Galdino Guttmann Bicho (23 de novembro de 1888, Petrópolis, Brasil — 9 de julho de 1955, Rio de Janeiro, Brasil), mais conhecido como Guttmann Bicho, foi um pintor, ceramista e professor brasileiro. Formou-se no Liceu de Artes e Ofícios e na Escola Nacional de Belas Artes, onde teve aulas com mestres como Zeferino da Costa, Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti. Influenciado pelo impressionismo e pelo divisionismo, destacou-se como retratista e paisagista, com obras que exploravam a luz, o mar e a natureza. Ganhou o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro em 1921, estudando em Paris e Lisboa. Foi professor da Escola Técnica Nacional e contribuiu para o ensino de cerâmica no Brasil. Sua obra transitou entre a tradição acadêmica e a modernidade. Atualmente, sua arte é preservada em museus e coleções públicas e particulares.
Galdino Guttmann Bicho | Arremate Arte
Galdino Guttmann Bicho nasceu em 23 de novembro de 1888 em Petrópolis e cresceu no Nordeste, entre Penedo e Aracaju, onde se formou um olhar sensível à luz e ao mar. Mudou-se para o Rio de Janeiro, formou-se no Liceu de Artes e Ofícios e estudou na Escola Nacional de Belas Artes com mestres como Zeferino da Costa, Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti.
Trabalhou como assistente do retratista francês August Petit, aprendendo técnicas refinadas de pintura.Nas exposições da ENBA, conquistou prêmios importantes: menções honrosas em 1906 e 1907, pequena medalha de prata em 1912, e em 1921 ganhou o prestigioso Prêmio de Viagem ao Estrangeiro com o painel pontilhista Panneau décoratif.
Estudou na Europa, passou uma temporada em Paris e Lisboa, e voltou ao Brasil em 1924, onde alcançou medalha de ouro no Salão de 1925. Sua obra é rica e variada: destacou-se como retratista, pintor de naturezas-mortas, paisagista com influência impressionista, especialmente com uso de divisionismo (pintura pontilhista). Também se dedicou à cerâmica, criando e ministrando curso na Escola Técnica Nacional do Rio em 1947.
Morou por muitos anos na Ilha do Governador e retratou suas paisagens. Era considerado tecnicamente habilidoso, com uma postura artística ambivalente: moderno e tradicional ao mesmo tempo. Fez retratos de intelectuais como Farias Brito, ilustrações históricas e obras com influências da arte japonesa.
Faleceu no Rio de Janeiro em 9 de julho de 1955.
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Guttmann Bicho | Wikipédia
Galdino Guttmann Bicho (Petrópolis, 23 de novembro de 1888 — Rio de Janeiro, 9 de julho de 1955) foi um pintor brasileiro.
Vida e obra
Guttmann Bicho, nascido em Petrópolis, era filho de pai português e mãe descendente de colonos alemães que imigraram e fixaram residência nesta cidade no século XIX.
Passou a infância em Sergipe, nas cidades de Penedo e Aracaju. Mais tarde veio a residir no Rio de Janeiro, onde iniciou-se artisticamente no Liceu de Artes e Ofícios. Durante vários anos, no início de sua carreira, Guttmann Bicho trabalhou como assistente do retratista francês radicado no Brasil August Petit, com o qual adquiriu uma sólida formação profissional.
Frequentou como aluno livre a Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno de, entre outros, Zeferino da Costa, Belmiro de Almeida, Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti. Nas Exposições Gerais, Guttmann Bicho obteve menção honrosa (1906), pequena medalha de prata (1912) e o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro (1921, com o quadro Panneau decorativo). Na Europa, fixou-se em Paris, mas também passou uma temporada em Lisboa, onde realizou uma exposição particular que obteve excelente repercussão.
De volta ao Brasil em 1924, conheceu um período de relativa consagração, conquistando na Exposição Geral de 1925 a medalha de ouro. Continuaria participando do certame, então com o nome de Salão Nacional de Belas Artes, ainda em 1954, quando recebeu o Prêmio de Viagem pelo Brasil. Embarcou então para o Maranhão, estado que lhe forneceria o tema para suas derradeiras paisagens.
Retratista admirável, foi também autor de naturezas-mortas e numerosas pinturas de paisagem. Nestas últimas, utilizou frequentemente o divisionismo, uma técnica de pintura pontilhista, pela qual Guttmann Bicho é hoje em dia presumivelmente mais lembrado. Foi também, influenciado pelo Impressionismo, e fez uso das pesquisas de luz e sombra deste movimento artístico.
Na Escola Técnica Nacional do Rio de Janeiro, em 1947, passou a ensinar técnicas artísticas em cerâmica. Destacou-se-se entre os artistas de sua época por sua orientação dita conservadora, aos olhos do cânone modernista brasileiro hoje vigente.
Tendo residido na cidade do Rio de Janeiro, na Ilha do Governador, Guttmann pintou aspectos de suas praias e areais.
Guttmann Bicho era cunhado do escritor Agripino Grieco.
Fonte: Wikipédia. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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Exposições
1906 - 13ª Exposição Geral de Belas Artes
1907 - 14ª Exposição Geral de Belas Artes
1910 - 17ª Exposição Geral de Belas Artes
1911 - 18ª Exposição Geral de Belas Artes
1912 - 19ª Exposição Geral de Belas Artes
1913 - 20ª Exposição Geral de Belas Artes
1914 - 21ª Exposição Geral de Belas Artes
1915 - 22ª Exposição Geral de Belas Artes
1916 - 23ª Exposição Geral de Belas Artes
1917 - 24ª Exposição Geral de Belas Artes
1918 - 25ª Exposição Geral de Belas Artes
1920 - 27ª Exposição Geral de Belas Artes
1921 - 28ª Exposição Geral de Belas Artes
1924 - 31ª Exposição Geral de Belas Artes
1924 - 2º Salão da Primavera
1925 - 32ª Exposição Geral de Belas Artes
1926 - 33ª Exposição Geral de Belas Artes
1927 - 34ª Exposição Geral de Belas Artes
1928 - 35ª Exposição Geral de Belas Artes
1929 - 36ª Exposição Geral de Belas Artes
1930 - 37ª Exposição Geral de Belas Artes
1933 - 39ª Exposição Geral de Belas Artes
1934 - 3º Salão do Núcleo Bernardelli
1937 - 5º Salão Paulista de Belas Artes
1944 - 50º Salão Nacional de Belas Artes
1981 - Artistas Brasileiros da Primeira Metade do Século XX
1994 - Bienal Brasil Século XX
2011 - Labirintos da Iconografia
2013 - Retrato POA
2015 - Mater Fecunda a Pinacoteca Aldo Locatelli de 1884 a 1943
2017 - Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira
2018 - O Despertar das Formas - vestígios da modernidade na Pinacoteca Aldo Locatelli
2018 - Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira
2021 - Nossos Artistas Italianos
Fonte: GUTTMANN Bicho. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025. Acesso em: 16 de julho de 2025. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
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Guttmann Bicho | Acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo
Nascido Galdino da Costa Bicho (Petrópolis, RJ, 1888 – Rio de Janeiro, RJ, 1955), Guttmann Bicho adotou como alcunha o apelido que recebera da mãe, por sugestão de Carlos Maúl (1887–1974), escritor, um de seus companheiros no circuito intelectual boêmio do Rio de Janeiro. Natural de Petrópolis, residiu em Sergipe durante a infância, mudando-se, já adulto, para o Rio de Janeiro, então o centro político e cultural do País, onde buscou terreno fértil para suas aspirações artísticas. Iniciou seus estudos no Liceu de Artes e Ofícios e trabalhou, por vários anos, como assistente do retratista francês Auguste Petit (1844–1927). Frequentou também a Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno, entre outros, de João Zeferino da Costa (1840–1915), Eliseu Visconti (1866–1944) e Belmiro de Almeida (1858–1935), as principais influências em sua trajetória inicial.
Recebe, em 1921, o Grande Prêmio de Viagem ao Exterior, com o quadro Panneau Decorativo (atualmente no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro), cena em que uma figura feminina, inspirada em sua esposa, Diva Freire, serve uma mesa de chá. É uma obra que ilustra seu talento singular para enriquecer com carga poética mesmo os temas mais prosaicos do cotidiano, o que pode ser apreciado também na série de pinturas que produziu para o Centro de Assistência Psicossocial (CAPS) Ernesto Nazareth, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, por volta de 1930, em que retrata o trabalho dos colaboradores sanitaristas que combatiam a febre amarela. Na Europa, Guttmann Bicho expôs, com considerável sucesso, em Lisboa. Ao retornar ao Brasil, em 1924, teve um período de significativo reconhecimento, ao conquistar a Medalha de Ouro na Exposição Geral de 1925, e foi o responsável por introduzir o Curso de Cerâmica na Escola Técnica do Rio de Janeiro. Continua participando do Salão Nacional de Belas Artes até que, em 1954, recebe um segundo Prêmio de Viagem, desta vez pelo Brasil, indo ao Maranhão, que passa a ser inspiração de muitas das paisagens que viria a pintar posteriormente.
Na tela Luz e sombra (1925), Bicho representa um banco em uma das ruelas de um parque ou jardim, em que a luz do sol incide filtrada pelas árvores. Ele acreditava que a simplicidade dos temas não interferia no resultado ou impacto final da obra: “O tema é sempre uma cousa acessória e secundária; [...] o mérito de um pintor se manifesta muito mais na qualidade e na maneira da pintura do que nos assumptos escolhidos” (Apud VALLE, 2006). Explicitando as tendências impressionistas de seu trabalho nesse período, privilegiava a complementaridade das cores, utilizando diferentes tons de verdes e azuis, em contraste com vermelhos e rosados, presentes mais obviamente nas copas das árvores e folhas dos arbustos, em lados opostos da tela, e também harmonicamente espalhados por toda a composição, na sombra delicada criada pela luz natural, que é representada em tons claros de lilases e violáceos. As formas são criadas fundamentalmente por pinceladas individuais, sem contornos definidos, e a perspectiva frontal sugere um enquadramento fotográfico, já que a fotografia também influenciava os pintores impressionistas franceses.
Fonte: Acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, publicado em 10 de setembro de 2020. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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Guttmann Bicho | Dezenove vinte
Nascido em Petrópolis, Galdino da Costa (Guttmann) Bicho passou a infância em Sergipe, vindo a residir no Rio de Janeiro, onde iniciou-se artisticamente no Liceu de Artes e Ofícios. Durante vários anos, Bicho trabalhou como assistente do retratista francês radicado no Brasil August Petit, com o qual adquiriu uma sólida formação profissional. Frequentou como aluno livre a Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno de, entre outros, João Zeferino da Costa e Eliseu d’Angelo Visconti. A literatura artística da época registra ter sido Gutmann Bicho um espírito inquieto, polêmico, elemento ativo na vida artística carioca no princípio do século, sobretudo antes do predomínio das tendências modernas.
Nas Exposições Gerais, Bicho obteve menção honrosa (1906), pequena medalha de prata (1912) e o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro (1921, com o quadro Panneau decorativo). Na Europa, fixou-se em Paris, mas também passou uma temporada em Lisboa, onde realizou uma exposição particular que obteve boa repercussão. De volta ao Brasil em 1924, conheceu um período de relativa consagração, conquistando na Exposição Geral de 1925 a medalha de ouro. Continuaria participando do certame - então com o nome de Salão Nacional de Belas Artes – até 1954, quando recebeu o Prêmio de Viagem pelo Brasil, embarcando para o Maranhão, estado que lhe forneceria o tema para suas derradeiras paisagens.
