mas a sua provinciana Feira de Santana e todos os censores de sua adolescência e juventude nunca o abandonaram. Viveram todos dentro dele como se fossem fantasmas internos a assombrá-lo e lembrando-lhe que ele era baiano, terra na qual certas preferências eram imperdoáveis.
Raimundo Falcão de Oliveira era alto, ouvia mal, prognata, falava com voz gutural alta, tinha nariz adunco e se julgava feio. Como pintor talvez visse que seu rosto não tinha o equilíbrio dos elementos de uma composição com o número de ouro bem calculado. Seus amigos o adoravam pelo seu talento e pelo aparente e sempre elevado nível de humor, prova de sua defesa maníaca frente à depressão que ele preferia dividir com poucos. Na Bahia ou no Rio, usava sempre terno preto, cor rara nos seus quadros, mas metafórico matiz do seu mundo interno. O terno refletia sua formalidade pessoal e com todos. Teve vida curta: trinta e seis anos. Com tão pouca idade, deixou acervo de pintura que começou ainda na adolescência em Feira de Santana. Ali ele iniciou seus primeiros desenhos e estudos. Adulto, passou por Salvador, Rio e fez amigos em São Paulo, construindo trajetória curta e imortal. Em todas as figuras humanas pintadas nos seus quadros há a preocupação do nariz acentuado no modelo, santo ou profeta, projeção do que lhe incomodava em si mesmo, algo semelhante àquilo que ocorreu com Guignard e seus modelos, que eram retratados com o lábio leporino do pintor. É possível que o detalhe crítico dos grandes olhos e o nariz adunco de seus personagens tenham sido projeções inconscientes durante longo tempo e que, tão logo ele percebeu a força deles em cada obra, os tenha valorizado ainda mais a partir de 1960. Desse ano em diante, aqueles detalhes passam a ser signos consagradores de pintura com exuberantes cores, acrescido da encantadora simetria. Na vida adulta perdeu a paleta escura e o corte seco contidos nos retratos de gente humilde de sua cidade e adolescência, paleta de então que era provável reflexo de suas dificuldades de jovem. Na maturidade da vida artística ganhou a incomparável beleza com matizes incompreensíveis para quem era artista deprimido. Seus quadros são demonstrações de vitalidade e exuberância de vida que são o oposto do que ele vivia. As cores complementares predominam, mas sabedor de seu talento, não as segue com rigor em todos os quadros. Como ocorre nas obras de grandes mestres, nenhum detalhe das composições de sua pintura chama a atenção de forma especial. O resultado em qualquer situação é de encantadora beleza. Seus personagens, com freqüência, aparecem de perfil com o olhar contendo humildade reservada aos mansos de espírito. Como ele próprio.
O belo e afetivo texto de seu amigo Antonio Celestino, publicado no livro citado, confidencia que Raimundo relatou-lhe dificuldades emocionais iniciadas na infância de família modesta. Dificuldades infantis, representadas por incompreensões, agressões, desejos reprimidos, ações ou omissões, ausência de amor em casa ou fora dela ficam impregnadas na biografia do infante e pouquíssimas pessoas as superam. É a fase da vida em que somos mais fracos e, por causa disso e pela maldade humana de sempre, é quando certos adultos aproveitam para descarregar seu ódio em seres que, impotentes, os olham incrédulos e perplexos. É também a época na qual inconscientemente procuramos um modelo no qual possamos nos mirar e superar. Seu pai nunca exerceu qualquer fascínio sobre o filho. Talvez ambos estivessem paradoxalmente próximos demais pela mistura de sentimentos para se enxergarem, por isso, seu pai foi ao mesmo tempo tão grande que o filho não conseguia vê-lo e nem ser visto e foi também tão diminuto que parece desaparecer no horizonte da biografia do artista. Ele nunca compreendeu a sensibilidade e nem o talento do de quem habitava sua própria casa. Achava incompreensível e inútil o seu desejo de ir estudar belas-artes em Salvador e nunca aprovou a paixão de Raimundo por Carmem Miranda e menos ainda a sua escolha profissional. Foram essa paixão e essa escolha que, muito provavelmente, deixaram o pai envergonhado perante seus amigos e vizinhos em Feira de Santana. Pena que o velho pai não tenha vivido o suficiente para se orgulhar do filho que teve.
Conhecido ditado inglês nos assegura que “atrás de todo grande homem há uma mulher”. Raramente se pergunta qual mulher, mas, do ponto de vista psicanalítico e na maioria dos casos, ela é, pelo bem ou pelo mal, a mãe. Se se pensa o contrário é porque possivelmente o biografado não relatou e nem deixou registros para assegurar essa asserção. Foi assim com Ismael Nery, cuja mãe o construiu e depois o destruiu, segundo ele próprio declarava. Para compensar a fugidia e provável difícil figura paterna, Raimundo de Oliveira teve a mãe como suave e fundamental presença na sua vida. A diferença entre a mãe de Ismael e aquela do pintor baiano estava na dupla santidade desta como declarou seu amigo Edivaldo Boaventura. O primeiro atributo dela provinha do nome de batismo e o segundo da bondade com todos, em especial com Raimundo.
Mas o que o artista herdou da mãe não foi somente a bondade transformada em humanismo na sua pintura. Dona Santa era católica devota e transferiu sua crença para o filho, que fez das histórias do Velho Testamento a temática principal da obra que o consagrou pelo Brasil afora. Tal como Ismael Nery, deixou poucos trabalhos em comparação de outros contemporâneos que viveram mais e, por isso, produziram mais. Mas tudo que fez, foi santificado pela forma, pela paleta colorida, pelo ritmo, pelo equilíbrio e pela preocupação com a simetria da composição. A simetria é essencialmente barroca e cada quadro seu pode ser colocado como se fosse um altar no qual o espectador reverencia a paixão pelo conteúdo sacro, a paleta colorida, o amor pela composição, vendo e ao mesmo tempo rezando o que ele escreveu com tela, pincéis, cores e paixão: belas estórias de amor. Antonio Celestino declara que no seu ateliê havia um menorá, cuja presença ele nunca entendeu. Pintando sobretudo histórias do Velho Testamento, o candelabro provavelmente o lembrava a origem de todos que ele materializava nas telas. Sua pintura não é naïf, não é impressionista e nem expressionista. Nem de longe pretende ser cubista ou surrealista. Ela é mais fácil de definir pelo que não é, do que pelo que é. Ela é Raimundo de Oliveira, apenas isso, singela como o nome que assinava, omitindo o Falcão, seja por economia ou talvez porque reconhecia não ser necessário esclarecer ao espectador o que ele já era na arte. A um olhar de soslaio sobre uma parede acompanhada de quadros de outros colegas, sabemos que sua obra está lá, fazendo a mesma pergunta pessoal do artista, nos mirando e interrogando se foi visto, aceito e aprovado. E a resposta, mesmo daqueles espectadores que desconhecem a sua biografia e o reflexo dela em cada quadro, é de alguém que sente que está defronte de artista pictórico e literário: um narrador que conhece seu texto com as palavras nos lugares exatos, sem repetir um detalhe, literalmente pintando um longo texto bíblico com as matizes que somente as belas histórias contêm.
Fonte: Portal Artes, por Carlos Perktold, consultado pela última vez em 20 de maio de 2020.
Raimundo Falcão de Oliveira (Feira de Santana, BA, 24 de abril de 1930 — Salvador, BA, 18 de janeiro de 1966) foi um gravador, pintor e desenhista brasileiro. Construiu sua obra em grande parte inspirada no universo religioso cristão e com ela obteve projeção internacional.
Biografia - Itaú Cultural
Inicia-se nas artes por intermédio da mãe, pintora de temática religiosa, que o encaminha para o desenho e a pintura, como também o orienta na religião. Incentivado pela professora de desenho, expõe pela primeira vez no Ginásio Santanópolis, onde retrata os professores da escola. Após a conclusão do curso ginasial, em 1947, segue para Salvador, onde faz cursos regulares de pintura com Maria Célia Amado, na Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia, e conhece Mario Cravo Júnior e Jenner Augusto . Realiza a primeira individual no hall da Prefeitura de Feira de Santana, em 1951, momento em que se liga a um grupo de artistas independentes, responsável pelos Cadernos da Bahia. Reside em São Paulo de 1958 a 1964, depois volta a morar na Bahia. Vive no Rio de Janeiro entre 1965 e 1966. No ano de seu suicídio, 1966, é editada a Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira. Xilogravuras, pela Galeria Bonino e Petite Galerie, organizada por Julio Pacello, com prefácio de Jorge Amado. Em 1982, é publicado o segundo álbum do artista, Via Crucis, pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, e é inaugurada a Galeria Raimundo de Oliveira, em Salvador.
Análise
A obra de Raimundo de Oliveira - desenho, guache, óleo e gravura - se desenrola no universo religioso, com santos, imagens e cenas bíblicas representados de diversas formas. Os críticos tendem a distinguir duas fases em sua produção em função das variações observadas no tratamento dado ao tema. Nas décadas de 1950 e 1960 predominam as composições com cores sombrias e caráter expressionista - as figuras marcadas por traços dolorosos e dramáticos, definidas com nanquim e contornos negros, como Cabeça de Cristo, 1957, Crucificado, s.d., e Moisés, 1960 - e algumas leituras mostram afinidades com a pintura de Georges Rouault. Em outro momento, as telas aproximam-se dos pequenos enredos, elaborados com o auxílio de figuras apequenadas (mais humorísticas que trágicas, pelas deformações e desproporções), que se repetem por causa das situações apresentadas. Estruturadas geometricamente, por um equilíbrio de planos horizontais e verticais, as novas telas possuem dinamismo particular, obtido pelos espaços construídos com base em círculos. A energia das cores vibrantes e o dinamismo da tela são as marcas salientes dessa fase, visto em O Sonho de Jacob, s.d. Além das influências simbolistas e da arte naif de Henri Rousseau, são perceptíveis, nessa fase, ecos da arte popular nordestina brasileira. O universo religioso é lido da ótica das festas e da religiosidade popular, misturando-se frequentemente ao mundo profano - procissões, bumba-meu-boi, altares domésticos etc. Os enredos e modos de figuração, por sua vez, remetem à arte dos gravadores e ceramistas do Nordeste. Elementos retirados da paisagem nacional, como árvores e animais tropicais, são outra forma de articular o erudito e o popular, o universal e o nacional - Jesus no Horto das Oliveiras, 1962, e Chegada em Jerusalém, 1964.
Críticas
"E então todos se deram conta que o burel não era um burel, era uma velha capa contra a chuva, e o cajado não era cajado, eram pincéis de pintura. E havia uma tela e o cujo sujeito pintava. Alguns quiseram apedrejá-lo, considerando-o um vigarista vindo de fora, mas outros reconheceram o peregrino e a ele se dirigiram, tratando-o familiarmente de Mundinho. Pois era Raimundo de Oliveira, filho da terra, desde menino um vago, sem jeito para o trabalho, a não ser para riscar papel, se isso é trabalho que se considere. Tinha ido embora fazia tempo, dele não havia notícia. Apareceu agora de repente e em torno de sua grande cabeça pairava uma atmosfera mágica, como se o cercasse a luz da madrugada. (...)
Esse pintor, esse grande pintor da Bíblia e da Bahia, esse que passou a limpo a violência do Velho Testamento e o tornou de maciez de veludo, esse que encheu de flores a áspera tragédia antiga, esse moço de voz tímida e segura certeza, esse Raimundo de Oliveira é um profeta com alma de Francisco de Assis. Só a Bahia o podia produzir, nos caminhos da cidade onde nasce o sertão; só a Bahia o podia alimentar e o oferecer às galerias do sul, à glória e à fama, pois sua Bíblia tem uma respiração de candomblé (não fosse ele filho de mãe Senhora de Ôpo Afonjá e não houvesse aprendido a cozinhar com Olga do Aleketu). Mestre pintor, não sei de outro que tenha crescido tanto em sua arte, mantendo-se tão fiel aos sonhos de sua meninice, às esperanças de sua Mãe e ao seu tesouro escondido. (...)
Raimundo de Oliveira (...) não ficou na Bahia. Era um profeta e tinha de levar sua profecia mundo adentro. Tinha de correr os caminhos e demorar em terras distantes. Anda por aqui e por ali, mas é na Bahia que ele vem se alimentar de terra, de animais, de Deus e de amor, é na Bahia que ele vem, humilde e vitorioso, reapreender o mistério do homem e sua necessidade de paz e de fartura".