Retratista muito admirado, foi também autor de naturezas-mortas e numerosas pinturas de paisagem; nestas últimas, utilizou frequentemente a técnica divisionista, procedimento pela qual é hoje em dia mais lembrado. Espírito polimorfo, Gutmman Bicho projetou ainda prédios, hospitais e barcos, e foi praticante assíduo da arte da cerâmica, que lecionou em um curso por ele mesmo criado em 1947 na Escola Técnica Nacional do Rio de Janeiro e que foi um importante foco de ensino dessa técnica, então ainda pouco difundida no meio artístico brasileiro.
Fonte: DezenoveVinte. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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Questões semânticas na obra de Guttmann Bicho: uma análise do Panneau Decorativo | DezenoveVinte
Nosso primeiro contato com a obra de Galdino Guttmann Bicho (1888-1955) se deu nas dependências do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) do Rio de Janeiro, ainda no início da década de 1990. Lá se encontrava exposto um de seus mais importantes trabalhos, um quadro a óleo de grandes dimensões chamado Panneau Decorativo, realizado em 1921, e que rendeu ao artista o Prêmio de Viagem ao Exterior da Exposição Geral de Belas Artes daquele ano. O trabalho surpreendeu-nos bastante na ocasião, primeiro por possuir uma singular qualidade evocativa, apesar de apresentar um tema aparentemente banal - uma mulher que põe a mesa de chá em uma varanda; depois, por provir de um pintor que até então ignorávamos completamente.
Algum tempo depois, essas impressões foram renovadas quando tivemos oportunidade de ver todo um ciclo inteiro de pinturas de Guttmann Bicho no Centro Municipal de Saúde Necker Pinto, localizado na Ilha do Governador, cidade do Rio de Janeiro. Novamente, o pintor conseguia extrair de um tema prosaico - desta vez as campanhas de sanitarismo no Rio de finais dos anos 1920 -, efeitos sugestivos e poéticos. Com tudo isso, naturalmente, crescia, também, a nossa curiosidade a respeito da personalidade artística por trás de tais realizações.
Desde então, podemos dizer que já germinavam as duas indagações cujas tentativas de resposta constituíram o cerne da dissertação de Mestrado que elaboramos entre 2000-2002 no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro: Quem foi Guttmann Bicho? Qual a natureza dos recursos compositivos que conferiam às suas obras o seu peculiar caráter evocativo? Algumas das conclusões às quais chegamos no que se refere a essa última pergunta constituem o tema principal do presente texto.
Na busca de fontes que pudessem fornecer maiores informações sobre o pintor e sobre sua obra, logo descobrimos que Guttmann Bicho estava longe de ser um artista completamente desconhecido dos historiadores de arte brasileiros. Aluno livre da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), diversas vezes premiado nos certames oficiais, possuidor de uma personalidade muitas vezes lembrada como marcante, teve destacada atuação nos meios artísticos das primeiras décadas do século XX, especialmente nos do Rio de Janeiro, e foi, além disso, um dos principais promotores da cerâmica artística em nosso país. Bicho é citado em todas as principais obras de referência e dicionários de artistas plásticos brasileiros, embora os verbetes a ele destinados sejam pouco extensos e geralmente repetitivos.
No que se refere às questões estilísticas, que aqui constituem o nosso interesse exclusivo, encontramos Guttmann Bicho estreitamente associado, em sua fortuna crítica, às tendências impressionistas e pontilhistas da arte francesa de fins do século XIX. Nesse sentido, já no início da década de 1940, o crítico Carlos Rubens afirmava: “se ao partir para a Europa se dizia que ele era desprovido de qualquer part-pris de escola, quando regressou e expôs o enquadraram no Impressionismo”. Analogamente, Walmir Ayala destaca o “gosto pela pesquisa de luz” verificado na obra do pintor e João Medeiros fala de sua “nítida influência impressionista”. Carlos Cavalcanti, por sua vez, indica com mais precisão que, já antes de sua viagem à Europa, Bicho “ensaiou intuitivamente a aplicação dos princípios do divisionismo ou da mistura óptica de cores de que Seurat e Signac haviam sido os melhores exemplos nos fins do século passado”.
Essa convergência de juízos da nossa crítica de arte mais ou menos recente deixa transparecer uma tendência a privilegiar, na obra do pintor, os aspectos vinculados ao que se convencionou chamar “pura visibilidade”, isto é, aquele ramo da arte do século XX caracterizado por uma preocupação quase exclusiva com o aspecto visual das obras. No que se refere à pintura, sabemos que a ênfase em uma atitude perceptiva mais direta, desvinculada de esquemas reguladores da representação - como a perspectiva linear, por exemplo -, se encontrava já bastante avançada quando do advento do Impressionismo. Logo, porém, em algumas correntes do início do século XX, a articulação do aspecto puramente visual do quadro ganharia ampla autonomia e não iria se submeter nem sequer às impressões recolhidas da realidade empírica.
Paralelamente, essa autonomia da pintura se afirmaria também com relação às demais artes, especialmente a literatura. Porta-voz típico dessa tendência, o crítico estadunidense Clement Greenberg chega a apontar como característica eminentemente modernista da arte o seu caráter “auto-crítico”, que teria como consequência extrema “eliminar dos efeitos específicos de cada arte todo e qualquer efeito que se pudesse imaginar ter sido tomados dos meios de qualquer outra arte ou obtido por meio deles. Assim cada arte se tornaria 'pura' e nessa 'pureza' iria encontrar a garantia de seus padrões de qualidade bem como de sua independência”.
No caso da pintura europeia das primeiras décadas do século passado, tal esforço “de entrincheiramento em sua área de competência” - para usar uma conhecida expressão de Greenberg -, que era já óbvio na eliminação progressiva do caráter anedótico da pintura levada a cabo com as tendências “realistas” de meados do século XIX, acabaria conduzindo a uma total exclusão de qualquer valor semântico na imagem, como pode ser observado em obras de artistas ligados a “vanguardas” novecentistas como o Construtivismo Russo e De Stijl. Essa pintura “abstrata”, com sua autoproclamada negação dos valores referenciais, pareceria inclusive, a alguns historiadores e críticos de arte posteriores, o ápice da pintura modernista.
9. Como já apontamos, as “pesquisas de luz” de Guttmann Bicho, o seu interesse pelos “efeitos de magnífica intensidade cromática” ou a sua extensa produção no gênero da paisagem, foram normalmente lembrados e citados de modo a inserir sua obra na linha evolutiva dessa “pintura pura”. E essa foi também a maneira mais óbvia de ligá-la à genealogia do modernismo brasileiro. Uma leitura crítica semelhante pode ser verificada com relação a obra de diversos outros artistas mais ou menos vinculados aos meios acadêmicos fluminenses tardo-oitocentistas como Eliseu d’Angelo Visconti e, especialmente, Giovanni Battista Castagneto.
10. Algumas declarações do próprio Guttmann Bicho poderiam mesmo ser utilizadas para embasar tais leituras. Em uma entrevista dada ainda na década de 1910, encontrada em um álbum de recortes do próprio pintor, este afirmava: “O tema é sempre uma cousa acessória e secundária [...] o mérito de um pintor se manifesta muito mais na qualidade e na maneira da pintura do que nos assumptos escolhidos”. E, de fato, uma tendência à exclusiva organização visual do campo do quadro é verificável em várias obras de Bicho, em especial em suas “manchas” de paisagem, obras de dimensões reduzidas e normalmente realizadas ao ar livre, nas quais o motivo é sobretudo um pretexto para um trabalho de pintura onde surge exaltada a tessitura e a vibração cromáticas do quadro.
11. Entretanto, um exame mais atento da produção do pintor serviria para relativizar essa leitura crítica, já que diversas obras de Guttmann Bicho não limitam-se à afirmação do aspecto puramente visual da imagem. Na verdade, como aliás a maioria dos pintores de sua geração, Bicho variava enormemente a configuração de seus trabalhos em função sobretudo da natureza diversa dos temas e das encomendas, executando com desenvoltura desde decorações oficiais e retratos, com suas exigências representativas específicas, até o exercício pictural mais pessoal e livre.
12. Naquilo que aqui nos interessa mais precisamente, podemos observar como, em diversos de seus trabalhos, Guttmann Bicho não negligenciava o elemento semântico da pintura, mas, muito pelo contrário, convertia-o em um fator fundamental para o sentido estético da obra. Sem negar as relações de contiguidade verificáveis entre os objetos na realidade empírica, mas indo além delas, e, simultaneamente, afastando-se do caráter alegórico presente em parte da produção de seus contemporâneos, Bicho fazia um uso do elemento semântico que podemos qualificar de verdadeiramente estrutural.
13. Podemos encontrar indicações teóricas a respeito desse tipo de uso do elemento semântico da arte em alguns postulados de correntes de análise da obra de arte normalmente referidas como “estruturalistas”, especialmente aqueles de função poética e princípio de equivalência, sistematizados por Roman Jakobson em seu artigo “Linguística e Poética” (1960). Tais postulados estavam implícitos no pensamento de outros teóricos desde pelo menos os anos 1930 e eram já então pensados como abrangendo todas as manifestações estéticas, como fica explícito nos escritos de, por exemplo, Jan Mukarovsky.
14. Tal uso estrutural do elemento semântico é fundamental para a obtenção de certos efeitos de sentido frequentes - embora não exclusivamente encontrados - em algumas tendências da pintura europeias, a partir de fins do século XIX. Como lembra Roberto Salvini, paralelamente às correntes da “arte pura” por nós já citadas, “o conteúdo, que era muito difícil de banir totalmente, reaparece sob a forma de uma obscura e mística sensação de mistério, como nos Simbolistas e em Gauguin que teoriza a forma sintética como símbolo do mistério e do infinito”. Tal orientação é ainda mais evidente em algumas “vanguardas” modernas como a pintura metafísica italiana e em certos aspectos da Neue Sachlichkeit alemã, do Dadaísmo e do Surrealismo.
15. Analisando obras desses movimentos, podemos verificar que o seu caráter evocativo encontra-se não raras vezes associado à atualização de algumas relações de sentido específicas, que propomos agrupar em quatro tipos principais: a) Similaridade; b) Incompatibilidade; c) Hiponímia; d) Relações metonímicas. Em linhas gerais, esses são os mesmos tipos de relações estudados pelos semanticistas que procuram descrever a estrutura semântica das línguas naturais. De maneira ainda mais fundamental, essas relações de sentido encontram-se intimamente relacionadas com a própria estrutura daquilo que poderíamos denominar sistema conceitual humano.
16. No presente texto, nos limitaremos a demonstrar, além do uso das equivalências compositivas, a maneira como algumas dessas relações de sentido se encontram atualizadas no já citado Panneau Decorativo de Guttmann Bicho, que, nosso entender, é um bom exemplo do uso estrutural do elemento semântico ao qual acima nos referimos. O Panneau é, provavelmente, uma das obras mais bem sucedidas de toda a carreira de Bicho. Distante dos temas alegóricos ou históricos ainda usualmente associadas à produção de artistas ligados à ENBA, o pintor apresenta-nos uma cena simples e prosaica, onde uma mulher - figura inspirada em sua primeira esposa, Diva Freire -, coloca a mesa de chá em um ambiente pouco demarcado, aparentemente uma varanda de subúrbio, repleta de objetos variados.
17. O quadro, de fatura relativamente contida - apenas na área branca do vestido da mulher pode-se observar um uso mais enfático de empastamento -, apresenta uma aplicação discreta dos princípios pontilhistas, mais perceptível na parede que ocupa a maior parte da metade esquerda da obra e onde pode-se verificar uma vibração cromática de pontos azuis sobre um fundo de cor mais terrosa. Na composição predominam as direções ortogonais e uma divisão em áreas de cor separadas por fortes contrastes de matiz, que não raramente ostentam saturações bastante acentuadas.
18. O principal fator que estabelece uma relação de equivalência entre alguns dos elementos mais destacados do quadro (a mulher, o cachorro, a mesa, a cadeira) é o fato deles partilharem uma mesma orientação espacial, estando todos lateralmente perfilados. Nesse sentido, mesmo as eventuais distorções perspectivas dos móveis são atenuadas de maneira a não contradizer a tendência à lateralidade. Somado ao desenho linear bastante preciso e ao tratamento pictórico controlado, essa lateralidade quase onipresente ajuda a reforçar o sentido de artificialidade do quadro: apesar de tratar-se de uma cena do quotidiano, paira no ar uma estranha sensação de rigidez hierática e de congelamento.
19. O princípio de unificação dos elementos de uma obra através de uma mesma orientação espacial é bastante comum na história da arte. Como exemplos de quadros quase completamente subordinadas a esse princípio compositivo e que mantém com o trabalho de Bicho relações estilísticas e temporais relativamente próximas, poderíamos aqui citar as primeiras grandes composições do francês Georges Seurat, como o quadro Banhistas em Asnières (1883), da National Gallery de Londres, ou o famoso Domingo à Tarde na Ilha do Grand Jatte (1884) , hoje no Art Institute de Chicago. Todavia, é também possível que as referências do pintor brasileiro para seu quadro sejam menos recentes: a lateralidade como princípio compositivo unificador é quase uma norma na arte da pintura e dos relevos escultóricos praticada pelas civilizações antigas, sendo que os egípcios, assírios, gregos, entre outros povos, aplicavam-na frequentemente. Sabemos que a ENBA possuía diversas moldagens de gesso de peças antigas, especialmente greco-romanas, e como Bicho por vezes expressou a sua admiração por estas, é bastante plausível que o tenham influenciado na realização do Panneau Decorativo.
20. Vimos como o estabelecimento de uma mesma orientação espacial - no caso, a lateralidade - instaura um forte fator de similaridade entre elementos semanticamente diversos de uma mesma obra; a relativa sensação de estranheza que esse procedimento provoca deriva em parte do fato de sugerir a existência de uma espécie de “vínculo existencial” entre os objetos que afeta. Todavia, se por um lado a lateralidade serve como fator de similaridade entre elementos de significado referencial mais ou menos díspares (mulher, mesa, etc.), por outro, quando diante de uma verdadeira identidade semântica, como no caso, das duas xícaras colocadas sobre a mesa, Guttmann Bicho utiliza orientações espaciais opostas a fim de criar um contraste visual subjacente: assim, a xícara da esquerda é colocada com a borda para cima e a da direita com a borda para baixo. Esse conjunto de dimensões reduzidas com relação ao todo do quadro, é, no entanto, bastante importante por encontrar-se no centro do mesmo e atuar em certa medida como pivô de toda composição, como veremos mais à frente.
21. Outro tópico a respeito do Panneau que gostaríamos de analisar refere-se às relações metonímicas - mais especificamente às representações da parte pelo todo - nele verificáveis. Como é comum nas imagens visuais fixas, a apresentação da maioria dos elementos no quadro de Bicho não chega a ser integral: os mesmos são sempre mais ou menos “cortados” pelos limites do plano do quadro ou ocultos por sobreposições. No entanto, a maioria de tais elipses (para usarmos um outro termo linguístico) não chega a apresentar efeitos semânticos muito notáveis, como podemos constatar, por exemplo, no caso da mulher ou da mesa, das quais apenas as extremidades inferiores não são mostradas.
22. Um tanto diferente é o caso de dois outros elementos, o cachorro e a cadeira, os quais apresentam “cortes” mais acentuados. Essa primeira equivalência entre os dois elementos é reforçada por outra relativa à disposição espacial dos mesmos que são colocados de forma perfeitamente simétrica com relação ao eixo vertical central do quadro (o cachorro na extremidade inferior direita, a cadeira na extremidade inferior esquerda). Alertados por essas equivalências primárias, podemos então constatar a existência de outras similaridades subjacentes aos dois elementos: em primeiro lugar, tanto o cachorro quanto a cadeira apoiam-se sobre quatro “pernas”; além disso, apresentam dinâmicas visuais um tanto semelhantes, ainda que simetricamente orientadas em relação ao plano do quadro. Assim, graças a um mesmo tipo de operação metonímica, a obra revela-nos as semelhanças morfológicas existentes entre elementos referenciais à primeira vista bastante distintos.
23. Um último e importante fator para a compreensão do Panneau Decorativo que gostaríamos de aqui destacar refere-se à maneira bastante intencional com a qual Guttmann Bicho procura relacionar a ordem categorial dos objetos apresentados e a disposição relativa dos mesmos no plano do quadro. Poderíamos resumir tal fato dizendo que o quadro é dividido em duas partes e em cada uma delas predominam elementos semânticos co-hipônimos. Nesse sentido, a vertical da parede, localizada quase exatamente no centro da pintura, deveria ser entendida como um eixo compositivo básico que separa a obra em duas metades as quais apresentam entre si um contraste semântico fundamental: à direita dessa vertical central, predominam elementos possuidores dos componentes semânticos orgânico/natural - a mulher, o cachorro, as folhas da vegetação, enquanto à esquerda, em oposição, predominam os elementos com os componentes semânticos inorgânico/cultural - a própria parede, a mesa como o aparelho de chá, as lanternas japonesas, etc. Essa oposição semântica é ainda reforçada através de um subtema estritamente visual, o contraste estabelecido entre as modulações de configuração e cor bastante variadas que predominam na vegetação à direita e o tratamento bem mais regular dado à parede à esquerda, com a sua suave e quase uniforme vibração pontilhista.
24. Essa divisão não possui, todavia, um caráter absoluto. Antes, ela estabelece nas duas metades complementares o que poderíamos chamar de duas regências semânticas opositivas, nas quais predominam diferentes ordens categoriais. Essas regências, por sua vez, não são unívocas: à direita, por exemplo, podemos ver um elemento cultural (a cerca), enquanto na área à esquerda, flores e outras plantas introduzem um contraponto semântico equivalente. O fato de várias das plantas à esquerda, colocadas em vasos, possuírem um caráter mais “cultivado” e, inversamente, a cerca à direita possuir um aspecto bastante rústico, parece indicar que o pintor utiliza esses elementos para realizar passagens semânticas: a função de tal artifício é evitar uma separação compositiva que de outro modo tornar-se-ia demasiado rígida. Ele relativiza, não obscurece totalmente a separação entre as duas metades do quadro, que continuam a ser percebidas como semanticamente contrastantes.
25. Nesse contexto, é justamente a figura da mulher que serve de ponte entre as duas metades da obra. Por um lado, ela participa, por sua própria essência, do domínio dos seres naturais à direita do quadro - no entanto, é importante notar que ela parece pouco vinculada à esse domínio, chegando mesmo a dar-lhe as costas. Por outro lado, está vestida com roupas que são semanticamente mais próximas do mundo dos objetos culturais à sua frente, mundo este que é, ele próprio, um índice da atuação humana. Esse papel de mediação aparece eloquentemente expresso no gesto da mulher, que, ordenando o “microcosmo” central da mesa de chá, toca simultaneamente nas flores (um elemento orgânico/natural) e na xícara (um elemento inorgânico/cultural).
26. Se desejarmos, podemos resumir nossa análise com uma interpretação - não isenta de reducionismos - afirmando que Guttmann Bicho nos apresenta no Panneau Decorativo uma espécie de proposição visual na qual o mundo representado é dividido em dois níveis categoriais distintos e contrastantes - um natural e outro cultural -, cada qual com a sua própria identidade e com dignidade e valor equivalentes. Todavia, esses dois níveis, a princípio separados, se interpenetram de uma maneira respeitosa e são inter-relacionados sobretudo pela presença e pela ação do ser humano - no quadro representado pela figura da mulher -, que participa dos dois níveis categoriais distintos que são a base da concepção de mundo expressa pelo pintor nessa obra específica.
27. Gostaríamos de encerrar lembrando que, se no presente texto nos limitamos a demonstrar de que maneira Guttmann Bicho apresenta no quadro analisado um uso eminentemente estrutura do elemento semântico da imagem - do qual podemos encontrar paralelos na articulação de outros elementos da forma -, tal uso não se limita de maneira alguma ao Panneau Decorativo. Diversas outras obras de Bicho apresentam procedimentos análogos, sendo o ciclo de pinturas no Centro Municipal de Saúde Necker Pinto ao qual nos referimos no início do texto talvez a sua realização mais complexa nesse sentido.
28. Por fim, desejaríamos frisar que aqui não fizemos mais do que esboçar alguns aspectos da utilização estrutura do elemento semântico nas imagens estéticas, a qual necessitaria ainda de estudos mais aprofundados. Desde já podemos crer, todavia, que os procedimentos que aqui descrevemos brevemente são bastante frequentes na História da Arte e podem vir a fornecer, no futuro, subsídios importantes para uma compreensão mais adequada de uma grande gama de objetos artísticos nos quais a instância semântica desempenha um papel compositivo fundamental.
Fonte: DezenoveVinte, “Questões semânticas na obra de Guttmann Bicho: uma análise do Panneau Decorativo”, publicado por Arthur Valle, em agosto de 2006. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS Ernesto Nazareth | DezenoveVinte
1. Galdino Guttmann Bicho (1888-1955) é um nome pouco discutido nos círculos da historiografia de arte brasileira. Usualmente lembrado como uma personalidade forte, irreverente e polêmica, Bicho era filho de pai português e mãe descendente de alemães e nasceu na cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro, mas passou quase toda a infância na região Nordeste brasileira, em cidades como Penedo e Aracaju. Durante sua vida - marcada por memoráveis peripécias, das quais não citaremos aqui mais do que algumas passagens -, travou contato estreito com algumas das mais interessantes figuras da intelectualidade brasileira de inícios do século passado e com toda a plêiade de artistas plásticos que dominou a cena artística fluminense, antes do advento do Modernismo.
2. Nesse contexto, a sua atuação polimorfa - além de pintor, foi ceramista, artista gráfico e arquiteto -, teve considerável importância, especialmente durante as primeiras três décadas do século XX. Desde 1906, seus trabalhos já figuravam na Exposição Geral de Belas Artes, então o maior certame artístico do Brasil. Nessa época, ele ainda se apresentava como discípulo de Auguste Petit, retratista francês radicado no Rio de Janeiro na década de 1860 e muito solicitado desde os tempos do Segundo Reinado. Bicho também frequentou o Liceu de Artes e Ofícios e a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), onde foi aluno livre e manteve contato com mestres decisivos para a sua formação, como Belmiro de Almeida e Eliseu Visconti. Nas Exposições Gerais de Belas Artes, recebeu todas as principais premiações, tendo sido a mais importante, sem dúvida, o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, ganho em 1921 por um quadro chamado Panneau Decorativo, que hoje pertence ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Depois de tal consagração, o artista figurou com frequência como membro do júri da Exposição Geral e teve também uma importante atuação como professor, além de expor em diversas capitais brasileiras.
3. De toda essa atividade, hoje pouco se fala. Na nossa historiografia de arte, Guttmann Bicho habita uma espécie de limbo, cujo aspecto nebuloso as breves e repetitivas referências presentes nos dicionários de artistas plásticos brasileiros fazem pouco para aclarar. Nesse ostracismo, Bicho não está só: junto com ele, se encontra toda uma geração de artistas que, oriundos da ENBA e começando a atuar igualmente na passagem para o século XX, foi praticamente esquecida, obliterada por uma imagem exclusivamente retrógrada e repressora da instituição oficial, forjada mormente pela retórica dos defensores do Modernismo, desejosos de se valorizar, por contraste, como renovadores e libertários. A unilateralidade de tal manobra ideológica já há algum tempo vem sendo relativizada, bem como o que há de insustentável na crença em uma ruptura radical nas artes visuais brasileiras, cujo “divisor de águas” seria a Semana de Arte Moderna de 1922. Hoje, parece óbvio que a produção dos artistas ligados a ENBA nas primeiras décadas do século XX possuía grande diversidade e vitalidade e, ao mesmo tempo que manteve os laços com a produção oitocentista, apontou decididamente para concepções renovadoras do fazer pictórico. No momento, porém, ainda escasseiam os estudos aprofundados sobre tal produção, que permanece sendo de difícil acesso para os eventuais interessados.