Jorge Amado - 1966 (In: OLIVEIRA, Raimundo de. Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira. Xilogravuras. Prefácio Jorge Amado; organização Julio A. Pacello. São Paulo: Lia Cesar, 1966.)
"Este livro (de xilogravuras) nasceu há mais de dois anos, quando Raimundo de Oliveira me procurou para que eu o ajudasse a distribuir convites para a sua exposição, na Galeria Astréia. Saímos juntos, nessa simples missão, e foi no caminho que nasceu a idéia de fazer uma pequena Bíblia. Daí em diante, durante muitos meses, trabalhamos em estreita colaboração. Levamos bastante tempo escolhendo as cenas bíblicas que nos pareciam mais representativas. Essa escolha levava em consideração tanto o aspecto bíblico como o artístico. Além disso, teve que sujeitar-se às limitações impostas pela técnica da xilogravura".
Julio A. Pacello (In: OLIVEIRA, Raimundo de. Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira. Xilogravuras. Prefácio Jorge Amado; organização Julio A. Pacello. São Paulo: Lia Cesar, 1966.)
"Apesar da ingênua composição plástica de suas obras e de sua franca rebeldia em relação à disciplina escolar (...) jamais foi, como equivocadamente o apresentaram (...), um primitivo, um 'naif' (...) estava preocupado com a problemática estilística que lhe provocavam os temas e as narrativas religiosos, interpretando-os com cenas de extremo lirismo".
Clarival do Prado Valadares (PONTUAL, Roberto. Dicionário das artes plásticas no Brasil. Apresentação de Antônio Houaiss. Textos de Mário Barata et al. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.)
Exposições Individuais
1951 - Feira de Santana BA - Primeira individual, na Prefeitura Municipal
1951 - Salvador BA - Individual, na Galeria Oxumaré
1953 - Feira de Santana BA - Individual, na Prefeitura Municipal
1953 - Salvador BA - Individual, na Galeria Oxumaré
1956 - Salvador BA - O Drama do Calvário, no Belvedere da Sé
1957 - Buenos Aires (Argentina) - Individual, na Plástica Galeria de Arte
1958 - Salvador BA - Individual, na Galeria Oxumaré
1959 - Santos SP - Individual, no Hall do Edifício Indaiá
1959 - São Paulo SP - Individual, na Galeria Ambiente
1960 - São Paulo SP - Individual, no Teatro Novos Comediantes
1960 - São Paulo SP - Individual, no Teatro Oficina
1961 - Campinas SP - Individual, na Galeria Aremar
1961 - São Paulo SP- Individual, na Galeria Astréia
1962 - São Paulo SP - Individual, no Clubinho
1962 - São Paulo SP- Individual, na Galeria Astréia
1963 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Bonino
1964 - Buenos Aires (Argentina) - Individual, na Galeria Bonino
1964 - São Paulo SP - Individual, na Galeria Astréia
1965 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Bonino
1966 - Rio de Janeiro RJ - Individual, no MAM/RJ
Exposições Coletivas
1951 - Salvador BA - 1º Salão Universitário Baiano de Belas Artes
1952 - Feira de Santana BA - 1ª Exposição de Arte Moderna de Feira de Santana, no Banco Econômico da Bahia
1952 - Rio de Janeiro RJ - 1º Salão Nacional de Arte Moderna, no MAM/RJ
1952 - Salvador BA - 2º Salão Universitário Baiano de Belas Artes
1953 - Salvador BA - Poty, Carlos Bastos e Raimundo Oliveira, na Galeria Oxumaré
1953 - Salvador BA - 3º Salão Baiano de Belas Artes
1954 - Salvador BA - 4º Salão Baiano de Belas Artes, no Hotel Bahia
1955 - Salvador BA - 5º Salão Baiano de Belas Artes, na Galeria Belvedere da Sé - menção honrosa em desenho
1956 - Rio de Janeiro RJ - 5º Salão Nacional de Arte Moderna
1956 - Salvador BA - 6ª Salão Baiano de Belas Artes, na Galeria Oxumaré - menção honrosa em pintura
1956 - Salvador BA - Artistas Modernos da Bahia, na Galeria Oxumaré
1956 - Salvador BA - Exposição de Pintura Moderna, no Palácio Rio Branco
1957 - Rio de Janeiro RJ - 6º Salão Nacional de Arte Moderna
1957 - São Paulo SP - Artistas da Bahia, no MAM/SP
1959 - São Paulo SP - 47 Artistas, na Galeria de Arte das Folhas
1960 - São Paulo SP - 9º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia - medalha de bronze
1961 - Porto Alegre RS - Círculo dos Amigos da Arte, no Margs
1961 - São Paulo SP - Arte Sacra Contemporânea, na Sede do Movimento Graal
1961 - São Paulo SP - 10º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia - prêmio aquisição
1962 - São Paulo SP - 11º Salão Paulista de Arte Moderna - pequena medalha de prata
1963 - São Paulo SP - 12º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia
1963 - São Paulo SP - 7ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal
1964 - São Paulo SP - 13º Salão Paulista de Arte Moderna
1965 - Caracas (Venezuela) - Avaliação da Pintura Latino-Americana
1965 - Paris (França) - Salon Comparaisons, no Musée d'Art Moderne de La Ville de Paris
1965 - Paris (França) - Oito Pintores Ingênuos Brasileiros, na Galerie Jacques Massol
1965 - Rio de Janeiro RJ - 33 Artistas em Homenagem à Cidade do Rio de Janeiro - menção honrosa
1965 - São Paulo SP - 8ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal
1966 - Buenos Aires (Argentina) - Artistas Brasileiros Contemporâneos, no Museo de Arte Moderno
1966 - Lausanne (Suíça) - Artistas e Descobridores de Nosso Tempo
1966 - Nova York (Estados Unidos) - Brazilian Artists, na Amel Gallery
1966 - Montevidéu (Uruguai) - Artistas Brasileiros Contemporâneos, no Museo de Arte Moderno de Buenos Aires
1966 - Madri (Espanha) - Artistas da Bahia, no Instituto de Cultura Hispânica
1966 - Lausanne (Suíça) - Salão Internacional de Galerias - Piloto
1966 - Nova York (Estados Unidos) - Brazilian Artists, na Amel Gallery
1966 - Moscou (Rússia) - Pintores Primitivos Brasileiros
1966 - São Paulo SP - 15º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia
1966 - Nova York (Estados Unidos) - The Emergent Decade, no Solomon R. Guggenheim Museum
Exposições Póstumas
1966 - Rio de Janeiro RJ - 4ª Resumo de Arte do JB, no MAM/RJ
1966 - Salvador BA - 1ª Bienal Nacional de Artes Plásticas
1966 - São Paulo SP - 15º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia
1967 - Salvador BA - Exposição Coletiva de Natal, na Panorama Galeria de Arte
1969 - Rio de Janeiro RJ - Via Crucis, no Gabinete de Arte de Botafogo
1976 - São Paulo SP - Individual, na Galeria de Arte Portal
1979 - São Paulo SP - Raimundo de Oliveira: pinturas, na Galeria de Arte Ipanema
1982 - Salvador BA - A Arte Brasileira da Coleção Odorico Tavares, no Museu Carlos Costa Pinto
1984 - São Paulo SP - Coleção Gilberto Chateaubriand: retrato e auto-retrato da arte brasileira, no MAM/SP
1984 - São Paulo SP - Tradição e Ruptura: síntese de arte e cultura brasileiras, na Fundação Bienal
1986 - São Paulo SP - Individual, na Biblioteca Mário de Andrade
1988 - São Paulo SP - Pintura Ingênua Brasileira, no Espaço Quadros e Objetos de Arte
1990 - São Paulo SP - Figurativismo/Abstracionismo: o vermelho na pintura brasileira, na Itaugaleria
1992 - Belém PA - Décima Primeira Arte, na Fundação Romulo Maiorana
1992 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Bonino
1993 - João Pessoa PB - Xilogravura: do cordel à galeria, na Funesc
1993 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Ipanema
1994 - Poços de Caldas MG - Coleção Unibanco: exposição comemorativa dos 70 anos de Unibanco, na Casa da Cultura
1994 - São Paulo SP - Xilogravura: do cordel à galeria, no Metrô
1995 - Rio de Janeiro RJ - Coleção Unibanco: exposição comemorativa dos 70 anos de Unibanco, no MAM/RJ
1996 - Belém PA - 15º Salão Arte Pará, no Museu de Arte do Belém
1996 - São Paulo SP - Ex Libris/Home Page, no Paço das Artes
1997 - Porto Alegre RS - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1997 - São Paulo SP - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1998 - Curitiba PR - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1998 - Rio de Janeiro RJ - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1998 - São Paulo SP - Os Colecionadores - Guita e José Mindlin: matrizes e gravuras, na Galeria de Arte do Sesi
1999 - Salvador BA - 100 Artistas Plásticos da Bahia, no Museu de Arte Sacra
1999 - Salvador BA - 60 Anos de Arte Brasileira, no Espaço Cultural da Caixa Econômica Federal
2000 - São Paulo SP - Investigações. A Gravura Brasileira, no Itaú Cultural
2000 - São Paulo SP - Os Anjos Estão de Volta, na Pinacoteca do Estado
2001 - Brasília DF - Investigações. A Gravura Brasileira, na Itaú Galeria
2001 - Penápolis SP - Investigações. A Gravura Brasileira, na Galeria Itaú Cultural
2001 - São Paulo SP - Coleção Aldo Franco, na Pinacoteca do Estado
2002 - Rio de Janeiro RJ - Arte Brasileira na Coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem, no CCBB
2002 - São Paulo SP - Arte Brasileira na Coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem, no CCBB
2002 - São Paulo SP - Santa Ingenuidade, na Unifieo
Fonte: RAIMUNDO de Oliveira. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: Itaú Cultural. Acesso em: 06 de Jun. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
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O pintor feirense que expôs em Paris e Nova York
“O profeta Raimundo, grande da pintura brasileira, carregado de drama, de solidão e de pecado, é no entanto o mais alegre e terno, o mais puro e numeroso, jamais sozinho pois sua palavra é de solidariedade e sua mensagem é o amor entre os seres humanos, é a alegria fluindo dos pincéis e de seu coração. É o profeta de Feira de Sant’Ana, lá vem montado em seu jumento e vai levar sua carga de amor aos confins do mundo”.
Assim o escritor Jorge Amado descreveu o artista feirense Raimundo Falcão de Oliveira, um dos maiores nomes das artes plásticas que Feira de Santana já produziu. Nascido em 1930, Raimundo possui ampla obra, já exposta em Paris, Nova York, Madri e Moscou, além de outras cidades da Europa, America Latina e Brasil, a exemplo de Rio de Janeiro e São Paulo.
Sua primeira exposição, entretanto, ocorreu em no Colégio Santanópolis, na década de 40, onde estudava, seguindo-se uma outra no hall da Prefeitura Municipal de Feira de Santana, em 1951.
Raimundo teve conexão central com sua mãe, Dona Santa, assídua frequentadora da Igreja Matriz (Catedral de Santana).
Lembra Edivaldo Boaventura, em texto sobre Raimundo de Oliveira: “Habituei-me desde muito cedo, ao tempo em que criança morava na Praça da Matriz a ver Raimundo, sempre de calça e paletó escuros e aparentando mais idade do que realmente tinha, a passar bem devagar conduzindo pelo braço D. Santa. Vinham mãe e filho pelo beco de Santana, atravessavam o largo em cadência lenta e ritmada e entravam na Matriz pelo portão da frente”.
Em Salvador, Raimundo Oliveira chegou a cursar a Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia. Lá conheceu artistas como Mario Cravo Júnior e Jenner Augusto. Daí, para o mundo: morou em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde entrou em contato com artistas de renome nacional.
Juraci Dórea, artista feirense, em texto para o livro “A Via Crucis de Raimundo Oliveira”, descreve a personalidade de Raimundo já em Salvador: “Eu o conheci na pensão de Renato, em Salvador, onde moramos em quartos vizinhos. […] Não me pareceu uma criatura tão estranha como se costumava descrevê-lo aqui em Feira de Santana, embora tivesse aquele hábito (por certo adquirido no Sul) de andar, em plena cidade da Bahia, sempre vestido com paletó e gravata. Já passava dos 30 anos. Calmo no falar. Introspectivo. Entregava-se, na época, a um discreto alcoolismo. Queria saber, às vezes, das pessoas e das coisas de Feira, com as quais perdera o contato”.