4. O presente artigo pretende trazer uma contribuição nesse último sentido, através de um estudo de caso bastante circunscrito: analisando um conjunto de pinturas realizadas por Guttmann Bicho por volta de 1930, para o atual Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Ernesto Nazareth, localizado na Ilha do Governador, Estado do Rio de Janeiro, pretendemos apresentar um exemplo da complexidade estrutural que, via de regra, pode ser encontrada na produção de artistas oriundos da ENBA no início do século passado.
5. Tal ciclo de pinturas, que retrata a ações dos sanitaristas no combate ao surto de febre amarela que assolou o Rio de Janeiro em finais dos anos 1920, apresenta algumas características peculiares. Em primeiro lugar, dentro da obra de Guttmann Bicho, é um dos trabalhos da maturidade do artista que decididamente se afasta do tratamento pontilhista, que fora bastante frequente em sua produção desde a década de 1910, e que se intensificara após a sua estadia na França. É importante salientar tal fato, uma vez que muitos comentaristas privilegiaram quase exclusivamente essa tendência pontilhista na obra do artista, com a intenção, mais ou menos manifesta e nada inocente, de recuperá-lo como uma espécie de “precursor” das tendências modernistas ligadas à afirmação da pura visibilidade pictórica. A obra de Bicho, todavia, não comporta uma tal redução. Nesse sentido, o ciclo de pinturas que analisaremos é um excelente exemplo da maneira como Guttmann Bicho manipulava o aspecto semântico da imagem como elemento fundamental para a estruturação de suas obras.
6. Em segundo lugar, se nas pinturas do posto de saúde Bicho afasta-se da “tentação” abstracionista, por outro lado ele nega, simultaneamente, o caráter alegórico que caracteriza boa parte de pintura decorativa realizada por seus contemporâneos de geração. Bastaria lembrar aqui das decorações para as duas grandes sedes do poder legislativo construídas na então Capital Federal durante os anos 1920 - os atuais Palácio Tiradentes e Palácio Pedro Ernesto -, assinadas por nomes como Lucílio de Albuquerque, João Timotheo da Costa e os irmãos Rodolpho e Carlos Chambelland, repletas de figurações alegóricas e/ou retratando em chave heroicizante personagens e passagens da história brasileira, para nos darmos conta da singularidade das pinturas de Bicho, cujo caráter é bem mais prosaico e sóbrio. Essa divergência é um indicador das particularidades da orientação estética de Bicho e também daquela diversidade da produção pictórica da época, acima aludida. Cremos que a particularidade da obra se deve, igualmente, às condições bastante singulares que envolveram a sua concepção e realização, e às quais gostaríamos de nos referir no que se segue.
7. O CAPS Ernesto Nazareth localiza-se na atual Avenida Paranapuan, número 435, na Freguesia, bairro da Ilha do Governador. Pela ausência de documentação, vários detalhes de sua história são ainda obscuros e demandam maiores investigações. Sabemos que o prédio de dois andares, cuja construção teria alcançado seu término às vésperas da Revolução de 1930, funcionou inicialmente como um centro de saúde - tido como o primeiro da região -, assumindo posteriormente diversas funções: além de servir como posto de vacinação, abrigou originalmente um lactário, e, nas suas mais de sete décadas de atuação, lá funcionaram serviços de pneumologia sanitária, dermatologia, fonoaudiologia, entre outros. Em meados da década de 1990, foi instalado no posto um centro de atendimento destinado ao tratamento de pacientes portadores de distúrbios psicológicos. As fontes disponíveis reiteradamente afirmam, ainda, que a ação de Guttmann Bicho foi fundamental na idealização do prédio.
8. É o que testemunha, por exemplo, o médico Phocion Serpa, que na época da fundação do posto chefiava o Serviço de Saneamento Rural do Estado do Rio de Janeiro e era amigo de Bicho - este, inclusive, retratou Serpa em quadros que figuraram nas Exposições Gerais de 1929 e 1930. Em um texto publicado no Jornal do Commercio, por ocasião da morte de Bicho, em 1955, Serpa recorda que, no final dos anos 1920, o Rio de Janeiro fora assolado por um surto de febre amarela que alarmou as autoridades sanitárias. Assim que a doença se alastrou para Ilha do Governador, Guttmann Bicho - sempre lembrado por seus ideais comunitários e como ferrenho defensor das riquezas naturais da localidade -, se apresentou voluntariamente para trabalhar como “mata-mosquito”, como eram popularmente conhecidos os sanitaristas dedicados à função de eliminar os insetos transmissores da doença. Nesse sentido, sua atuação teria também sido importante, contribuindo para a resolução de conflitos que frequentemente surgiam entre os funcionários da saúde pública e os habitantes locais, submetidos à pressão de uma rigorosa vigilância sanitária. Depois que a doença foi controlada, seria novamente Bicho quem teria a ideia de aproveitar um terreno que fora transferido à Saúde Pública para a construção de um posto de saúde. Como afirma Serpa, “o edifício que se ergueu no local, só se tem, graças ao entusiasmo de Guttmann Bicho, que se desdobrou em mestre de obras, desenhando a planta, em operário, preparando o terreno, furando os cafofos, britando e alinhando pedras, transportando tijolos, amassando e carregando o barro [...] o artista pintou a óleo e ornamentou as paredes do edifício.”
9. Para a decoração do CAPS Ernesto Nazareth, Guttmann Bicho realizou ao todo onze telas: duas delas encontram-se no andar superior e retratam cenas de aleitamento, recordando uma das funções originais do posto de saúde. As outras nove encontram-se no hall de entrada do andar térreo. As pinturas foram realizadas a óleo sobre telas coladas diretamente nas paredes do posto de saúde, seguindo o então usual método do marouflage. Atualmente, o estado de conservação do conjunto é precário: no final da década de 1980, após uma campanha promovida pelas entidades culturais da Ilha do Governador, as pinturas foram tombadas na categoria de bem público municipal, mas seus trabalhos de restauração, até o momento da escrita do presente texto, não foram iniciados.
10. Como pode ser intuído pelas plantas e elevações do Esquema 1, as pinturas do andar térreo cobrem toda a extensão das paredes do lado direito e esquerdo do hall de entrada, começando a partir de cerca de 1,50 metros do chão, sendo limitadas, na parte inferior, por um friso em argamassa decorado com motivos florais e, na parte superior, pelo próprio teto do hall. As pinturas contornam, inclusive, os vãos das portas que dão acesso a consultórios laterais e que individualizam, grosso modo, nove quadros independentes, cada um dos quais apresentando uma cena diferente. Temos, dessa maneira, quatro quadros na parede direita, enquanto na esquerda estão localizados os outros cinco.
Fonte: DezenoveVinte, “O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS Ernesto Nazareth” publicado por Arthur Valle, em 1 de janeiro de 2007. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
Crédito fotográfico: DezenoveVinte. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
Galdino Guttmann Bicho (23 de novembro de 1888, Petrópolis, Brasil — 9 de julho de 1955, Rio de Janeiro, Brasil), mais conhecido como Guttmann Bicho, foi um pintor, ceramista e professor brasileiro. Formou-se no Liceu de Artes e Ofícios e na Escola Nacional de Belas Artes, onde teve aulas com mestres como Zeferino da Costa, Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti. Influenciado pelo impressionismo e pelo divisionismo, destacou-se como retratista e paisagista, com obras que exploravam a luz, o mar e a natureza. Ganhou o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro em 1921, estudando em Paris e Lisboa. Foi professor da Escola Técnica Nacional e contribuiu para o ensino de cerâmica no Brasil. Sua obra transitou entre a tradição acadêmica e a modernidade. Atualmente, sua arte é preservada em museus e coleções públicas e particulares.
Galdino Guttmann Bicho | Arremate Arte
Galdino Guttmann Bicho nasceu em 23 de novembro de 1888 em Petrópolis e cresceu no Nordeste, entre Penedo e Aracaju, onde se formou um olhar sensível à luz e ao mar. Mudou-se para o Rio de Janeiro, formou-se no Liceu de Artes e Ofícios e estudou na Escola Nacional de Belas Artes com mestres como Zeferino da Costa, Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti.
Trabalhou como assistente do retratista francês August Petit, aprendendo técnicas refinadas de pintura.Nas exposições da ENBA, conquistou prêmios importantes: menções honrosas em 1906 e 1907, pequena medalha de prata em 1912, e em 1921 ganhou o prestigioso Prêmio de Viagem ao Estrangeiro com o painel pontilhista Panneau décoratif.
Estudou na Europa, passou uma temporada em Paris e Lisboa, e voltou ao Brasil em 1924, onde alcançou medalha de ouro no Salão de 1925. Sua obra é rica e variada: destacou-se como retratista, pintor de naturezas-mortas, paisagista com influência impressionista, especialmente com uso de divisionismo (pintura pontilhista). Também se dedicou à cerâmica, criando e ministrando curso na Escola Técnica Nacional do Rio em 1947.
Morou por muitos anos na Ilha do Governador e retratou suas paisagens. Era considerado tecnicamente habilidoso, com uma postura artística ambivalente: moderno e tradicional ao mesmo tempo. Fez retratos de intelectuais como Farias Brito, ilustrações históricas e obras com influências da arte japonesa.
Faleceu no Rio de Janeiro em 9 de julho de 1955.
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Guttmann Bicho | Wikipédia
Galdino Guttmann Bicho (Petrópolis, 23 de novembro de 1888 — Rio de Janeiro, 9 de julho de 1955) foi um pintor brasileiro.
Vida e obra
Guttmann Bicho, nascido em Petrópolis, era filho de pai português e mãe descendente de colonos alemães que imigraram e fixaram residência nesta cidade no século XIX.
Passou a infância em Sergipe, nas cidades de Penedo e Aracaju. Mais tarde veio a residir no Rio de Janeiro, onde iniciou-se artisticamente no Liceu de Artes e Ofícios. Durante vários anos, no início de sua carreira, Guttmann Bicho trabalhou como assistente do retratista francês radicado no Brasil August Petit, com o qual adquiriu uma sólida formação profissional.
Frequentou como aluno livre a Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno de, entre outros, Zeferino da Costa, Belmiro de Almeida, Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti. Nas Exposições Gerais, Guttmann Bicho obteve menção honrosa (1906), pequena medalha de prata (1912) e o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro (1921, com o quadro Panneau decorativo). Na Europa, fixou-se em Paris, mas também passou uma temporada em Lisboa, onde realizou uma exposição particular que obteve excelente repercussão.
De volta ao Brasil em 1924, conheceu um período de relativa consagração, conquistando na Exposição Geral de 1925 a medalha de ouro. Continuaria participando do certame, então com o nome de Salão Nacional de Belas Artes, ainda em 1954, quando recebeu o Prêmio de Viagem pelo Brasil. Embarcou então para o Maranhão, estado que lhe forneceria o tema para suas derradeiras paisagens.
Retratista admirável, foi também autor de naturezas-mortas e numerosas pinturas de paisagem. Nestas últimas, utilizou frequentemente o divisionismo, uma técnica de pintura pontilhista, pela qual Guttmann Bicho é hoje em dia presumivelmente mais lembrado. Foi também, influenciado pelo Impressionismo, e fez uso das pesquisas de luz e sombra deste movimento artístico.
Na Escola Técnica Nacional do Rio de Janeiro, em 1947, passou a ensinar técnicas artísticas em cerâmica. Destacou-se-se entre os artistas de sua época por sua orientação dita conservadora, aos olhos do cânone modernista brasileiro hoje vigente.
Tendo residido na cidade do Rio de Janeiro, na Ilha do Governador, Guttmann pintou aspectos de suas praias e areais.
Guttmann Bicho era cunhado do escritor Agripino Grieco.
Fonte: Wikipédia. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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Exposições
1906 - 13ª Exposição Geral de Belas Artes
1907 - 14ª Exposição Geral de Belas Artes
1910 - 17ª Exposição Geral de Belas Artes
1911 - 18ª Exposição Geral de Belas Artes
1912 - 19ª Exposição Geral de Belas Artes
1913 - 20ª Exposição Geral de Belas Artes
1914 - 21ª Exposição Geral de Belas Artes
1915 - 22ª Exposição Geral de Belas Artes
1916 - 23ª Exposição Geral de Belas Artes
1917 - 24ª Exposição Geral de Belas Artes
1918 - 25ª Exposição Geral de Belas Artes
1920 - 27ª Exposição Geral de Belas Artes
1921 - 28ª Exposição Geral de Belas Artes
1924 - 31ª Exposição Geral de Belas Artes
1924 - 2º Salão da Primavera
1925 - 32ª Exposição Geral de Belas Artes
1926 - 33ª Exposição Geral de Belas Artes
1927 - 34ª Exposição Geral de Belas Artes
1928 - 35ª Exposição Geral de Belas Artes
1929 - 36ª Exposição Geral de Belas Artes
1930 - 37ª Exposição Geral de Belas Artes
1933 - 39ª Exposição Geral de Belas Artes
1934 - 3º Salão do Núcleo Bernardelli
1937 - 5º Salão Paulista de Belas Artes
1944 - 50º Salão Nacional de Belas Artes
1981 - Artistas Brasileiros da Primeira Metade do Século XX
1994 - Bienal Brasil Século XX
2011 - Labirintos da Iconografia
2013 - Retrato POA
2015 - Mater Fecunda a Pinacoteca Aldo Locatelli de 1884 a 1943
2017 - Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira
2018 - O Despertar das Formas - vestígios da modernidade na Pinacoteca Aldo Locatelli
2018 - Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira
2021 - Nossos Artistas Italianos
Fonte: GUTTMANN Bicho. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025. Acesso em: 16 de julho de 2025. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
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Guttmann Bicho | Acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo
Nascido Galdino da Costa Bicho (Petrópolis, RJ, 1888 – Rio de Janeiro, RJ, 1955), Guttmann Bicho adotou como alcunha o apelido que recebera da mãe, por sugestão de Carlos Maúl (1887–1974), escritor, um de seus companheiros no circuito intelectual boêmio do Rio de Janeiro. Natural de Petrópolis, residiu em Sergipe durante a infância, mudando-se, já adulto, para o Rio de Janeiro, então o centro político e cultural do País, onde buscou terreno fértil para suas aspirações artísticas. Iniciou seus estudos no Liceu de Artes e Ofícios e trabalhou, por vários anos, como assistente do retratista francês Auguste Petit (1844–1927). Frequentou também a Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno, entre outros, de João Zeferino da Costa (1840–1915), Eliseu Visconti (1866–1944) e Belmiro de Almeida (1858–1935), as principais influências em sua trajetória inicial.
Recebe, em 1921, o Grande Prêmio de Viagem ao Exterior, com o quadro Panneau Decorativo (atualmente no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro), cena em que uma figura feminina, inspirada em sua esposa, Diva Freire, serve uma mesa de chá. É uma obra que ilustra seu talento singular para enriquecer com carga poética mesmo os temas mais prosaicos do cotidiano, o que pode ser apreciado também na série de pinturas que produziu para o Centro de Assistência Psicossocial (CAPS) Ernesto Nazareth, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, por volta de 1930, em que retrata o trabalho dos colaboradores sanitaristas que combatiam a febre amarela. Na Europa, Guttmann Bicho expôs, com considerável sucesso, em Lisboa. Ao retornar ao Brasil, em 1924, teve um período de significativo reconhecimento, ao conquistar a Medalha de Ouro na Exposição Geral de 1925, e foi o responsável por introduzir o Curso de Cerâmica na Escola Técnica do Rio de Janeiro. Continua participando do Salão Nacional de Belas Artes até que, em 1954, recebe um segundo Prêmio de Viagem, desta vez pelo Brasil, indo ao Maranhão, que passa a ser inspiração de muitas das paisagens que viria a pintar posteriormente.
Na tela Luz e sombra (1925), Bicho representa um banco em uma das ruelas de um parque ou jardim, em que a luz do sol incide filtrada pelas árvores. Ele acreditava que a simplicidade dos temas não interferia no resultado ou impacto final da obra: “O tema é sempre uma cousa acessória e secundária; [...] o mérito de um pintor se manifesta muito mais na qualidade e na maneira da pintura do que nos assumptos escolhidos” (Apud VALLE, 2006). Explicitando as tendências impressionistas de seu trabalho nesse período, privilegiava a complementaridade das cores, utilizando diferentes tons de verdes e azuis, em contraste com vermelhos e rosados, presentes mais obviamente nas copas das árvores e folhas dos arbustos, em lados opostos da tela, e também harmonicamente espalhados por toda a composição, na sombra delicada criada pela luz natural, que é representada em tons claros de lilases e violáceos. As formas são criadas fundamentalmente por pinceladas individuais, sem contornos definidos, e a perspectiva frontal sugere um enquadramento fotográfico, já que a fotografia também influenciava os pintores impressionistas franceses.
Fonte: Acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, publicado em 10 de setembro de 2020. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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Guttmann Bicho | Dezenove vinte
Nascido em Petrópolis, Galdino da Costa (Guttmann) Bicho passou a infância em Sergipe, vindo a residir no Rio de Janeiro, onde iniciou-se artisticamente no Liceu de Artes e Ofícios. Durante vários anos, Bicho trabalhou como assistente do retratista francês radicado no Brasil August Petit, com o qual adquiriu uma sólida formação profissional. Frequentou como aluno livre a Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno de, entre outros, João Zeferino da Costa e Eliseu d’Angelo Visconti. A literatura artística da época registra ter sido Gutmann Bicho um espírito inquieto, polêmico, elemento ativo na vida artística carioca no princípio do século, sobretudo antes do predomínio das tendências modernas.
Nas Exposições Gerais, Bicho obteve menção honrosa (1906), pequena medalha de prata (1912) e o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro (1921, com o quadro Panneau decorativo). Na Europa, fixou-se em Paris, mas também passou uma temporada em Lisboa, onde realizou uma exposição particular que obteve boa repercussão. De volta ao Brasil em 1924, conheceu um período de relativa consagração, conquistando na Exposição Geral de 1925 a medalha de ouro. Continuaria participando do certame - então com o nome de Salão Nacional de Belas Artes – até 1954, quando recebeu o Prêmio de Viagem pelo Brasil, embarcando para o Maranhão, estado que lhe forneceria o tema para suas derradeiras paisagens.
Retratista muito admirado, foi também autor de naturezas-mortas e numerosas pinturas de paisagem; nestas últimas, utilizou frequentemente a técnica divisionista, procedimento pela qual é hoje em dia mais lembrado. Espírito polimorfo, Gutmman Bicho projetou ainda prédios, hospitais e barcos, e foi praticante assíduo da arte da cerâmica, que lecionou em um curso por ele mesmo criado em 1947 na Escola Técnica Nacional do Rio de Janeiro e que foi um importante foco de ensino dessa técnica, então ainda pouco difundida no meio artístico brasileiro.
Fonte: DezenoveVinte. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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Questões semânticas na obra de Guttmann Bicho: uma análise do Panneau Decorativo | DezenoveVinte
Nosso primeiro contato com a obra de Galdino Guttmann Bicho (1888-1955) se deu nas dependências do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) do Rio de Janeiro, ainda no início da década de 1990. Lá se encontrava exposto um de seus mais importantes trabalhos, um quadro a óleo de grandes dimensões chamado Panneau Decorativo, realizado em 1921, e que rendeu ao artista o Prêmio de Viagem ao Exterior da Exposição Geral de Belas Artes daquele ano. O trabalho surpreendeu-nos bastante na ocasião, primeiro por possuir uma singular qualidade evocativa, apesar de apresentar um tema aparentemente banal - uma mulher que põe a mesa de chá em uma varanda; depois, por provir de um pintor que até então ignorávamos completamente.
Algum tempo depois, essas impressões foram renovadas quando tivemos oportunidade de ver todo um ciclo inteiro de pinturas de Guttmann Bicho no Centro Municipal de Saúde Necker Pinto, localizado na Ilha do Governador, cidade do Rio de Janeiro. Novamente, o pintor conseguia extrair de um tema prosaico - desta vez as campanhas de sanitarismo no Rio de finais dos anos 1920 -, efeitos sugestivos e poéticos. Com tudo isso, naturalmente, crescia, também, a nossa curiosidade a respeito da personalidade artística por trás de tais realizações.
Desde então, podemos dizer que já germinavam as duas indagações cujas tentativas de resposta constituíram o cerne da dissertação de Mestrado que elaboramos entre 2000-2002 no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro: Quem foi Guttmann Bicho? Qual a natureza dos recursos compositivos que conferiam às suas obras o seu peculiar caráter evocativo? Algumas das conclusões às quais chegamos no que se refere a essa última pergunta constituem o tema principal do presente texto.
Na busca de fontes que pudessem fornecer maiores informações sobre o pintor e sobre sua obra, logo descobrimos que Guttmann Bicho estava longe de ser um artista completamente desconhecido dos historiadores de arte brasileiros. Aluno livre da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), diversas vezes premiado nos certames oficiais, possuidor de uma personalidade muitas vezes lembrada como marcante, teve destacada atuação nos meios artísticos das primeiras décadas do século XX, especialmente nos do Rio de Janeiro, e foi, além disso, um dos principais promotores da cerâmica artística em nosso país. Bicho é citado em todas as principais obras de referência e dicionários de artistas plásticos brasileiros, embora os verbetes a ele destinados sejam pouco extensos e geralmente repetitivos.
No que se refere às questões estilísticas, que aqui constituem o nosso interesse exclusivo, encontramos Guttmann Bicho estreitamente associado, em sua fortuna crítica, às tendências impressionistas e pontilhistas da arte francesa de fins do século XIX. Nesse sentido, já no início da década de 1940, o crítico Carlos Rubens afirmava: “se ao partir para a Europa se dizia que ele era desprovido de qualquer part-pris de escola, quando regressou e expôs o enquadraram no Impressionismo”. Analogamente, Walmir Ayala destaca o “gosto pela pesquisa de luz” verificado na obra do pintor e João Medeiros fala de sua “nítida influência impressionista”. Carlos Cavalcanti, por sua vez, indica com mais precisão que, já antes de sua viagem à Europa, Bicho “ensaiou intuitivamente a aplicação dos princípios do divisionismo ou da mistura óptica de cores de que Seurat e Signac haviam sido os melhores exemplos nos fins do século passado”.
Essa convergência de juízos da nossa crítica de arte mais ou menos recente deixa transparecer uma tendência a privilegiar, na obra do pintor, os aspectos vinculados ao que se convencionou chamar “pura visibilidade”, isto é, aquele ramo da arte do século XX caracterizado por uma preocupação quase exclusiva com o aspecto visual das obras. No que se refere à pintura, sabemos que a ênfase em uma atitude perceptiva mais direta, desvinculada de esquemas reguladores da representação - como a perspectiva linear, por exemplo -, se encontrava já bastante avançada quando do advento do Impressionismo. Logo, porém, em algumas correntes do início do século XX, a articulação do aspecto puramente visual do quadro ganharia ampla autonomia e não iria se submeter nem sequer às impressões recolhidas da realidade empírica.