A obra de Raimundo Oliveira é muito influenciada por temas cristãos católicos, influência atribuída à sua infância religiosa ao lado da mãe. Diz Juraci Dórea, sobre o momento em que Dona Santa faleceu, em 1954: “Raimundo entrou em pânico, entregou-se ao mais completo desespero, deixou de pintar e chegou mesmo a ser internado para tratamento”.
Para Antonio Celestino, os dramas familiares tiveram influências marcantes na vida de Raimundo de Oliveira: “Profundamente religioso, nascido de família modesta, de mãe devotadamente católica, problemas familiares marcaram-no indelevelmente, como detalhadamente me confessara nas mais estranhas condições e nas mais graves aflições de sua vida. Creio que foi esse clima de drama em que viveu seus verdes anos que originou suas primeiras manifestações artísticas”.
Raimundo tinha aspirações seminaristas, chegando a se matricular em uma instituição que recepcionava vocacionados tardios, mas não seguiu a trilha religiosa – pelo menos a tradicional. Restou-lhe, como disse Juraci Dórea “a sublimação, pela arte, de sua desesperada aventura mística”.
Em 1966, Raimundo de Oliveira foi encontrado morto no Hotel São Bento, em Salvador, após ter cometido suicídio.
Edivaldo Boaventura lembra das circunstâncias: “O prefeito de Feira, Joselito Falcão Amorim, mandou buscar o corpo e lhe deu sepultura. Helder Alencar, secretário do Governo Municipal, fora encarregado do transporte, embalsamento e demais providências. Fernando Santos, que assistiu o enterro, contou-me que o féretro saíra do mesmo lugar da primeira exposição de Raimundo em Feira. No mesmo recinto nobre, no mesmo mês quente de janeiro. Quinze anos depois. Foi a volta definitiva…
Fonte e crédito fotográfico: Feirenses, publicado em 22 de agosto de 2017.
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Raimundo de Oliveira, por Carlos Perktold
Há algumas semanas este articulista viu pela televisão a entrevista de um senhor idoso usando uma camiseta na qual havia recomendação de duvidoso gosto: live fast, die young. Infelizmente não é o único, mas se havia alguém neste país mais autorizado a usar roupa com esse aforismo no século XX chamou-se Raimundo Falcão de Oliveira, baiano de nascimento, artista que deixou acervo de incomparável beleza e com trágica passagem nesta vida. Viveu rápido, morreu jovem e se imortalizou como pintor e artista.
Transcorridos mais de trinta anos após sua morte, a carta com a qual ele se despediu deste mundo em 18 de janeiro de 1966 continua tão emocionante quanto a sua pintura. O texto registra a gratidão dele pelos amigos que o aceitaram, o acolheram e o ampararam durante sua curta vida e que, não suportando as dificuldades emocionais e financeiras e com aparente lucidez, lamentava “que não conseguisse mais agüentar”. A carta é dirigida “a todos os meus amigos”, mas vários são nomeados nela: Mário Cravo, Jorge Amado, Rodolfo e Getrudes Klein, Sarah Campos, Jenner, Genaro, Emanoel e outros, brasileiros como ele. Mas a carta de despedida, sem que ele sequer imaginasse, é endereçada também a seus admiradores do futuro que, não o conhecendo pessoalmente em Feira de Santana, Salvador, Rio ou São Paulo durante os anos 1940 até 1966, hoje reverenciam o brilhante e saudoso artista. Na despedida ele esclarece que o seu último gesto foi motivado “por problemas financeiros, pois é horrível todo mundo pensar que a gente é rico sem ser” [A Via Crucis de Raimundo de Oliveira, Fundação Cultural do Estado da Bahia. Salvador: 1982 p.166]. Não se pode duvidar da palavra literalmente final de pintor sensível que viveu numa época na qual o país valorizava pouco seus artistas, o mercado de arte era incipiente e os colecionadores eram raros. Assim, não foi somente Raimundo a queixar dificuldades financeiras, mas é possível que apenas ele tenha morrido por esse motivo. Em 1966 poucos artistas poderiam se dar ao luxo de viver apenas da venda de seus trabalhos. A maioria dos pintores tinha emprego público, era professor, fazia “bicos” com representação comercial ou retoques em fotografias enquanto aguardavam novos e melhores tempos artísticos ou sujeitava-se a viver com certa penúria. A origem do “problema financeiro” de Raimundo e de artistas em geral é o colecionador neófito visitar os seus ateliês, ver vários quadros armazenados um atrás do outro, multiplicá-los pelo preço de venda e calcular quanto ele tem dentro daquele imóvel, como se o pintor fosse um criador de dinheiro, lastreado nas suas próprias obras. Nessas condições, vê-se o artista como rico. Nada mais falso. É possível que tenha sido dessa riqueza de que ele falava. As vendas de obras de arte não ocorrem com a facilidade que a maioria do grande público imagina. Raríssimo são os artistas que selecionam seus compradores ou têm “lista de espera”. Mas, ainda naquela carta, Raimundo afirma ter “certeza que a minha morte não foi por causa dos meus problemas sexuais”. Ele se referia a certa orientação numa época na qual ela era inaceitável e mal vista. Vivendo hoje, veria que o mundo mudou, muitas coisas para pior, mas que a aceitação de pessoas portadoras do que ele chamou de “problemas” é infinitamente maior que na sua juventude. Por isso, suas angústias talvez fossem menores se ele tivesse suportado as pressões familiares e sociais e aguardado mais para viver menos infeliz no mundo de hoje. Para tentar diminuir sentimentos que lhe incomodavam tanto, levou vida boêmia pelas grandes cidades brasileiras e, em certas ocasiões, ela foi tão devastadora que ele não produziu nada durante meses. Na época, foi a saída objetiva e emocional que o permitiu viver o seu desejo. Mas a sua provinciana Feira de Santana e todos os censores de sua adolescência e juventude nunca o abandonaram. Viveram todos dentro dele como se fossem fantasmas internos a assombrá-lo e lembrando-lhe que ele era baiano, terra na qual certas preferências eram imperdoáveis.
Raimundo Falcão de Oliveira era alto, ouvia mal, prognata, falava com voz gutural alta, tinha nariz adunco e se julgava feio. Como pintor talvez visse que seu rosto não tinha o equilíbrio dos elementos de uma composição com o número de ouro bem calculado. Seus amigos o adoravam pelo seu talento e pelo aparente e sempre elevado nível de humor, prova de sua defesa maníaca frente à depressão que ele preferia dividir com poucos. Na Bahia ou no Rio, usava sempre terno preto, cor rara nos seus quadros, mas metafórico matiz do seu mundo interno. O terno refletia sua formalidade pessoal e com todos. Teve vida curta: trinta e seis anos. Com tão pouca idade, deixou acervo de pintura que começou ainda na adolescência em Feira de Santana. Ali ele iniciou seus primeiros desenhos e estudos. Adulto, passou por Salvador, Rio e fez amigos em São Paulo, construindo trajetória curta e imortal. Em todas as figuras humanas pintadas nos seus quadros há a preocupação do nariz acentuado no modelo, santo ou profeta, projeção do que lhe incomodava em si mesmo, algo semelhante àquilo que ocorreu com Guignard e seus modelos, que eram retratados com o lábio leporino do pintor. É possível que o detalhe crítico dos grandes olhos e o nariz adunco de seus personagens tenham sido projeções inconscientes durante longo tempo e que, tão logo ele percebeu a força deles em cada obra, os tenha valorizado ainda mais a partir de 1960. Desse ano em diante, aqueles detalhes passam a ser signos consagradores de pintura com exuberantes cores, acrescido da encantadora simetria. Na vida adulta perdeu a paleta escura e o corte seco contidos nos retratos de gente humilde de sua cidade e adolescência, paleta de então que era provável reflexo de suas dificuldades de jovem. Na maturidade da vida artística ganhou a incomparável beleza com matizes incompreensíveis para quem era artista deprimido. Seus quadros são demonstrações de vitalidade e exuberância de vida que são o oposto do que ele vivia. As cores complementares predominam, mas sabedor de seu talento, não as segue com rigor em todos os quadros. Como ocorre nas obras de grandes mestres, nenhum detalhe das composições de sua pintura chama a atenção de forma especial. O resultado em qualquer situação é de encantadora beleza. Seus personagens, com freqüência, aparecem de perfil com o olhar contendo humildade reservada aos mansos de espírito. Como ele próprio.
O belo e afetivo texto de seu amigo Antonio Celestino, publicado no livro citado, confidencia que Raimundo relatou-lhe dificuldades emocionais iniciadas na infância de família modesta. Dificuldades infantis, representadas por incompreensões, agressões, desejos reprimidos, ações ou omissões, ausência de amor em casa ou fora dela ficam impregnadas na biografia do infante e pouquíssimas pessoas as superam. É a fase da vida em que somos mais fracos e, por causa disso e pela maldade humana de sempre, é quando certos adultos aproveitam para descarregar seu ódio em seres que, impotentes, os olham incrédulos e perplexos. É também a época na qual inconscientemente procuramos um modelo no qual possamos nos mirar e superar. Seu pai nunca exerceu qualquer fascínio sobre o filho. Talvez ambos estivessem paradoxalmente próximos demais pela mistura de sentimentos para se enxergarem, por isso, seu pai foi ao mesmo tempo tão grande que o filho não conseguia vê-lo e nem ser visto e foi também tão diminuto que parece desaparecer no horizonte da biografia do artista. Ele nunca compreendeu a sensibilidade e nem o talento do de quem habitava sua própria casa. Achava incompreensível e inútil o seu desejo de ir estudar belas-artes em Salvador e nunca aprovou a paixão de Raimundo por Carmem Miranda e menos ainda a sua escolha profissional. Foram essa paixão e essa escolha que, muito provavelmente, deixaram o pai envergonhado perante seus amigos e vizinhos em Feira de Santana. Pena que o velho pai não tenha vivido o suficiente para se orgulhar do filho que teve.
Conhecido ditado inglês nos assegura que “atrás de todo grande homem há uma mulher”. Raramente se pergunta qual mulher, mas, do ponto de vista psicanalítico e na maioria dos casos, ela é, pelo bem ou pelo mal, a mãe. Se se pensa o contrário é porque possivelmente o biografado não relatou e nem deixou registros para assegurar essa asserção. Foi assim com Ismael Nery, cuja mãe o construiu e depois o destruiu, segundo ele próprio declarava. Para compensar a fugidia e provável difícil figura paterna, Raimundo de Oliveira teve a mãe como suave e fundamental presença na sua vida. A diferença entre a mãe de Ismael e aquela do pintor baiano estava na dupla santidade desta como declarou seu amigo Edivaldo Boaventura. O primeiro atributo dela provinha do nome de batismo e o segundo da bondade com todos, em especial com Raimundo.
Mas o que o artista herdou da mãe não foi somente a bondade transformada em humanismo na sua pintura. Dona Santa era católica devota e transferiu sua crença para o filho, que fez das histórias do Velho Testamento a temática principal da obra que o consagrou pelo Brasil afora. Tal como Ismael Nery, deixou poucos trabalhos em comparação de outros contemporâneos que viveram mais e, por isso, produziram mais. Mas tudo que fez, foi santificado pela forma, pela paleta colorida, pelo ritmo, pelo equilíbrio e pela preocupação com a simetria da composição. A simetria é essencialmente barroca e cada quadro seu pode ser colocado como se fosse um altar no qual o espectador reverencia a paixão pelo conteúdo sacro, a paleta colorida, o amor pela composição, vendo e ao mesmo tempo rezando o que ele escreveu com tela, pincéis, cores e paixão: belas estórias de amor. Antonio Celestino declara que no seu ateliê havia um menorá, cuja presença ele nunca entendeu. Pintando sobretudo histórias do Velho Testamento, o candelabro provavelmente o lembrava a origem de todos que ele materializava nas telas. Sua pintura não é naïf, não é impressionista e nem expressionista. Nem de longe pretende ser cubista ou surrealista. Ela é mais fácil de definir pelo que não é, do que pelo que é. Ela é Raimundo de Oliveira, apenas isso, singela como o nome que assinava, omitindo o Falcão, seja por economia ou talvez porque reconhecia não ser necessário esclarecer ao espectador o que ele já era na arte. A um olhar de soslaio sobre uma parede acompanhada de quadros de outros colegas, sabemos que sua obra está lá, fazendo a mesma pergunta pessoal do artista, nos mirando e interrogando se foi visto, aceito e aprovado. E a resposta, mesmo daqueles espectadores que desconhecem a sua biografia e o reflexo dela em cada quadro, é de alguém que sente que está defronte de artista pictórico e literário: um narrador que conhece seu texto com as palavras nos lugares exatos, sem repetir um detalhe, literalmente pintando um longo texto bíblico com as matizes que somente as belas histórias contêm.
Fonte: Portal Artes, por Carlos Perktold, consultado pela última vez em 20 de maio de 2020.
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Raimundo Falcão de Oliveira (Feira de Santana, BA, 24 de abril de 1930 — Salvador, BA, 18 de janeiro de 1966) foi um gravador, pintor e desenhista brasileiro. Construiu sua obra em grande parte inspirada no universo religioso cristão e com ela obteve projeção internacional.
Biografia - Itaú Cultural
Inicia-se nas artes por intermédio da mãe, pintora de temática religiosa, que o encaminha para o desenho e a pintura, como também o orienta na religião. Incentivado pela professora de desenho, expõe pela primeira vez no Ginásio Santanópolis, onde retrata os professores da escola. Após a conclusão do curso ginasial, em 1947, segue para Salvador, onde faz cursos regulares de pintura com Maria Célia Amado, na Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia, e conhece Mario Cravo Júnior e Jenner Augusto . Realiza a primeira individual no hall da Prefeitura de Feira de Santana, em 1951, momento em que se liga a um grupo de artistas independentes, responsável pelos Cadernos da Bahia. Reside em São Paulo de 1958 a 1964, depois volta a morar na Bahia. Vive no Rio de Janeiro entre 1965 e 1966. No ano de seu suicídio, 1966, é editada a Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira. Xilogravuras, pela Galeria Bonino e Petite Galerie, organizada por Julio Pacello, com prefácio de Jorge Amado. Em 1982, é publicado o segundo álbum do artista, Via Crucis, pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, e é inaugurada a Galeria Raimundo de Oliveira, em Salvador.
Análise
A obra de Raimundo de Oliveira - desenho, guache, óleo e gravura - se desenrola no universo religioso, com santos, imagens e cenas bíblicas representados de diversas formas. Os críticos tendem a distinguir duas fases em sua produção em função das variações observadas no tratamento dado ao tema. Nas décadas de 1950 e 1960 predominam as composições com cores sombrias e caráter expressionista - as figuras marcadas por traços dolorosos e dramáticos, definidas com nanquim e contornos negros, como Cabeça de Cristo, 1957, Crucificado, s.d., e Moisés, 1960 - e algumas leituras mostram afinidades com a pintura de Georges Rouault. Em outro momento, as telas aproximam-se dos pequenos enredos, elaborados com o auxílio de figuras apequenadas (mais humorísticas que trágicas, pelas deformações e desproporções), que se repetem por causa das situações apresentadas. Estruturadas geometricamente, por um equilíbrio de planos horizontais e verticais, as novas telas possuem dinamismo particular, obtido pelos espaços construídos com base em círculos. A energia das cores vibrantes e o dinamismo da tela são as marcas salientes dessa fase, visto em O Sonho de Jacob, s.d. Além das influências simbolistas e da arte naif de Henri Rousseau, são perceptíveis, nessa fase, ecos da arte popular nordestina brasileira. O universo religioso é lido da ótica das festas e da religiosidade popular, misturando-se frequentemente ao mundo profano - procissões, bumba-meu-boi, altares domésticos etc. Os enredos e modos de figuração, por sua vez, remetem à arte dos gravadores e ceramistas do Nordeste. Elementos retirados da paisagem nacional, como árvores e animais tropicais, são outra forma de articular o erudito e o popular, o universal e o nacional - Jesus no Horto das Oliveiras, 1962, e Chegada em Jerusalém, 1964.
Críticas
"E então todos se deram conta que o burel não era um burel, era uma velha capa contra a chuva, e o cajado não era cajado, eram pincéis de pintura. E havia uma tela e o cujo sujeito pintava. Alguns quiseram apedrejá-lo, considerando-o um vigarista vindo de fora, mas outros reconheceram o peregrino e a ele se dirigiram, tratando-o familiarmente de Mundinho. Pois era Raimundo de Oliveira, filho da terra, desde menino um vago, sem jeito para o trabalho, a não ser para riscar papel, se isso é trabalho que se considere. Tinha ido embora fazia tempo, dele não havia notícia. Apareceu agora de repente e em torno de sua grande cabeça pairava uma atmosfera mágica, como se o cercasse a luz da madrugada. (...)
Esse pintor, esse grande pintor da Bíblia e da Bahia, esse que passou a limpo a violência do Velho Testamento e o tornou de maciez de veludo, esse que encheu de flores a áspera tragédia antiga, esse moço de voz tímida e segura certeza, esse Raimundo de Oliveira é um profeta com alma de Francisco de Assis. Só a Bahia o podia produzir, nos caminhos da cidade onde nasce o sertão; só a Bahia o podia alimentar e o oferecer às galerias do sul, à glória e à fama, pois sua Bíblia tem uma respiração de candomblé (não fosse ele filho de mãe Senhora de Ôpo Afonjá e não houvesse aprendido a cozinhar com Olga do Aleketu). Mestre pintor, não sei de outro que tenha crescido tanto em sua arte, mantendo-se tão fiel aos sonhos de sua meninice, às esperanças de sua Mãe e ao seu tesouro escondido. (...)
Raimundo de Oliveira (...) não ficou na Bahia. Era um profeta e tinha de levar sua profecia mundo adentro. Tinha de correr os caminhos e demorar em terras distantes. Anda por aqui e por ali, mas é na Bahia que ele vem se alimentar de terra, de animais, de Deus e de amor, é na Bahia que ele vem, humilde e vitorioso, reapreender o mistério do homem e sua necessidade de paz e de fartura".
Jorge Amado - 1966 (In: OLIVEIRA, Raimundo de. Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira. Xilogravuras. Prefácio Jorge Amado; organização Julio A. Pacello. São Paulo: Lia Cesar, 1966.)
"Este livro (de xilogravuras) nasceu há mais de dois anos, quando Raimundo de Oliveira me procurou para que eu o ajudasse a distribuir convites para a sua exposição, na Galeria Astréia. Saímos juntos, nessa simples missão, e foi no caminho que nasceu a idéia de fazer uma pequena Bíblia. Daí em diante, durante muitos meses, trabalhamos em estreita colaboração. Levamos bastante tempo escolhendo as cenas bíblicas que nos pareciam mais representativas. Essa escolha levava em consideração tanto o aspecto bíblico como o artístico. Além disso, teve que sujeitar-se às limitações impostas pela técnica da xilogravura".
Julio A. Pacello (In: OLIVEIRA, Raimundo de. Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira. Xilogravuras. Prefácio Jorge Amado; organização Julio A. Pacello. São Paulo: Lia Cesar, 1966.)
"Apesar da ingênua composição plástica de suas obras e de sua franca rebeldia em relação à disciplina escolar (...) jamais foi, como equivocadamente o apresentaram (...), um primitivo, um 'naif' (...) estava preocupado com a problemática estilística que lhe provocavam os temas e as narrativas religiosos, interpretando-os com cenas de extremo lirismo".
Clarival do Prado Valadares (PONTUAL, Roberto. Dicionário das artes plásticas no Brasil. Apresentação de Antônio Houaiss. Textos de Mário Barata et al. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.)
Exposições Individuais
1951 - Feira de Santana BA - Primeira individual, na Prefeitura Municipal
1951 - Salvador BA - Individual, na Galeria Oxumaré
1953 - Feira de Santana BA - Individual, na Prefeitura Municipal
1953 - Salvador BA - Individual, na Galeria Oxumaré
1956 - Salvador BA - O Drama do Calvário, no Belvedere da Sé
1957 - Buenos Aires (Argentina) - Individual, na Plástica Galeria de Arte
1958 - Salvador BA - Individual, na Galeria Oxumaré
1959 - Santos SP - Individual, no Hall do Edifício Indaiá
1959 - São Paulo SP - Individual, na Galeria Ambiente
1960 - São Paulo SP - Individual, no Teatro Novos Comediantes
1960 - São Paulo SP - Individual, no Teatro Oficina
1961 - Campinas SP - Individual, na Galeria Aremar
1961 - São Paulo SP- Individual, na Galeria Astréia
1962 - São Paulo SP - Individual, no Clubinho
1962 - São Paulo SP- Individual, na Galeria Astréia
1963 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Bonino
1964 - Buenos Aires (Argentina) - Individual, na Galeria Bonino
1964 - São Paulo SP - Individual, na Galeria Astréia
1965 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Bonino
1966 - Rio de Janeiro RJ - Individual, no MAM/RJ
Exposições Coletivas
1951 - Salvador BA - 1º Salão Universitário Baiano de Belas Artes
1952 - Feira de Santana BA - 1ª Exposição de Arte Moderna de Feira de Santana, no Banco Econômico da Bahia
1952 - Rio de Janeiro RJ - 1º Salão Nacional de Arte Moderna, no MAM/RJ
1952 - Salvador BA - 2º Salão Universitário Baiano de Belas Artes
1953 - Salvador BA - Poty, Carlos Bastos e Raimundo Oliveira, na Galeria Oxumaré
1953 - Salvador BA - 3º Salão Baiano de Belas Artes
1954 - Salvador BA - 4º Salão Baiano de Belas Artes, no Hotel Bahia
1955 - Salvador BA - 5º Salão Baiano de Belas Artes, na Galeria Belvedere da Sé - menção honrosa em desenho
1956 - Rio de Janeiro RJ - 5º Salão Nacional de Arte Moderna
1956 - Salvador BA - 6ª Salão Baiano de Belas Artes, na Galeria Oxumaré - menção honrosa em pintura
1956 - Salvador BA - Artistas Modernos da Bahia, na Galeria Oxumaré
1956 - Salvador BA - Exposição de Pintura Moderna, no Palácio Rio Branco
1957 - Rio de Janeiro RJ - 6º Salão Nacional de Arte Moderna
1957 - São Paulo SP - Artistas da Bahia, no MAM/SP
1959 - São Paulo SP - 47 Artistas, na Galeria de Arte das Folhas
1960 - São Paulo SP - 9º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia - medalha de bronze
1961 - Porto Alegre RS - Círculo dos Amigos da Arte, no Margs
1961 - São Paulo SP - Arte Sacra Contemporânea, na Sede do Movimento Graal
1961 - São Paulo SP - 10º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia - prêmio aquisição
1962 - São Paulo SP - 11º Salão Paulista de Arte Moderna - pequena medalha de prata
1963 - São Paulo SP - 12º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia
1963 - São Paulo SP - 7ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal
1964 - São Paulo SP - 13º Salão Paulista de Arte Moderna
1965 - Caracas (Venezuela) - Avaliação da Pintura Latino-Americana
1965 - Paris (França) - Salon Comparaisons, no Musée d'Art Moderne de La Ville de Paris
1965 - Paris (França) - Oito Pintores Ingênuos Brasileiros, na Galerie Jacques Massol
1965 - Rio de Janeiro RJ - 33 Artistas em Homenagem à Cidade do Rio de Janeiro - menção honrosa
1965 - São Paulo SP - 8ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal
1966 - Buenos Aires (Argentina) - Artistas Brasileiros Contemporâneos, no Museo de Arte Moderno
1966 - Lausanne (Suíça) - Artistas e Descobridores de Nosso Tempo
1966 - Nova York (Estados Unidos) - Brazilian Artists, na Amel Gallery
1966 - Montevidéu (Uruguai) - Artistas Brasileiros Contemporâneos, no Museo de Arte Moderno de Buenos Aires
1966 - Madri (Espanha) - Artistas da Bahia, no Instituto de Cultura Hispânica
1966 - Lausanne (Suíça) - Salão Internacional de Galerias - Piloto
1966 - Nova York (Estados Unidos) - Brazilian Artists, na Amel Gallery
1966 - Moscou (Rússia) - Pintores Primitivos Brasileiros
1966 - São Paulo SP - 15º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia
1966 - Nova York (Estados Unidos) - The Emergent Decade, no Solomon R. Guggenheim Museum
Exposições Póstumas
1966 - Rio de Janeiro RJ - 4ª Resumo de Arte do JB, no MAM/RJ
1966 - Salvador BA - 1ª Bienal Nacional de Artes Plásticas
1966 - São Paulo SP - 15º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia
1967 - Salvador BA - Exposição Coletiva de Natal, na Panorama Galeria de Arte