Paralelamente, essa autonomia da pintura se afirmaria também com relação às demais artes, especialmente a literatura. Porta-voz típico dessa tendência, o crítico estadunidense Clement Greenberg chega a apontar como característica eminentemente modernista da arte o seu caráter “auto-crítico”, que teria como consequência extrema “eliminar dos efeitos específicos de cada arte todo e qualquer efeito que se pudesse imaginar ter sido tomados dos meios de qualquer outra arte ou obtido por meio deles. Assim cada arte se tornaria 'pura' e nessa 'pureza' iria encontrar a garantia de seus padrões de qualidade bem como de sua independência”.
No caso da pintura europeia das primeiras décadas do século passado, tal esforço “de entrincheiramento em sua área de competência” - para usar uma conhecida expressão de Greenberg -, que era já óbvio na eliminação progressiva do caráter anedótico da pintura levada a cabo com as tendências “realistas” de meados do século XIX, acabaria conduzindo a uma total exclusão de qualquer valor semântico na imagem, como pode ser observado em obras de artistas ligados a “vanguardas” novecentistas como o Construtivismo Russo e De Stijl. Essa pintura “abstrata”, com sua autoproclamada negação dos valores referenciais, pareceria inclusive, a alguns historiadores e críticos de arte posteriores, o ápice da pintura modernista.
9. Como já apontamos, as “pesquisas de luz” de Guttmann Bicho, o seu interesse pelos “efeitos de magnífica intensidade cromática” ou a sua extensa produção no gênero da paisagem, foram normalmente lembrados e citados de modo a inserir sua obra na linha evolutiva dessa “pintura pura”. E essa foi também a maneira mais óbvia de ligá-la à genealogia do modernismo brasileiro. Uma leitura crítica semelhante pode ser verificada com relação a obra de diversos outros artistas mais ou menos vinculados aos meios acadêmicos fluminenses tardo-oitocentistas como Eliseu d’Angelo Visconti e, especialmente, Giovanni Battista Castagneto.
10. Algumas declarações do próprio Guttmann Bicho poderiam mesmo ser utilizadas para embasar tais leituras. Em uma entrevista dada ainda na década de 1910, encontrada em um álbum de recortes do próprio pintor, este afirmava: “O tema é sempre uma cousa acessória e secundária [...] o mérito de um pintor se manifesta muito mais na qualidade e na maneira da pintura do que nos assumptos escolhidos”. E, de fato, uma tendência à exclusiva organização visual do campo do quadro é verificável em várias obras de Bicho, em especial em suas “manchas” de paisagem, obras de dimensões reduzidas e normalmente realizadas ao ar livre, nas quais o motivo é sobretudo um pretexto para um trabalho de pintura onde surge exaltada a tessitura e a vibração cromáticas do quadro.
11. Entretanto, um exame mais atento da produção do pintor serviria para relativizar essa leitura crítica, já que diversas obras de Guttmann Bicho não limitam-se à afirmação do aspecto puramente visual da imagem. Na verdade, como aliás a maioria dos pintores de sua geração, Bicho variava enormemente a configuração de seus trabalhos em função sobretudo da natureza diversa dos temas e das encomendas, executando com desenvoltura desde decorações oficiais e retratos, com suas exigências representativas específicas, até o exercício pictural mais pessoal e livre.
12. Naquilo que aqui nos interessa mais precisamente, podemos observar como, em diversos de seus trabalhos, Guttmann Bicho não negligenciava o elemento semântico da pintura, mas, muito pelo contrário, convertia-o em um fator fundamental para o sentido estético da obra. Sem negar as relações de contiguidade verificáveis entre os objetos na realidade empírica, mas indo além delas, e, simultaneamente, afastando-se do caráter alegórico presente em parte da produção de seus contemporâneos, Bicho fazia um uso do elemento semântico que podemos qualificar de verdadeiramente estrutural.
13. Podemos encontrar indicações teóricas a respeito desse tipo de uso do elemento semântico da arte em alguns postulados de correntes de análise da obra de arte normalmente referidas como “estruturalistas”, especialmente aqueles de função poética e princípio de equivalência, sistematizados por Roman Jakobson em seu artigo “Linguística e Poética” (1960). Tais postulados estavam implícitos no pensamento de outros teóricos desde pelo menos os anos 1930 e eram já então pensados como abrangendo todas as manifestações estéticas, como fica explícito nos escritos de, por exemplo, Jan Mukarovsky.
14. Tal uso estrutural do elemento semântico é fundamental para a obtenção de certos efeitos de sentido frequentes - embora não exclusivamente encontrados - em algumas tendências da pintura europeias, a partir de fins do século XIX. Como lembra Roberto Salvini, paralelamente às correntes da “arte pura” por nós já citadas, “o conteúdo, que era muito difícil de banir totalmente, reaparece sob a forma de uma obscura e mística sensação de mistério, como nos Simbolistas e em Gauguin que teoriza a forma sintética como símbolo do mistério e do infinito”. Tal orientação é ainda mais evidente em algumas “vanguardas” modernas como a pintura metafísica italiana e em certos aspectos da Neue Sachlichkeit alemã, do Dadaísmo e do Surrealismo.
15. Analisando obras desses movimentos, podemos verificar que o seu caráter evocativo encontra-se não raras vezes associado à atualização de algumas relações de sentido específicas, que propomos agrupar em quatro tipos principais: a) Similaridade; b) Incompatibilidade; c) Hiponímia; d) Relações metonímicas. Em linhas gerais, esses são os mesmos tipos de relações estudados pelos semanticistas que procuram descrever a estrutura semântica das línguas naturais. De maneira ainda mais fundamental, essas relações de sentido encontram-se intimamente relacionadas com a própria estrutura daquilo que poderíamos denominar sistema conceitual humano.
16. No presente texto, nos limitaremos a demonstrar, além do uso das equivalências compositivas, a maneira como algumas dessas relações de sentido se encontram atualizadas no já citado Panneau Decorativo de Guttmann Bicho, que, nosso entender, é um bom exemplo do uso estrutural do elemento semântico ao qual acima nos referimos. O Panneau é, provavelmente, uma das obras mais bem sucedidas de toda a carreira de Bicho. Distante dos temas alegóricos ou históricos ainda usualmente associadas à produção de artistas ligados à ENBA, o pintor apresenta-nos uma cena simples e prosaica, onde uma mulher - figura inspirada em sua primeira esposa, Diva Freire -, coloca a mesa de chá em um ambiente pouco demarcado, aparentemente uma varanda de subúrbio, repleta de objetos variados.
17. O quadro, de fatura relativamente contida - apenas na área branca do vestido da mulher pode-se observar um uso mais enfático de empastamento -, apresenta uma aplicação discreta dos princípios pontilhistas, mais perceptível na parede que ocupa a maior parte da metade esquerda da obra e onde pode-se verificar uma vibração cromática de pontos azuis sobre um fundo de cor mais terrosa. Na composição predominam as direções ortogonais e uma divisão em áreas de cor separadas por fortes contrastes de matiz, que não raramente ostentam saturações bastante acentuadas.
18. O principal fator que estabelece uma relação de equivalência entre alguns dos elementos mais destacados do quadro (a mulher, o cachorro, a mesa, a cadeira) é o fato deles partilharem uma mesma orientação espacial, estando todos lateralmente perfilados. Nesse sentido, mesmo as eventuais distorções perspectivas dos móveis são atenuadas de maneira a não contradizer a tendência à lateralidade. Somado ao desenho linear bastante preciso e ao tratamento pictórico controlado, essa lateralidade quase onipresente ajuda a reforçar o sentido de artificialidade do quadro: apesar de tratar-se de uma cena do quotidiano, paira no ar uma estranha sensação de rigidez hierática e de congelamento.
19. O princípio de unificação dos elementos de uma obra através de uma mesma orientação espacial é bastante comum na história da arte. Como exemplos de quadros quase completamente subordinadas a esse princípio compositivo e que mantém com o trabalho de Bicho relações estilísticas e temporais relativamente próximas, poderíamos aqui citar as primeiras grandes composições do francês Georges Seurat, como o quadro Banhistas em Asnières (1883), da National Gallery de Londres, ou o famoso Domingo à Tarde na Ilha do Grand Jatte (1884) , hoje no Art Institute de Chicago. Todavia, é também possível que as referências do pintor brasileiro para seu quadro sejam menos recentes: a lateralidade como princípio compositivo unificador é quase uma norma na arte da pintura e dos relevos escultóricos praticada pelas civilizações antigas, sendo que os egípcios, assírios, gregos, entre outros povos, aplicavam-na frequentemente. Sabemos que a ENBA possuía diversas moldagens de gesso de peças antigas, especialmente greco-romanas, e como Bicho por vezes expressou a sua admiração por estas, é bastante plausível que o tenham influenciado na realização do Panneau Decorativo.
20. Vimos como o estabelecimento de uma mesma orientação espacial - no caso, a lateralidade - instaura um forte fator de similaridade entre elementos semanticamente diversos de uma mesma obra; a relativa sensação de estranheza que esse procedimento provoca deriva em parte do fato de sugerir a existência de uma espécie de “vínculo existencial” entre os objetos que afeta. Todavia, se por um lado a lateralidade serve como fator de similaridade entre elementos de significado referencial mais ou menos díspares (mulher, mesa, etc.), por outro, quando diante de uma verdadeira identidade semântica, como no caso, das duas xícaras colocadas sobre a mesa, Guttmann Bicho utiliza orientações espaciais opostas a fim de criar um contraste visual subjacente: assim, a xícara da esquerda é colocada com a borda para cima e a da direita com a borda para baixo. Esse conjunto de dimensões reduzidas com relação ao todo do quadro, é, no entanto, bastante importante por encontrar-se no centro do mesmo e atuar em certa medida como pivô de toda composição, como veremos mais à frente.
21. Outro tópico a respeito do Panneau que gostaríamos de analisar refere-se às relações metonímicas - mais especificamente às representações da parte pelo todo - nele verificáveis. Como é comum nas imagens visuais fixas, a apresentação da maioria dos elementos no quadro de Bicho não chega a ser integral: os mesmos são sempre mais ou menos “cortados” pelos limites do plano do quadro ou ocultos por sobreposições. No entanto, a maioria de tais elipses (para usarmos um outro termo linguístico) não chega a apresentar efeitos semânticos muito notáveis, como podemos constatar, por exemplo, no caso da mulher ou da mesa, das quais apenas as extremidades inferiores não são mostradas.
22. Um tanto diferente é o caso de dois outros elementos, o cachorro e a cadeira, os quais apresentam “cortes” mais acentuados. Essa primeira equivalência entre os dois elementos é reforçada por outra relativa à disposição espacial dos mesmos que são colocados de forma perfeitamente simétrica com relação ao eixo vertical central do quadro (o cachorro na extremidade inferior direita, a cadeira na extremidade inferior esquerda). Alertados por essas equivalências primárias, podemos então constatar a existência de outras similaridades subjacentes aos dois elementos: em primeiro lugar, tanto o cachorro quanto a cadeira apoiam-se sobre quatro “pernas”; além disso, apresentam dinâmicas visuais um tanto semelhantes, ainda que simetricamente orientadas em relação ao plano do quadro. Assim, graças a um mesmo tipo de operação metonímica, a obra revela-nos as semelhanças morfológicas existentes entre elementos referenciais à primeira vista bastante distintos.
23. Um último e importante fator para a compreensão do Panneau Decorativo que gostaríamos de aqui destacar refere-se à maneira bastante intencional com a qual Guttmann Bicho procura relacionar a ordem categorial dos objetos apresentados e a disposição relativa dos mesmos no plano do quadro. Poderíamos resumir tal fato dizendo que o quadro é dividido em duas partes e em cada uma delas predominam elementos semânticos co-hipônimos. Nesse sentido, a vertical da parede, localizada quase exatamente no centro da pintura, deveria ser entendida como um eixo compositivo básico que separa a obra em duas metades as quais apresentam entre si um contraste semântico fundamental: à direita dessa vertical central, predominam elementos possuidores dos componentes semânticos orgânico/natural - a mulher, o cachorro, as folhas da vegetação, enquanto à esquerda, em oposição, predominam os elementos com os componentes semânticos inorgânico/cultural - a própria parede, a mesa como o aparelho de chá, as lanternas japonesas, etc. Essa oposição semântica é ainda reforçada através de um subtema estritamente visual, o contraste estabelecido entre as modulações de configuração e cor bastante variadas que predominam na vegetação à direita e o tratamento bem mais regular dado à parede à esquerda, com a sua suave e quase uniforme vibração pontilhista.