1969 - Rio de Janeiro RJ - Via Crucis, no Gabinete de Arte de Botafogo
1976 - São Paulo SP - Individual, na Galeria de Arte Portal
1979 - São Paulo SP - Raimundo de Oliveira: pinturas, na Galeria de Arte Ipanema
1982 - Salvador BA - A Arte Brasileira da Coleção Odorico Tavares, no Museu Carlos Costa Pinto
1984 - São Paulo SP - Coleção Gilberto Chateaubriand: retrato e auto-retrato da arte brasileira, no MAM/SP
1984 - São Paulo SP - Tradição e Ruptura: síntese de arte e cultura brasileiras, na Fundação Bienal
1986 - São Paulo SP - Individual, na Biblioteca Mário de Andrade
1988 - São Paulo SP - Pintura Ingênua Brasileira, no Espaço Quadros e Objetos de Arte
1990 - São Paulo SP - Figurativismo/Abstracionismo: o vermelho na pintura brasileira, na Itaugaleria
1992 - Belém PA - Décima Primeira Arte, na Fundação Romulo Maiorana
1992 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Bonino
1993 - João Pessoa PB - Xilogravura: do cordel à galeria, na Funesc
1993 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Ipanema
1994 - Poços de Caldas MG - Coleção Unibanco: exposição comemorativa dos 70 anos de Unibanco, na Casa da Cultura
1994 - São Paulo SP - Xilogravura: do cordel à galeria, no Metrô
1995 - Rio de Janeiro RJ - Coleção Unibanco: exposição comemorativa dos 70 anos de Unibanco, no MAM/RJ
1996 - Belém PA - 15º Salão Arte Pará, no Museu de Arte do Belém
1996 - São Paulo SP - Ex Libris/Home Page, no Paço das Artes
1997 - Porto Alegre RS - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1997 - São Paulo SP - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1998 - Curitiba PR - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1998 - Rio de Janeiro RJ - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1998 - São Paulo SP - Os Colecionadores - Guita e José Mindlin: matrizes e gravuras, na Galeria de Arte do Sesi
1999 - Salvador BA - 100 Artistas Plásticos da Bahia, no Museu de Arte Sacra
1999 - Salvador BA - 60 Anos de Arte Brasileira, no Espaço Cultural da Caixa Econômica Federal
2000 - São Paulo SP - Investigações. A Gravura Brasileira, no Itaú Cultural
2000 - São Paulo SP - Os Anjos Estão de Volta, na Pinacoteca do Estado
2001 - Brasília DF - Investigações. A Gravura Brasileira, na Itaú Galeria
2001 - Penápolis SP - Investigações. A Gravura Brasileira, na Galeria Itaú Cultural
2001 - São Paulo SP - Coleção Aldo Franco, na Pinacoteca do Estado
2002 - Rio de Janeiro RJ - Arte Brasileira na Coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem, no CCBB
2002 - São Paulo SP - Arte Brasileira na Coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem, no CCBB
2002 - São Paulo SP - Santa Ingenuidade, na Unifieo
Fonte: RAIMUNDO de Oliveira. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: Itaú Cultural. Acesso em: 06 de Jun. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
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O pintor feirense que expôs em Paris e Nova York
“O profeta Raimundo, grande da pintura brasileira, carregado de drama, de solidão e de pecado, é no entanto o mais alegre e terno, o mais puro e numeroso, jamais sozinho pois sua palavra é de solidariedade e sua mensagem é o amor entre os seres humanos, é a alegria fluindo dos pincéis e de seu coração. É o profeta de Feira de Sant’Ana, lá vem montado em seu jumento e vai levar sua carga de amor aos confins do mundo”.
Assim o escritor Jorge Amado descreveu o artista feirense Raimundo Falcão de Oliveira, um dos maiores nomes das artes plásticas que Feira de Santana já produziu. Nascido em 1930, Raimundo possui ampla obra, já exposta em Paris, Nova York, Madri e Moscou, além de outras cidades da Europa, America Latina e Brasil, a exemplo de Rio de Janeiro e São Paulo.
Sua primeira exposição, entretanto, ocorreu em no Colégio Santanópolis, na década de 40, onde estudava, seguindo-se uma outra no hall da Prefeitura Municipal de Feira de Santana, em 1951.
Raimundo teve conexão central com sua mãe, Dona Santa, assídua frequentadora da Igreja Matriz (Catedral de Santana).
Lembra Edivaldo Boaventura, em texto sobre Raimundo de Oliveira: “Habituei-me desde muito cedo, ao tempo em que criança morava na Praça da Matriz a ver Raimundo, sempre de calça e paletó escuros e aparentando mais idade do que realmente tinha, a passar bem devagar conduzindo pelo braço D. Santa. Vinham mãe e filho pelo beco de Santana, atravessavam o largo em cadência lenta e ritmada e entravam na Matriz pelo portão da frente”.
Em Salvador, Raimundo Oliveira chegou a cursar a Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia. Lá conheceu artistas como Mario Cravo Júnior e Jenner Augusto. Daí, para o mundo: morou em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde entrou em contato com artistas de renome nacional.
Juraci Dórea, artista feirense, em texto para o livro “A Via Crucis de Raimundo Oliveira”, descreve a personalidade de Raimundo já em Salvador: “Eu o conheci na pensão de Renato, em Salvador, onde moramos em quartos vizinhos. […] Não me pareceu uma criatura tão estranha como se costumava descrevê-lo aqui em Feira de Santana, embora tivesse aquele hábito (por certo adquirido no Sul) de andar, em plena cidade da Bahia, sempre vestido com paletó e gravata. Já passava dos 30 anos. Calmo no falar. Introspectivo. Entregava-se, na época, a um discreto alcoolismo. Queria saber, às vezes, das pessoas e das coisas de Feira, com as quais perdera o contato”.
A obra de Raimundo Oliveira é muito influenciada por temas cristãos católicos, influência atribuída à sua infância religiosa ao lado da mãe. Diz Juraci Dórea, sobre o momento em que Dona Santa faleceu, em 1954: “Raimundo entrou em pânico, entregou-se ao mais completo desespero, deixou de pintar e chegou mesmo a ser internado para tratamento”.
Para Antonio Celestino, os dramas familiares tiveram influências marcantes na vida de Raimundo de Oliveira: “Profundamente religioso, nascido de família modesta, de mãe devotadamente católica, problemas familiares marcaram-no indelevelmente, como detalhadamente me confessara nas mais estranhas condições e nas mais graves aflições de sua vida. Creio que foi esse clima de drama em que viveu seus verdes anos que originou suas primeiras manifestações artísticas”.
Raimundo tinha aspirações seminaristas, chegando a se matricular em uma instituição que recepcionava vocacionados tardios, mas não seguiu a trilha religiosa – pelo menos a tradicional. Restou-lhe, como disse Juraci Dórea “a sublimação, pela arte, de sua desesperada aventura mística”.
Em 1966, Raimundo de Oliveira foi encontrado morto no Hotel São Bento, em Salvador, após ter cometido suicídio.
Edivaldo Boaventura lembra das circunstâncias: “O prefeito de Feira, Joselito Falcão Amorim, mandou buscar o corpo e lhe deu sepultura. Helder Alencar, secretário do Governo Municipal, fora encarregado do transporte, embalsamento e demais providências. Fernando Santos, que assistiu o enterro, contou-me que o féretro saíra do mesmo lugar da primeira exposição de Raimundo em Feira. No mesmo recinto nobre, no mesmo mês quente de janeiro. Quinze anos depois. Foi a volta definitiva…
Fonte e crédito fotográfico: Feirenses, publicado em 22 de agosto de 2017.
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Raimundo de Oliveira, por Carlos Perktold
Há algumas semanas este articulista viu pela televisão a entrevista de um senhor idoso usando uma camiseta na qual havia recomendação de duvidoso gosto: live fast, die young. Infelizmente não é o único, mas se havia alguém neste país mais autorizado a usar roupa com esse aforismo no século XX chamou-se Raimundo Falcão de Oliveira, baiano de nascimento, artista que deixou acervo de incomparável beleza e com trágica passagem nesta vida. Viveu rápido, morreu jovem e se imortalizou como pintor e artista.
Transcorridos mais de trinta anos após sua morte, a carta com a qual ele se despediu deste mundo em 18 de janeiro de 1966 continua tão emocionante quanto a sua pintura. O texto registra a gratidão dele pelos amigos que o aceitaram, o acolheram e o ampararam durante sua curta vida e que, não suportando as dificuldades emocionais e financeiras e com aparente lucidez, lamentava “que não conseguisse mais agüentar”. A carta é dirigida “a todos os meus amigos”, mas vários são nomeados nela: Mário Cravo, Jorge Amado, Rodolfo e Getrudes Klein, Sarah Campos, Jenner, Genaro, Emanoel e outros, brasileiros como ele. Mas a carta de despedida, sem que ele sequer imaginasse, é endereçada também a seus admiradores do futuro que, não o conhecendo pessoalmente em Feira de Santana, Salvador, Rio ou São Paulo durante os anos 1940 até 1966, hoje reverenciam o brilhante e saudoso artista. Na despedida ele esclarece que o seu último gesto foi motivado “por problemas financeiros, pois é horrível todo mundo pensar que a gente é rico sem ser” [A Via Crucis de Raimundo de Oliveira, Fundação Cultural do Estado da Bahia. Salvador: 1982 p.166]. Não se pode duvidar da palavra literalmente final de pintor sensível que viveu numa época na qual o país valorizava pouco seus artistas, o mercado de arte era incipiente e os colecionadores eram raros. Assim, não foi somente Raimundo a queixar dificuldades financeiras, mas é possível que apenas ele tenha morrido por esse motivo. Em 1966 poucos artistas poderiam se dar ao luxo de viver apenas da venda de seus trabalhos. A maioria dos pintores tinha emprego público, era professor, fazia “bicos” com representação comercial ou retoques em fotografias enquanto aguardavam novos e melhores tempos artísticos ou sujeitava-se a viver com certa penúria. A origem do “problema financeiro” de Raimundo e de artistas em geral é o colecionador neófito visitar os seus ateliês, ver vários quadros armazenados um atrás do outro, multiplicá-los pelo preço de venda e calcular quanto ele tem dentro daquele imóvel, como se o pintor fosse um criador de dinheiro, lastreado nas suas próprias obras. Nessas condições, vê-se o artista como rico. Nada mais falso. É possível que tenha sido dessa riqueza de que ele falava. As vendas de obras de arte não ocorrem com a facilidade que a maioria do grande público imagina. Raríssimo são os artistas que selecionam seus compradores ou têm “lista de espera”. Mas, ainda naquela carta, Raimundo afirma ter “certeza que a minha morte não foi por causa dos meus problemas sexuais”. Ele se referia a certa orientação numa época na qual ela era inaceitável e mal vista. Vivendo hoje, veria que o mundo mudou, muitas coisas para pior, mas que a aceitação de pessoas portadoras do que ele chamou de “problemas” é infinitamente maior que na sua juventude. Por isso, suas angústias talvez fossem menores se ele tivesse suportado as pressões familiares e sociais e aguardado mais para viver menos infeliz no mundo de hoje. Para tentar diminuir sentimentos que lhe incomodavam tanto, levou vida boêmia pelas grandes cidades brasileiras e, em certas ocasiões, ela foi tão devastadora que ele não produziu nada durante meses. Na época, foi a saída objetiva e emocional que o permitiu viver o seu desejo. Mas a sua provinciana Feira de Santana e todos os censores de sua adolescência e juventude nunca o abandonaram. Viveram todos dentro dele como se fossem fantasmas internos a assombrá-lo e lembrando-lhe que ele era baiano, terra na qual certas preferências eram imperdoáveis.
Raimundo Falcão de Oliveira era alto, ouvia mal, prognata, falava com voz gutural alta, tinha nariz adunco e se julgava feio. Como pintor talvez visse que seu rosto não tinha o equilíbrio dos elementos de uma composição com o número de ouro bem calculado. Seus amigos o adoravam pelo seu talento e pelo aparente e sempre elevado nível de humor, prova de sua defesa maníaca frente à depressão que ele preferia dividir com poucos. Na Bahia ou no Rio, usava sempre terno preto, cor rara nos seus quadros, mas metafórico matiz do seu mundo interno. O terno refletia sua formalidade pessoal e com todos. Teve vida curta: trinta e seis anos. Com tão pouca idade, deixou acervo de pintura que começou ainda na adolescência em Feira de Santana. Ali ele iniciou seus primeiros desenhos e estudos. Adulto, passou por Salvador, Rio e fez amigos em São Paulo, construindo trajetória curta e imortal. Em todas as figuras humanas pintadas nos seus quadros há a preocupação do nariz acentuado no modelo, santo ou profeta, projeção do que lhe incomodava em si mesmo, algo semelhante àquilo que ocorreu com Guignard e seus modelos, que eram retratados com o lábio leporino do pintor. É possível que o detalhe crítico dos grandes olhos e o nariz adunco de seus personagens tenham sido projeções inconscientes durante longo tempo e que, tão logo ele percebeu a força deles em cada obra, os tenha valorizado ainda mais a partir de 1960. Desse ano em diante, aqueles detalhes passam a ser signos consagradores de pintura com exuberantes cores, acrescido da encantadora simetria. Na vida adulta perdeu a paleta escura e o corte seco contidos nos retratos de gente humilde de sua cidade e adolescência, paleta de então que era provável reflexo de suas dificuldades de jovem. Na maturidade da vida artística ganhou a incomparável beleza com matizes incompreensíveis para quem era artista deprimido. Seus quadros são demonstrações de vitalidade e exuberância de vida que são o oposto do que ele vivia. As cores complementares predominam, mas sabedor de seu talento, não as segue com rigor em todos os quadros. Como ocorre nas obras de grandes mestres, nenhum detalhe das composições de sua pintura chama a atenção de forma especial. O resultado em qualquer situação é de encantadora beleza. Seus personagens, com freqüência, aparecem de perfil com o olhar contendo humildade reservada aos mansos de espírito. Como ele próprio.
O belo e afetivo texto de seu amigo Antonio Celestino, publicado no livro citado, confidencia que Raimundo relatou-lhe dificuldades emocionais iniciadas na infância de família modesta. Dificuldades infantis, representadas por incompreensões, agressões, desejos reprimidos, ações ou omissões, ausência de amor em casa ou fora dela ficam impregnadas na biografia do infante e pouquíssimas pessoas as superam. É a fase da vida em que somos mais fracos e, por causa disso e pela maldade humana de sempre, é quando certos adultos aproveitam para descarregar seu ódio em seres que, impotentes, os olham incrédulos e perplexos. É também a época na qual inconscientemente procuramos um modelo no qual possamos nos mirar e superar. Seu pai nunca exerceu qualquer fascínio sobre o filho. Talvez ambos estivessem paradoxalmente próximos demais pela mistura de sentimentos para se enxergarem, por isso, seu pai foi ao mesmo tempo tão grande que o filho não conseguia vê-lo e nem ser visto e foi também tão diminuto que parece desaparecer no horizonte da biografia do artista. Ele nunca compreendeu a sensibilidade e nem o talento do de quem habitava sua própria casa. Achava incompreensível e inútil o seu desejo de ir estudar belas-artes em Salvador e nunca aprovou a paixão de Raimundo por Carmem Miranda e menos ainda a sua escolha profissional. Foram essa paixão e essa escolha que, muito provavelmente, deixaram o pai envergonhado perante seus amigos e vizinhos em Feira de Santana. Pena que o velho pai não tenha vivido o suficiente para se orgulhar do filho que teve.
Conhecido ditado inglês nos assegura que “atrás de todo grande homem há uma mulher”. Raramente se pergunta qual mulher, mas, do ponto de vista psicanalítico e na maioria dos casos, ela é, pelo bem ou pelo mal, a mãe. Se se pensa o contrário é porque possivelmente o biografado não relatou e nem deixou registros para assegurar essa asserção. Foi assim com Ismael Nery, cuja mãe o construiu e depois o destruiu, segundo ele próprio declarava. Para compensar a fugidia e provável difícil figura paterna, Raimundo de Oliveira teve a mãe como suave e fundamental presença na sua vida. A diferença entre a mãe de Ismael e aquela do pintor baiano estava na dupla santidade desta como declarou seu amigo Edivaldo Boaventura. O primeiro atributo dela provinha do nome de batismo e o segundo da bondade com todos, em especial com Raimundo.
Mas o que o artista herdou da mãe não foi somente a bondade transformada em humanismo na sua pintura. Dona Santa era católica devota e transferiu sua crença para o filho, que fez das histórias do Velho Testamento a temática principal da obra que o consagrou pelo Brasil afora. Tal como Ismael Nery, deixou poucos trabalhos em comparação de outros contemporâneos que viveram mais e, por isso, produziram mais. Mas tudo que fez, foi santificado pela forma, pela paleta colorida, pelo ritmo, pelo equilíbrio e pela preocupação com a simetria da composição. A simetria é essencialmente barroca e cada quadro seu pode ser colocado como se fosse um altar no qual o espectador reverencia a paixão pelo conteúdo sacro, a paleta colorida, o amor pela composição, vendo e ao mesmo tempo rezando o que ele escreveu com tela, pincéis, cores e paixão: belas estórias de amor. Antonio Celestino declara que no seu ateliê havia um menorá, cuja presença ele nunca entendeu. Pintando sobretudo histórias do Velho Testamento, o candelabro provavelmente o lembrava a origem de todos que ele materializava nas telas. Sua pintura não é naïf, não é impressionista e nem expressionista. Nem de longe pretende ser cubista ou surrealista. Ela é mais fácil de definir pelo que não é, do que pelo que é. Ela é Raimundo de Oliveira, apenas isso, singela como o nome que assinava, omitindo o Falcão, seja por economia ou talvez porque reconhecia não ser necessário esclarecer ao espectador o que ele já era na arte. A um olhar de soslaio sobre uma parede acompanhada de quadros de outros colegas, sabemos que sua obra está lá, fazendo a mesma pergunta pessoal do artista, nos mirando e interrogando se foi visto, aceito e aprovado. E a resposta, mesmo daqueles espectadores que desconhecem a sua biografia e o reflexo dela em cada quadro, é de alguém que sente que está defronte de artista pictórico e literário: um narrador que conhece seu texto com as palavras nos lugares exatos, sem repetir um detalhe, literalmente pintando um longo texto bíblico com as matizes que somente as belas histórias contêm.
Fonte: Portal Artes, por Carlos Perktold, consultado pela última vez em 20 de maio de 2020.
Raimundo Falcão de Oliveira (Feira de Santana, BA, 24 de abril de 1930 — Salvador, BA, 18 de janeiro de 1966) foi um gravador, pintor e desenhista brasileiro. Construiu sua obra em grande parte inspirada no universo religioso cristão e com ela obteve projeção internacional.
Biografia - Itaú Cultural
Inicia-se nas artes por intermédio da mãe, pintora de temática religiosa, que o encaminha para o desenho e a pintura, como também o orienta na religião. Incentivado pela professora de desenho, expõe pela primeira vez no Ginásio Santanópolis, onde retrata os professores da escola. Após a conclusão do curso ginasial, em 1947, segue para Salvador, onde faz cursos regulares de pintura com Maria Célia Amado, na Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia, e conhece Mario Cravo Júnior e Jenner Augusto . Realiza a primeira individual no hall da Prefeitura de Feira de Santana, em 1951, momento em que se liga a um grupo de artistas independentes, responsável pelos Cadernos da Bahia. Reside em São Paulo de 1958 a 1964, depois volta a morar na Bahia. Vive no Rio de Janeiro entre 1965 e 1966. No ano de seu suicídio, 1966, é editada a Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira. Xilogravuras, pela Galeria Bonino e Petite Galerie, organizada por Julio Pacello, com prefácio de Jorge Amado. Em 1982, é publicado o segundo álbum do artista, Via Crucis, pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, e é inaugurada a Galeria Raimundo de Oliveira, em Salvador.
Análise
A obra de Raimundo de Oliveira - desenho, guache, óleo e gravura - se desenrola no universo religioso, com santos, imagens e cenas bíblicas representados de diversas formas. Os críticos tendem a distinguir duas fases em sua produção em função das variações observadas no tratamento dado ao tema. Nas décadas de 1950 e 1960 predominam as composições com cores sombrias e caráter expressionista - as figuras marcadas por traços dolorosos e dramáticos, definidas com nanquim e contornos negros, como Cabeça de Cristo, 1957, Crucificado, s.d., e Moisés, 1960 - e algumas leituras mostram afinidades com a pintura de Georges Rouault. Em outro momento, as telas aproximam-se dos pequenos enredos, elaborados com o auxílio de figuras apequenadas (mais humorísticas que trágicas, pelas deformações e desproporções), que se repetem por causa das situações apresentadas. Estruturadas geometricamente, por um equilíbrio de planos horizontais e verticais, as novas telas possuem dinamismo particular, obtido pelos espaços construídos com base em círculos. A energia das cores vibrantes e o dinamismo da tela são as marcas salientes dessa fase, visto em O Sonho de Jacob, s.d. Além das influências simbolistas e da arte naif de Henri Rousseau, são perceptíveis, nessa fase, ecos da arte popular nordestina brasileira. O universo religioso é lido da ótica das festas e da religiosidade popular, misturando-se frequentemente ao mundo profano - procissões, bumba-meu-boi, altares domésticos etc. Os enredos e modos de figuração, por sua vez, remetem à arte dos gravadores e ceramistas do Nordeste. Elementos retirados da paisagem nacional, como árvores e animais tropicais, são outra forma de articular o erudito e o popular, o universal e o nacional - Jesus no Horto das Oliveiras, 1962, e Chegada em Jerusalém, 1964.
Críticas
"E então todos se deram conta que o burel não era um burel, era uma velha capa contra a chuva, e o cajado não era cajado, eram pincéis de pintura. E havia uma tela e o cujo sujeito pintava. Alguns quiseram apedrejá-lo, considerando-o um vigarista vindo de fora, mas outros reconheceram o peregrino e a ele se dirigiram, tratando-o familiarmente de Mundinho. Pois era Raimundo de Oliveira, filho da terra, desde menino um vago, sem jeito para o trabalho, a não ser para riscar papel, se isso é trabalho que se considere. Tinha ido embora fazia tempo, dele não havia notícia. Apareceu agora de repente e em torno de sua grande cabeça pairava uma atmosfera mágica, como se o cercasse a luz da madrugada. (...)
Esse pintor, esse grande pintor da Bíblia e da Bahia, esse que passou a limpo a violência do Velho Testamento e o tornou de maciez de veludo, esse que encheu de flores a áspera tragédia antiga, esse moço de voz tímida e segura certeza, esse Raimundo de Oliveira é um profeta com alma de Francisco de Assis. Só a Bahia o podia produzir, nos caminhos da cidade onde nasce o sertão; só a Bahia o podia alimentar e o oferecer às galerias do sul, à glória e à fama, pois sua Bíblia tem uma respiração de candomblé (não fosse ele filho de mãe Senhora de Ôpo Afonjá e não houvesse aprendido a cozinhar com Olga do Aleketu). Mestre pintor, não sei de outro que tenha crescido tanto em sua arte, mantendo-se tão fiel aos sonhos de sua meninice, às esperanças de sua Mãe e ao seu tesouro escondido. (...)
Raimundo de Oliveira (...) não ficou na Bahia. Era um profeta e tinha de levar sua profecia mundo adentro. Tinha de correr os caminhos e demorar em terras distantes. Anda por aqui e por ali, mas é na Bahia que ele vem se alimentar de terra, de animais, de Deus e de amor, é na Bahia que ele vem, humilde e vitorioso, reapreender o mistério do homem e sua necessidade de paz e de fartura".
Jorge Amado - 1966 (In: OLIVEIRA, Raimundo de. Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira. Xilogravuras. Prefácio Jorge Amado; organização Julio A. Pacello. São Paulo: Lia Cesar, 1966.)
"Este livro (de xilogravuras) nasceu há mais de dois anos, quando Raimundo de Oliveira me procurou para que eu o ajudasse a distribuir convites para a sua exposição, na Galeria Astréia. Saímos juntos, nessa simples missão, e foi no caminho que nasceu a idéia de fazer uma pequena Bíblia. Daí em diante, durante muitos meses, trabalhamos em estreita colaboração. Levamos bastante tempo escolhendo as cenas bíblicas que nos pareciam mais representativas. Essa escolha levava em consideração tanto o aspecto bíblico como o artístico. Além disso, teve que sujeitar-se às limitações impostas pela técnica da xilogravura".