24. Essa divisão não possui, todavia, um caráter absoluto. Antes, ela estabelece nas duas metades complementares o que poderíamos chamar de duas regências semânticas opositivas, nas quais predominam diferentes ordens categoriais. Essas regências, por sua vez, não são unívocas: à direita, por exemplo, podemos ver um elemento cultural (a cerca), enquanto na área à esquerda, flores e outras plantas introduzem um contraponto semântico equivalente. O fato de várias das plantas à esquerda, colocadas em vasos, possuírem um caráter mais “cultivado” e, inversamente, a cerca à direita possuir um aspecto bastante rústico, parece indicar que o pintor utiliza esses elementos para realizar passagens semânticas: a função de tal artifício é evitar uma separação compositiva que de outro modo tornar-se-ia demasiado rígida. Ele relativiza, não obscurece totalmente a separação entre as duas metades do quadro, que continuam a ser percebidas como semanticamente contrastantes.
25. Nesse contexto, é justamente a figura da mulher que serve de ponte entre as duas metades da obra. Por um lado, ela participa, por sua própria essência, do domínio dos seres naturais à direita do quadro - no entanto, é importante notar que ela parece pouco vinculada à esse domínio, chegando mesmo a dar-lhe as costas. Por outro lado, está vestida com roupas que são semanticamente mais próximas do mundo dos objetos culturais à sua frente, mundo este que é, ele próprio, um índice da atuação humana. Esse papel de mediação aparece eloquentemente expresso no gesto da mulher, que, ordenando o “microcosmo” central da mesa de chá, toca simultaneamente nas flores (um elemento orgânico/natural) e na xícara (um elemento inorgânico/cultural).
26. Se desejarmos, podemos resumir nossa análise com uma interpretação - não isenta de reducionismos - afirmando que Guttmann Bicho nos apresenta no Panneau Decorativo uma espécie de proposição visual na qual o mundo representado é dividido em dois níveis categoriais distintos e contrastantes - um natural e outro cultural -, cada qual com a sua própria identidade e com dignidade e valor equivalentes. Todavia, esses dois níveis, a princípio separados, se interpenetram de uma maneira respeitosa e são inter-relacionados sobretudo pela presença e pela ação do ser humano - no quadro representado pela figura da mulher -, que participa dos dois níveis categoriais distintos que são a base da concepção de mundo expressa pelo pintor nessa obra específica.
27. Gostaríamos de encerrar lembrando que, se no presente texto nos limitamos a demonstrar de que maneira Guttmann Bicho apresenta no quadro analisado um uso eminentemente estrutura do elemento semântico da imagem - do qual podemos encontrar paralelos na articulação de outros elementos da forma -, tal uso não se limita de maneira alguma ao Panneau Decorativo. Diversas outras obras de Bicho apresentam procedimentos análogos, sendo o ciclo de pinturas no Centro Municipal de Saúde Necker Pinto ao qual nos referimos no início do texto talvez a sua realização mais complexa nesse sentido.
28. Por fim, desejaríamos frisar que aqui não fizemos mais do que esboçar alguns aspectos da utilização estrutura do elemento semântico nas imagens estéticas, a qual necessitaria ainda de estudos mais aprofundados. Desde já podemos crer, todavia, que os procedimentos que aqui descrevemos brevemente são bastante frequentes na História da Arte e podem vir a fornecer, no futuro, subsídios importantes para uma compreensão mais adequada de uma grande gama de objetos artísticos nos quais a instância semântica desempenha um papel compositivo fundamental.
Fonte: DezenoveVinte, “Questões semânticas na obra de Guttmann Bicho: uma análise do Panneau Decorativo”, publicado por Arthur Valle, em agosto de 2006. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS Ernesto Nazareth | DezenoveVinte
1. Galdino Guttmann Bicho (1888-1955) é um nome pouco discutido nos círculos da historiografia de arte brasileira. Usualmente lembrado como uma personalidade forte, irreverente e polêmica, Bicho era filho de pai português e mãe descendente de alemães e nasceu na cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro, mas passou quase toda a infância na região Nordeste brasileira, em cidades como Penedo e Aracaju. Durante sua vida - marcada por memoráveis peripécias, das quais não citaremos aqui mais do que algumas passagens -, travou contato estreito com algumas das mais interessantes figuras da intelectualidade brasileira de inícios do século passado e com toda a plêiade de artistas plásticos que dominou a cena artística fluminense, antes do advento do Modernismo.
2. Nesse contexto, a sua atuação polimorfa - além de pintor, foi ceramista, artista gráfico e arquiteto -, teve considerável importância, especialmente durante as primeiras três décadas do século XX. Desde 1906, seus trabalhos já figuravam na Exposição Geral de Belas Artes, então o maior certame artístico do Brasil. Nessa época, ele ainda se apresentava como discípulo de Auguste Petit, retratista francês radicado no Rio de Janeiro na década de 1860 e muito solicitado desde os tempos do Segundo Reinado. Bicho também frequentou o Liceu de Artes e Ofícios e a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), onde foi aluno livre e manteve contato com mestres decisivos para a sua formação, como Belmiro de Almeida e Eliseu Visconti. Nas Exposições Gerais de Belas Artes, recebeu todas as principais premiações, tendo sido a mais importante, sem dúvida, o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, ganho em 1921 por um quadro chamado Panneau Decorativo, que hoje pertence ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Depois de tal consagração, o artista figurou com frequência como membro do júri da Exposição Geral e teve também uma importante atuação como professor, além de expor em diversas capitais brasileiras.
3. De toda essa atividade, hoje pouco se fala. Na nossa historiografia de arte, Guttmann Bicho habita uma espécie de limbo, cujo aspecto nebuloso as breves e repetitivas referências presentes nos dicionários de artistas plásticos brasileiros fazem pouco para aclarar. Nesse ostracismo, Bicho não está só: junto com ele, se encontra toda uma geração de artistas que, oriundos da ENBA e começando a atuar igualmente na passagem para o século XX, foi praticamente esquecida, obliterada por uma imagem exclusivamente retrógrada e repressora da instituição oficial, forjada mormente pela retórica dos defensores do Modernismo, desejosos de se valorizar, por contraste, como renovadores e libertários. A unilateralidade de tal manobra ideológica já há algum tempo vem sendo relativizada, bem como o que há de insustentável na crença em uma ruptura radical nas artes visuais brasileiras, cujo “divisor de águas” seria a Semana de Arte Moderna de 1922. Hoje, parece óbvio que a produção dos artistas ligados a ENBA nas primeiras décadas do século XX possuía grande diversidade e vitalidade e, ao mesmo tempo que manteve os laços com a produção oitocentista, apontou decididamente para concepções renovadoras do fazer pictórico. No momento, porém, ainda escasseiam os estudos aprofundados sobre tal produção, que permanece sendo de difícil acesso para os eventuais interessados.
4. O presente artigo pretende trazer uma contribuição nesse último sentido, através de um estudo de caso bastante circunscrito: analisando um conjunto de pinturas realizadas por Guttmann Bicho por volta de 1930, para o atual Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Ernesto Nazareth, localizado na Ilha do Governador, Estado do Rio de Janeiro, pretendemos apresentar um exemplo da complexidade estrutural que, via de regra, pode ser encontrada na produção de artistas oriundos da ENBA no início do século passado.
5. Tal ciclo de pinturas, que retrata a ações dos sanitaristas no combate ao surto de febre amarela que assolou o Rio de Janeiro em finais dos anos 1920, apresenta algumas características peculiares. Em primeiro lugar, dentro da obra de Guttmann Bicho, é um dos trabalhos da maturidade do artista que decididamente se afasta do tratamento pontilhista, que fora bastante frequente em sua produção desde a década de 1910, e que se intensificara após a sua estadia na França. É importante salientar tal fato, uma vez que muitos comentaristas privilegiaram quase exclusivamente essa tendência pontilhista na obra do artista, com a intenção, mais ou menos manifesta e nada inocente, de recuperá-lo como uma espécie de “precursor” das tendências modernistas ligadas à afirmação da pura visibilidade pictórica. A obra de Bicho, todavia, não comporta uma tal redução. Nesse sentido, o ciclo de pinturas que analisaremos é um excelente exemplo da maneira como Guttmann Bicho manipulava o aspecto semântico da imagem como elemento fundamental para a estruturação de suas obras.
6. Em segundo lugar, se nas pinturas do posto de saúde Bicho afasta-se da “tentação” abstracionista, por outro lado ele nega, simultaneamente, o caráter alegórico que caracteriza boa parte de pintura decorativa realizada por seus contemporâneos de geração. Bastaria lembrar aqui das decorações para as duas grandes sedes do poder legislativo construídas na então Capital Federal durante os anos 1920 - os atuais Palácio Tiradentes e Palácio Pedro Ernesto -, assinadas por nomes como Lucílio de Albuquerque, João Timotheo da Costa e os irmãos Rodolpho e Carlos Chambelland, repletas de figurações alegóricas e/ou retratando em chave heroicizante personagens e passagens da história brasileira, para nos darmos conta da singularidade das pinturas de Bicho, cujo caráter é bem mais prosaico e sóbrio. Essa divergência é um indicador das particularidades da orientação estética de Bicho e também daquela diversidade da produção pictórica da época, acima aludida. Cremos que a particularidade da obra se deve, igualmente, às condições bastante singulares que envolveram a sua concepção e realização, e às quais gostaríamos de nos referir no que se segue.
7. O CAPS Ernesto Nazareth localiza-se na atual Avenida Paranapuan, número 435, na Freguesia, bairro da Ilha do Governador. Pela ausência de documentação, vários detalhes de sua história são ainda obscuros e demandam maiores investigações. Sabemos que o prédio de dois andares, cuja construção teria alcançado seu término às vésperas da Revolução de 1930, funcionou inicialmente como um centro de saúde - tido como o primeiro da região -, assumindo posteriormente diversas funções: além de servir como posto de vacinação, abrigou originalmente um lactário, e, nas suas mais de sete décadas de atuação, lá funcionaram serviços de pneumologia sanitária, dermatologia, fonoaudiologia, entre outros. Em meados da década de 1990, foi instalado no posto um centro de atendimento destinado ao tratamento de pacientes portadores de distúrbios psicológicos. As fontes disponíveis reiteradamente afirmam, ainda, que a ação de Guttmann Bicho foi fundamental na idealização do prédio.
8. É o que testemunha, por exemplo, o médico Phocion Serpa, que na época da fundação do posto chefiava o Serviço de Saneamento Rural do Estado do Rio de Janeiro e era amigo de Bicho - este, inclusive, retratou Serpa em quadros que figuraram nas Exposições Gerais de 1929 e 1930. Em um texto publicado no Jornal do Commercio, por ocasião da morte de Bicho, em 1955, Serpa recorda que, no final dos anos 1920, o Rio de Janeiro fora assolado por um surto de febre amarela que alarmou as autoridades sanitárias. Assim que a doença se alastrou para Ilha do Governador, Guttmann Bicho - sempre lembrado por seus ideais comunitários e como ferrenho defensor das riquezas naturais da localidade -, se apresentou voluntariamente para trabalhar como “mata-mosquito”, como eram popularmente conhecidos os sanitaristas dedicados à função de eliminar os insetos transmissores da doença. Nesse sentido, sua atuação teria também sido importante, contribuindo para a resolução de conflitos que frequentemente surgiam entre os funcionários da saúde pública e os habitantes locais, submetidos à pressão de uma rigorosa vigilância sanitária. Depois que a doença foi controlada, seria novamente Bicho quem teria a ideia de aproveitar um terreno que fora transferido à Saúde Pública para a construção de um posto de saúde. Como afirma Serpa, “o edifício que se ergueu no local, só se tem, graças ao entusiasmo de Guttmann Bicho, que se desdobrou em mestre de obras, desenhando a planta, em operário, preparando o terreno, furando os cafofos, britando e alinhando pedras, transportando tijolos, amassando e carregando o barro [...] o artista pintou a óleo e ornamentou as paredes do edifício.”