Julio A. Pacello (In: OLIVEIRA, Raimundo de. Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira. Xilogravuras. Prefácio Jorge Amado; organização Julio A. Pacello. São Paulo: Lia Cesar, 1966.)
"Apesar da ingênua composição plástica de suas obras e de sua franca rebeldia em relação à disciplina escolar (...) jamais foi, como equivocadamente o apresentaram (...), um primitivo, um 'naif' (...) estava preocupado com a problemática estilística que lhe provocavam os temas e as narrativas religiosos, interpretando-os com cenas de extremo lirismo".
Clarival do Prado Valadares (PONTUAL, Roberto. Dicionário das artes plásticas no Brasil. Apresentação de Antônio Houaiss. Textos de Mário Barata et al. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.)
Exposições Individuais
1951 - Feira de Santana BA - Primeira individual, na Prefeitura Municipal
1951 - Salvador BA - Individual, na Galeria Oxumaré
1953 - Feira de Santana BA - Individual, na Prefeitura Municipal
1953 - Salvador BA - Individual, na Galeria Oxumaré
1956 - Salvador BA - O Drama do Calvário, no Belvedere da Sé
1957 - Buenos Aires (Argentina) - Individual, na Plástica Galeria de Arte
1958 - Salvador BA - Individual, na Galeria Oxumaré
1959 - Santos SP - Individual, no Hall do Edifício Indaiá
1959 - São Paulo SP - Individual, na Galeria Ambiente
1960 - São Paulo SP - Individual, no Teatro Novos Comediantes
1960 - São Paulo SP - Individual, no Teatro Oficina
1961 - Campinas SP - Individual, na Galeria Aremar
1961 - São Paulo SP- Individual, na Galeria Astréia
1962 - São Paulo SP - Individual, no Clubinho
1962 - São Paulo SP- Individual, na Galeria Astréia
1963 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Bonino
1964 - Buenos Aires (Argentina) - Individual, na Galeria Bonino
1964 - São Paulo SP - Individual, na Galeria Astréia
1965 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Bonino
1966 - Rio de Janeiro RJ - Individual, no MAM/RJ
Exposições Coletivas
1951 - Salvador BA - 1º Salão Universitário Baiano de Belas Artes
1952 - Feira de Santana BA - 1ª Exposição de Arte Moderna de Feira de Santana, no Banco Econômico da Bahia
1952 - Rio de Janeiro RJ - 1º Salão Nacional de Arte Moderna, no MAM/RJ
1952 - Salvador BA - 2º Salão Universitário Baiano de Belas Artes
1953 - Salvador BA - Poty, Carlos Bastos e Raimundo Oliveira, na Galeria Oxumaré
1953 - Salvador BA - 3º Salão Baiano de Belas Artes
1954 - Salvador BA - 4º Salão Baiano de Belas Artes, no Hotel Bahia
1955 - Salvador BA - 5º Salão Baiano de Belas Artes, na Galeria Belvedere da Sé - menção honrosa em desenho
1956 - Rio de Janeiro RJ - 5º Salão Nacional de Arte Moderna
1956 - Salvador BA - 6ª Salão Baiano de Belas Artes, na Galeria Oxumaré - menção honrosa em pintura
1956 - Salvador BA - Artistas Modernos da Bahia, na Galeria Oxumaré
1956 - Salvador BA - Exposição de Pintura Moderna, no Palácio Rio Branco
1957 - Rio de Janeiro RJ - 6º Salão Nacional de Arte Moderna
1957 - São Paulo SP - Artistas da Bahia, no MAM/SP
1959 - São Paulo SP - 47 Artistas, na Galeria de Arte das Folhas
1960 - São Paulo SP - 9º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia - medalha de bronze
1961 - Porto Alegre RS - Círculo dos Amigos da Arte, no Margs
1961 - São Paulo SP - Arte Sacra Contemporânea, na Sede do Movimento Graal
1961 - São Paulo SP - 10º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia - prêmio aquisição
1962 - São Paulo SP - 11º Salão Paulista de Arte Moderna - pequena medalha de prata
1963 - São Paulo SP - 12º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia
1963 - São Paulo SP - 7ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal
1964 - São Paulo SP - 13º Salão Paulista de Arte Moderna
1965 - Caracas (Venezuela) - Avaliação da Pintura Latino-Americana
1965 - Paris (França) - Salon Comparaisons, no Musée d'Art Moderne de La Ville de Paris
1965 - Paris (França) - Oito Pintores Ingênuos Brasileiros, na Galerie Jacques Massol
1965 - Rio de Janeiro RJ - 33 Artistas em Homenagem à Cidade do Rio de Janeiro - menção honrosa
1965 - São Paulo SP - 8ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal
1966 - Buenos Aires (Argentina) - Artistas Brasileiros Contemporâneos, no Museo de Arte Moderno
1966 - Lausanne (Suíça) - Artistas e Descobridores de Nosso Tempo
1966 - Nova York (Estados Unidos) - Brazilian Artists, na Amel Gallery
1966 - Montevidéu (Uruguai) - Artistas Brasileiros Contemporâneos, no Museo de Arte Moderno de Buenos Aires
1966 - Madri (Espanha) - Artistas da Bahia, no Instituto de Cultura Hispânica
1966 - Lausanne (Suíça) - Salão Internacional de Galerias - Piloto
1966 - Nova York (Estados Unidos) - Brazilian Artists, na Amel Gallery
1966 - Moscou (Rússia) - Pintores Primitivos Brasileiros
1966 - São Paulo SP - 15º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia
1966 - Nova York (Estados Unidos) - The Emergent Decade, no Solomon R. Guggenheim Museum
Exposições Póstumas
1966 - Rio de Janeiro RJ - 4ª Resumo de Arte do JB, no MAM/RJ
1966 - Salvador BA - 1ª Bienal Nacional de Artes Plásticas
1966 - São Paulo SP - 15º Salão Paulista de Arte Moderna, na Galeria Prestes Maia
1967 - Salvador BA - Exposição Coletiva de Natal, na Panorama Galeria de Arte
1969 - Rio de Janeiro RJ - Via Crucis, no Gabinete de Arte de Botafogo
1976 - São Paulo SP - Individual, na Galeria de Arte Portal
1979 - São Paulo SP - Raimundo de Oliveira: pinturas, na Galeria de Arte Ipanema
1982 - Salvador BA - A Arte Brasileira da Coleção Odorico Tavares, no Museu Carlos Costa Pinto
1984 - São Paulo SP - Coleção Gilberto Chateaubriand: retrato e auto-retrato da arte brasileira, no MAM/SP
1984 - São Paulo SP - Tradição e Ruptura: síntese de arte e cultura brasileiras, na Fundação Bienal
1986 - São Paulo SP - Individual, na Biblioteca Mário de Andrade
1988 - São Paulo SP - Pintura Ingênua Brasileira, no Espaço Quadros e Objetos de Arte
1990 - São Paulo SP - Figurativismo/Abstracionismo: o vermelho na pintura brasileira, na Itaugaleria
1992 - Belém PA - Décima Primeira Arte, na Fundação Romulo Maiorana
1992 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Bonino
1993 - João Pessoa PB - Xilogravura: do cordel à galeria, na Funesc
1993 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Ipanema
1994 - Poços de Caldas MG - Coleção Unibanco: exposição comemorativa dos 70 anos de Unibanco, na Casa da Cultura
1994 - São Paulo SP - Xilogravura: do cordel à galeria, no Metrô
1995 - Rio de Janeiro RJ - Coleção Unibanco: exposição comemorativa dos 70 anos de Unibanco, no MAM/RJ
1996 - Belém PA - 15º Salão Arte Pará, no Museu de Arte do Belém
1996 - São Paulo SP - Ex Libris/Home Page, no Paço das Artes
1997 - Porto Alegre RS - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1997 - São Paulo SP - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1998 - Curitiba PR - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1998 - Rio de Janeiro RJ - Exposição do Acervo da Caixa, no Conjunto Cultural da Caixa
1998 - São Paulo SP - Os Colecionadores - Guita e José Mindlin: matrizes e gravuras, na Galeria de Arte do Sesi
1999 - Salvador BA - 100 Artistas Plásticos da Bahia, no Museu de Arte Sacra
1999 - Salvador BA - 60 Anos de Arte Brasileira, no Espaço Cultural da Caixa Econômica Federal
2000 - São Paulo SP - Investigações. A Gravura Brasileira, no Itaú Cultural
2000 - São Paulo SP - Os Anjos Estão de Volta, na Pinacoteca do Estado
2001 - Brasília DF - Investigações. A Gravura Brasileira, na Itaú Galeria
2001 - Penápolis SP - Investigações. A Gravura Brasileira, na Galeria Itaú Cultural
2001 - São Paulo SP - Coleção Aldo Franco, na Pinacoteca do Estado
2002 - Rio de Janeiro RJ - Arte Brasileira na Coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem, no CCBB
2002 - São Paulo SP - Arte Brasileira na Coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem, no CCBB
2002 - São Paulo SP - Santa Ingenuidade, na Unifieo
Fonte: RAIMUNDO de Oliveira. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: Itaú Cultural. Acesso em: 06 de Jun. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
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O pintor feirense que expôs em Paris e Nova York
“O profeta Raimundo, grande da pintura brasileira, carregado de drama, de solidão e de pecado, é no entanto o mais alegre e terno, o mais puro e numeroso, jamais sozinho pois sua palavra é de solidariedade e sua mensagem é o amor entre os seres humanos, é a alegria fluindo dos pincéis e de seu coração. É o profeta de Feira de Sant’Ana, lá vem montado em seu jumento e vai levar sua carga de amor aos confins do mundo”.
Assim o escritor Jorge Amado descreveu o artista feirense Raimundo Falcão de Oliveira, um dos maiores nomes das artes plásticas que Feira de Santana já produziu. Nascido em 1930, Raimundo possui ampla obra, já exposta em Paris, Nova York, Madri e Moscou, além de outras cidades da Europa, America Latina e Brasil, a exemplo de Rio de Janeiro e São Paulo.
Sua primeira exposição, entretanto, ocorreu em no Colégio Santanópolis, na década de 40, onde estudava, seguindo-se uma outra no hall da Prefeitura Municipal de Feira de Santana, em 1951.
Raimundo teve conexão central com sua mãe, Dona Santa, assídua frequentadora da Igreja Matriz (Catedral de Santana).
Lembra Edivaldo Boaventura, em texto sobre Raimundo de Oliveira: “Habituei-me desde muito cedo, ao tempo em que criança morava na Praça da Matriz a ver Raimundo, sempre de calça e paletó escuros e aparentando mais idade do que realmente tinha, a passar bem devagar conduzindo pelo braço D. Santa. Vinham mãe e filho pelo beco de Santana, atravessavam o largo em cadência lenta e ritmada e entravam na Matriz pelo portão da frente”.
Em Salvador, Raimundo Oliveira chegou a cursar a Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia. Lá conheceu artistas como Mario Cravo Júnior e Jenner Augusto. Daí, para o mundo: morou em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde entrou em contato com artistas de renome nacional.
Juraci Dórea, artista feirense, em texto para o livro “A Via Crucis de Raimundo Oliveira”, descreve a personalidade de Raimundo já em Salvador: “Eu o conheci na pensão de Renato, em Salvador, onde moramos em quartos vizinhos. […] Não me pareceu uma criatura tão estranha como se costumava descrevê-lo aqui em Feira de Santana, embora tivesse aquele hábito (por certo adquirido no Sul) de andar, em plena cidade da Bahia, sempre vestido com paletó e gravata. Já passava dos 30 anos. Calmo no falar. Introspectivo. Entregava-se, na época, a um discreto alcoolismo. Queria saber, às vezes, das pessoas e das coisas de Feira, com as quais perdera o contato”.
A obra de Raimundo Oliveira é muito influenciada por temas cristãos católicos, influência atribuída à sua infância religiosa ao lado da mãe. Diz Juraci Dórea, sobre o momento em que Dona Santa faleceu, em 1954: “Raimundo entrou em pânico, entregou-se ao mais completo desespero, deixou de pintar e chegou mesmo a ser internado para tratamento”.
Para Antonio Celestino, os dramas familiares tiveram influências marcantes na vida de Raimundo de Oliveira: “Profundamente religioso, nascido de família modesta, de mãe devotadamente católica, problemas familiares marcaram-no indelevelmente, como detalhadamente me confessara nas mais estranhas condições e nas mais graves aflições de sua vida. Creio que foi esse clima de drama em que viveu seus verdes anos que originou suas primeiras manifestações artísticas”.
Raimundo tinha aspirações seminaristas, chegando a se matricular em uma instituição que recepcionava vocacionados tardios, mas não seguiu a trilha religiosa – pelo menos a tradicional. Restou-lhe, como disse Juraci Dórea “a sublimação, pela arte, de sua desesperada aventura mística”.
Em 1966, Raimundo de Oliveira foi encontrado morto no Hotel São Bento, em Salvador, após ter cometido suicídio.
Edivaldo Boaventura lembra das circunstâncias: “O prefeito de Feira, Joselito Falcão Amorim, mandou buscar o corpo e lhe deu sepultura. Helder Alencar, secretário do Governo Municipal, fora encarregado do transporte, embalsamento e demais providências. Fernando Santos, que assistiu o enterro, contou-me que o féretro saíra do mesmo lugar da primeira exposição de Raimundo em Feira. No mesmo recinto nobre, no mesmo mês quente de janeiro. Quinze anos depois. Foi a volta definitiva…
Fonte e crédito fotográfico: Feirenses, publicado em 22 de agosto de 2017.
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Raimundo de Oliveira, por Carlos Perktold
Há algumas semanas este articulista viu pela televisão a entrevista de um senhor idoso usando uma camiseta na qual havia recomendação de duvidoso gosto: live fast, die young. Infelizmente não é o único, mas se havia alguém neste país mais autorizado a usar roupa com esse aforismo no século XX chamou-se Raimundo Falcão de Oliveira, baiano de nascimento, artista que deixou acervo de incomparável beleza e com trágica passagem nesta vida. Viveu rápido, morreu jovem e se imortalizou como pintor e artista.
Transcorridos mais de trinta anos após sua morte, a carta com a qual ele se despediu deste mundo em 18 de janeiro de 1966 continua tão emocionante quanto a sua pintura. O texto registra a gratidão dele pelos amigos que o aceitaram, o acolheram e o ampararam durante sua curta vida e que, não suportando as dificuldades emocionais e financeiras e com aparente lucidez, lamentava “que não conseguisse mais agüentar”. A carta é dirigida “a todos os meus amigos”, mas vários são nomeados nela: Mário Cravo, Jorge Amado, Rodolfo e Getrudes Klein, Sarah Campos, Jenner, Genaro, Emanoel e outros, brasileiros como ele. Mas a carta de despedida, sem que ele sequer imaginasse, é endereçada também a seus admiradores do futuro que, não o conhecendo pessoalmente em Feira de Santana, Salvador, Rio ou São Paulo durante os anos 1940 até 1966, hoje reverenciam o brilhante e saudoso artista. Na despedida ele esclarece que o seu último gesto foi motivado “por problemas financeiros, pois é horrível todo mundo pensar que a gente é rico sem ser” [A Via Crucis de Raimundo de Oliveira, Fundação Cultural do Estado da Bahia. Salvador: 1982 p.166]. Não se pode duvidar da palavra literalmente final de pintor sensível que viveu numa época na qual o país valorizava pouco seus artistas, o mercado de arte era incipiente e os colecionadores eram raros. Assim, não foi somente Raimundo a queixar dificuldades financeiras, mas é possível que apenas ele tenha morrido por esse motivo. Em 1966 poucos artistas poderiam se dar ao luxo de viver apenas da venda de seus trabalhos. A maioria dos pintores tinha emprego público, era professor, fazia “bicos” com representação comercial ou retoques em fotografias enquanto aguardavam novos e melhores tempos artísticos ou sujeitava-se a viver com certa penúria. A origem do “problema financeiro” de Raimundo e de artistas em geral é o colecionador neófito visitar os seus ateliês, ver vários quadros armazenados um atrás do outro, multiplicá-los pelo preço de venda e calcular quanto ele tem dentro daquele imóvel, como se o pintor fosse um criador de dinheiro, lastreado nas suas próprias obras. Nessas condições, vê-se o artista como rico. Nada mais falso. É possível que tenha sido dessa riqueza de que ele falava. As vendas de obras de arte não ocorrem com a facilidade que a maioria do grande público imagina. Raríssimo são os artistas que selecionam seus compradores ou têm “lista de espera”. Mas, ainda naquela carta, Raimundo afirma ter “certeza que a minha morte não foi por causa dos meus problemas sexuais”. Ele se referia a certa orientação numa época na qual ela era inaceitável e mal vista. Vivendo hoje, veria que o mundo mudou, muitas coisas para pior, mas que a aceitação de pessoas portadoras do que ele chamou de “problemas” é infinitamente maior que na sua juventude. Por isso, suas angústias talvez fossem menores se ele tivesse suportado as pressões familiares e sociais e aguardado mais para viver menos infeliz no mundo de hoje. Para tentar diminuir sentimentos que lhe incomodavam tanto, levou vida boêmia pelas grandes cidades brasileiras e, em certas ocasiões, ela foi tão devastadora que ele não produziu nada durante meses. Na época, foi a saída objetiva e emocional que o permitiu viver o seu desejo. Mas a sua provinciana Feira de Santana e todos os censores de sua adolescência e juventude nunca o abandonaram. Viveram todos dentro dele como se fossem fantasmas internos a assombrá-lo e lembrando-lhe que ele era baiano, terra na qual certas preferências eram imperdoáveis.
Raimundo Falcão de Oliveira era alto, ouvia mal, prognata, falava com voz gutural alta, tinha nariz adunco e se julgava feio. Como pintor talvez visse que seu rosto não tinha o equilíbrio dos elementos de uma composição com o número de ouro bem calculado. Seus amigos o adoravam pelo seu talento e pelo aparente e sempre elevado nível de humor, prova de sua defesa maníaca frente à depressão que ele preferia dividir com poucos. Na Bahia ou no Rio, usava sempre terno preto, cor rara nos seus quadros, mas metafórico matiz do seu mundo interno. O terno refletia sua formalidade pessoal e com todos. Teve vida curta: trinta e seis anos. Com tão pouca idade, deixou acervo de pintura que começou ainda na adolescência em Feira de Santana. Ali ele iniciou seus primeiros desenhos e estudos. Adulto, passou por Salvador, Rio e fez amigos em São Paulo, construindo trajetória curta e imortal. Em todas as figuras humanas pintadas nos seus quadros há a preocupação do nariz acentuado no modelo, santo ou profeta, projeção do que lhe incomodava em si mesmo, algo semelhante àquilo que ocorreu com Guignard e seus modelos, que eram retratados com o lábio leporino do pintor. É possível que o detalhe crítico dos grandes olhos e o nariz adunco de seus personagens tenham sido projeções inconscientes durante longo tempo e que, tão logo ele percebeu a força deles em cada obra, os tenha valorizado ainda mais a partir de 1960. Desse ano em diante, aqueles detalhes passam a ser signos consagradores de pintura com exuberantes cores, acrescido da encantadora simetria. Na vida adulta perdeu a paleta escura e o corte seco contidos nos retratos de gente humilde de sua cidade e adolescência, paleta de então que era provável reflexo de suas dificuldades de jovem. Na maturidade da vida artística ganhou a incomparável beleza com matizes incompreensíveis para quem era artista deprimido. Seus quadros são demonstrações de vitalidade e exuberância de vida que são o oposto do que ele vivia. As cores complementares predominam, mas sabedor de seu talento, não as segue com rigor em todos os quadros. Como ocorre nas obras de grandes mestres, nenhum detalhe das composições de sua pintura chama a atenção de forma especial. O resultado em qualquer situação é de encantadora beleza. Seus personagens, com freqüência, aparecem de perfil com o olhar contendo humildade reservada aos mansos de espírito. Como ele próprio.
O belo e afetivo texto de seu amigo Antonio Celestino, publicado no livro citado, confidencia que Raimundo relatou-lhe dificuldades emocionais iniciadas na infância de família modesta. Dificuldades infantis, representadas por incompreensões, agressões, desejos reprimidos, ações ou omissões, ausência de amor em casa ou fora dela ficam impregnadas na biografia do infante e pouquíssimas pessoas as superam. É a fase da vida em que somos mais fracos e, por causa disso e pela maldade humana de sempre, é quando certos adultos aproveitam para descarregar seu ódio em seres que, impotentes, os olham incrédulos e perplexos. É também a época na qual inconscientemente procuramos um modelo no qual possamos nos mirar e superar. Seu pai nunca exerceu qualquer fascínio sobre o filho. Talvez ambos estivessem paradoxalmente próximos demais pela mistura de sentimentos para se enxergarem, por isso, seu pai foi ao mesmo tempo tão grande que o filho não conseguia vê-lo e nem ser visto e foi também tão diminuto que parece desaparecer no horizonte da biografia do artista. Ele nunca compreendeu a sensibilidade e nem o talento do de quem habitava sua própria casa. Achava incompreensível e inútil o seu desejo de ir estudar belas-artes em Salvador e nunca aprovou a paixão de Raimundo por Carmem Miranda e menos ainda a sua escolha profissional. Foram essa paixão e essa escolha que, muito provavelmente, deixaram o pai envergonhado perante seus amigos e vizinhos em Feira de Santana. Pena que o velho pai não tenha vivido o suficiente para se orgulhar do filho que teve.
Conhecido ditado inglês nos assegura que “atrás de todo grande homem há uma mulher”. Raramente se pergunta qual mulher, mas, do ponto de vista psicanalítico e na maioria dos casos, ela é, pelo bem ou pelo mal, a mãe. Se se pensa o contrário é porque possivelmente o biografado não relatou e nem deixou registros para assegurar essa asserção. Foi assim com Ismael Nery, cuja mãe o construiu e depois o destruiu, segundo ele próprio declarava. Para compensar a fugidia e provável difícil figura paterna, Raimundo de Oliveira teve a mãe como suave e fundamental presença na sua vida. A diferença entre a mãe de Ismael e aquela do pintor baiano estava na dupla santidade desta como declarou seu amigo Edivaldo Boaventura. O primeiro atributo dela provinha do nome de batismo e o segundo da bondade com todos, em especial com Raimundo.
Mas o que o artista herdou da mãe não foi somente a bondade transformada em humanismo na sua pintura. Dona Santa era católica devota e transferiu sua crença para o filho, que fez das histórias do Velho Testamento a temática principal da obra que o consagrou pelo Brasil afora. Tal como Ismael Nery, deixou poucos trabalhos em comparação de outros contemporâneos que viveram mais e, por isso, produziram mais. Mas tudo que fez, foi santificado pela forma, pela paleta colorida, pelo ritmo, pelo equilíbrio e pela preocupação com a simetria da composição. A simetria é essencialmente barroca e cada quadro seu pode ser colocado como se fosse um altar no qual o espectador reverencia a paixão pelo conteúdo sacro, a paleta colorida, o amor pela composição, vendo e ao mesmo tempo rezando o que ele escreveu com tela, pincéis, cores e paixão: belas estórias de amor. Antonio Celestino declara que no seu ateliê havia um menorá, cuja presença ele nunca entendeu. Pintando sobretudo histórias do Velho Testamento, o candelabro provavelmente o lembrava a origem de todos que ele materializava nas telas. Sua pintura não é naïf, não é impressionista e nem expressionista. Nem de longe pretende ser cubista ou surrealista. Ela é mais fácil de definir pelo que não é, do que pelo que é. Ela é Raimundo de Oliveira, apenas isso, singela como o nome que assinava, omitindo o Falcão, seja por economia ou talvez porque reconhecia não ser necessário esclarecer ao espectador o que ele já era na arte. A um olhar de soslaio sobre uma parede acompanhada de quadros de outros colegas, sabemos que sua obra está lá, fazendo a mesma pergunta pessoal do artista, nos mirando e interrogando se foi visto, aceito e aprovado. E a resposta, mesmo daqueles espectadores que desconhecem a sua biografia e o reflexo dela em cada quadro, é de alguém que sente que está defronte de artista pictórico e literário: um narrador que conhece seu texto com as palavras nos lugares exatos, sem repetir um detalhe, literalmente pintando um longo texto bíblico com as matizes que somente as belas histórias contêm.
Fonte: Portal Artes, por Carlos Perktold, consultado pela última vez em 20 de maio de 2020.