9. Para a decoração do CAPS Ernesto Nazareth, Guttmann Bicho realizou ao todo onze telas: duas delas encontram-se no andar superior e retratam cenas de aleitamento, recordando uma das funções originais do posto de saúde. As outras nove encontram-se no hall de entrada do andar térreo. As pinturas foram realizadas a óleo sobre telas coladas diretamente nas paredes do posto de saúde, seguindo o então usual método do marouflage. Atualmente, o estado de conservação do conjunto é precário: no final da década de 1980, após uma campanha promovida pelas entidades culturais da Ilha do Governador, as pinturas foram tombadas na categoria de bem público municipal, mas seus trabalhos de restauração, até o momento da escrita do presente texto, não foram iniciados.
10. Como pode ser intuído pelas plantas e elevações do Esquema 1, as pinturas do andar térreo cobrem toda a extensão das paredes do lado direito e esquerdo do hall de entrada, começando a partir de cerca de 1,50 metros do chão, sendo limitadas, na parte inferior, por um friso em argamassa decorado com motivos florais e, na parte superior, pelo próprio teto do hall. As pinturas contornam, inclusive, os vãos das portas que dão acesso a consultórios laterais e que individualizam, grosso modo, nove quadros independentes, cada um dos quais apresentando uma cena diferente. Temos, dessa maneira, quatro quadros na parede direita, enquanto na esquerda estão localizados os outros cinco.
Fonte: DezenoveVinte, “O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS Ernesto Nazareth” publicado por Arthur Valle, em 1 de janeiro de 2007. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
Crédito fotográfico: DezenoveVinte. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
Galdino Guttmann Bicho (23 de novembro de 1888, Petrópolis, Brasil — 9 de julho de 1955, Rio de Janeiro, Brasil), mais conhecido como Guttmann Bicho, foi um pintor, ceramista e professor brasileiro. Formou-se no Liceu de Artes e Ofícios e na Escola Nacional de Belas Artes, onde teve aulas com mestres como Zeferino da Costa, Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti. Influenciado pelo impressionismo e pelo divisionismo, destacou-se como retratista e paisagista, com obras que exploravam a luz, o mar e a natureza. Ganhou o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro em 1921, estudando em Paris e Lisboa. Foi professor da Escola Técnica Nacional e contribuiu para o ensino de cerâmica no Brasil. Sua obra transitou entre a tradição acadêmica e a modernidade. Atualmente, sua arte é preservada em museus e coleções públicas e particulares.
Galdino Guttmann Bicho | Arremate Arte
Galdino Guttmann Bicho nasceu em 23 de novembro de 1888 em Petrópolis e cresceu no Nordeste, entre Penedo e Aracaju, onde se formou um olhar sensível à luz e ao mar. Mudou-se para o Rio de Janeiro, formou-se no Liceu de Artes e Ofícios e estudou na Escola Nacional de Belas Artes com mestres como Zeferino da Costa, Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti.
Trabalhou como assistente do retratista francês August Petit, aprendendo técnicas refinadas de pintura.Nas exposições da ENBA, conquistou prêmios importantes: menções honrosas em 1906 e 1907, pequena medalha de prata em 1912, e em 1921 ganhou o prestigioso Prêmio de Viagem ao Estrangeiro com o painel pontilhista Panneau décoratif.
Estudou na Europa, passou uma temporada em Paris e Lisboa, e voltou ao Brasil em 1924, onde alcançou medalha de ouro no Salão de 1925. Sua obra é rica e variada: destacou-se como retratista, pintor de naturezas-mortas, paisagista com influência impressionista, especialmente com uso de divisionismo (pintura pontilhista). Também se dedicou à cerâmica, criando e ministrando curso na Escola Técnica Nacional do Rio em 1947.
Morou por muitos anos na Ilha do Governador e retratou suas paisagens. Era considerado tecnicamente habilidoso, com uma postura artística ambivalente: moderno e tradicional ao mesmo tempo. Fez retratos de intelectuais como Farias Brito, ilustrações históricas e obras com influências da arte japonesa.
Faleceu no Rio de Janeiro em 9 de julho de 1955.
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Guttmann Bicho | Wikipédia
Galdino Guttmann Bicho (Petrópolis, 23 de novembro de 1888 — Rio de Janeiro, 9 de julho de 1955) foi um pintor brasileiro.
Vida e obra
Guttmann Bicho, nascido em Petrópolis, era filho de pai português e mãe descendente de colonos alemães que imigraram e fixaram residência nesta cidade no século XIX.
Passou a infância em Sergipe, nas cidades de Penedo e Aracaju. Mais tarde veio a residir no Rio de Janeiro, onde iniciou-se artisticamente no Liceu de Artes e Ofícios. Durante vários anos, no início de sua carreira, Guttmann Bicho trabalhou como assistente do retratista francês radicado no Brasil August Petit, com o qual adquiriu uma sólida formação profissional.
Frequentou como aluno livre a Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno de, entre outros, Zeferino da Costa, Belmiro de Almeida, Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti. Nas Exposições Gerais, Guttmann Bicho obteve menção honrosa (1906), pequena medalha de prata (1912) e o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro (1921, com o quadro Panneau decorativo). Na Europa, fixou-se em Paris, mas também passou uma temporada em Lisboa, onde realizou uma exposição particular que obteve excelente repercussão.
De volta ao Brasil em 1924, conheceu um período de relativa consagração, conquistando na Exposição Geral de 1925 a medalha de ouro. Continuaria participando do certame, então com o nome de Salão Nacional de Belas Artes, ainda em 1954, quando recebeu o Prêmio de Viagem pelo Brasil. Embarcou então para o Maranhão, estado que lhe forneceria o tema para suas derradeiras paisagens.
Retratista admirável, foi também autor de naturezas-mortas e numerosas pinturas de paisagem. Nestas últimas, utilizou frequentemente o divisionismo, uma técnica de pintura pontilhista, pela qual Guttmann Bicho é hoje em dia presumivelmente mais lembrado. Foi também, influenciado pelo Impressionismo, e fez uso das pesquisas de luz e sombra deste movimento artístico.
Na Escola Técnica Nacional do Rio de Janeiro, em 1947, passou a ensinar técnicas artísticas em cerâmica. Destacou-se-se entre os artistas de sua época por sua orientação dita conservadora, aos olhos do cânone modernista brasileiro hoje vigente.
Tendo residido na cidade do Rio de Janeiro, na Ilha do Governador, Guttmann pintou aspectos de suas praias e areais.
Guttmann Bicho era cunhado do escritor Agripino Grieco.
Fonte: Wikipédia. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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Exposições
1906 - 13ª Exposição Geral de Belas Artes
1907 - 14ª Exposição Geral de Belas Artes
1910 - 17ª Exposição Geral de Belas Artes
1911 - 18ª Exposição Geral de Belas Artes
1912 - 19ª Exposição Geral de Belas Artes
1913 - 20ª Exposição Geral de Belas Artes
1914 - 21ª Exposição Geral de Belas Artes
1915 - 22ª Exposição Geral de Belas Artes
1916 - 23ª Exposição Geral de Belas Artes
1917 - 24ª Exposição Geral de Belas Artes
1918 - 25ª Exposição Geral de Belas Artes
1920 - 27ª Exposição Geral de Belas Artes
1921 - 28ª Exposição Geral de Belas Artes
1924 - 31ª Exposição Geral de Belas Artes
1924 - 2º Salão da Primavera
1925 - 32ª Exposição Geral de Belas Artes
1926 - 33ª Exposição Geral de Belas Artes
1927 - 34ª Exposição Geral de Belas Artes
1928 - 35ª Exposição Geral de Belas Artes
1929 - 36ª Exposição Geral de Belas Artes
1930 - 37ª Exposição Geral de Belas Artes
1933 - 39ª Exposição Geral de Belas Artes
1934 - 3º Salão do Núcleo Bernardelli
1937 - 5º Salão Paulista de Belas Artes
1944 - 50º Salão Nacional de Belas Artes
1981 - Artistas Brasileiros da Primeira Metade do Século XX
1994 - Bienal Brasil Século XX
2011 - Labirintos da Iconografia
2013 - Retrato POA
2015 - Mater Fecunda a Pinacoteca Aldo Locatelli de 1884 a 1943
2017 - Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira
2018 - O Despertar das Formas - vestígios da modernidade na Pinacoteca Aldo Locatelli
2018 - Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira
2021 - Nossos Artistas Italianos
Fonte: GUTTMANN Bicho. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025. Acesso em: 16 de julho de 2025. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
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Guttmann Bicho | Acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo
Nascido Galdino da Costa Bicho (Petrópolis, RJ, 1888 – Rio de Janeiro, RJ, 1955), Guttmann Bicho adotou como alcunha o apelido que recebera da mãe, por sugestão de Carlos Maúl (1887–1974), escritor, um de seus companheiros no circuito intelectual boêmio do Rio de Janeiro. Natural de Petrópolis, residiu em Sergipe durante a infância, mudando-se, já adulto, para o Rio de Janeiro, então o centro político e cultural do País, onde buscou terreno fértil para suas aspirações artísticas. Iniciou seus estudos no Liceu de Artes e Ofícios e trabalhou, por vários anos, como assistente do retratista francês Auguste Petit (1844–1927). Frequentou também a Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno, entre outros, de João Zeferino da Costa (1840–1915), Eliseu Visconti (1866–1944) e Belmiro de Almeida (1858–1935), as principais influências em sua trajetória inicial.
Recebe, em 1921, o Grande Prêmio de Viagem ao Exterior, com o quadro Panneau Decorativo (atualmente no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro), cena em que uma figura feminina, inspirada em sua esposa, Diva Freire, serve uma mesa de chá. É uma obra que ilustra seu talento singular para enriquecer com carga poética mesmo os temas mais prosaicos do cotidiano, o que pode ser apreciado também na série de pinturas que produziu para o Centro de Assistência Psicossocial (CAPS) Ernesto Nazareth, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, por volta de 1930, em que retrata o trabalho dos colaboradores sanitaristas que combatiam a febre amarela. Na Europa, Guttmann Bicho expôs, com considerável sucesso, em Lisboa. Ao retornar ao Brasil, em 1924, teve um período de significativo reconhecimento, ao conquistar a Medalha de Ouro na Exposição Geral de 1925, e foi o responsável por introduzir o Curso de Cerâmica na Escola Técnica do Rio de Janeiro. Continua participando do Salão Nacional de Belas Artes até que, em 1954, recebe um segundo Prêmio de Viagem, desta vez pelo Brasil, indo ao Maranhão, que passa a ser inspiração de muitas das paisagens que viria a pintar posteriormente.
Na tela Luz e sombra (1925), Bicho representa um banco em uma das ruelas de um parque ou jardim, em que a luz do sol incide filtrada pelas árvores. Ele acreditava que a simplicidade dos temas não interferia no resultado ou impacto final da obra: “O tema é sempre uma cousa acessória e secundária; [...] o mérito de um pintor se manifesta muito mais na qualidade e na maneira da pintura do que nos assumptos escolhidos” (Apud VALLE, 2006). Explicitando as tendências impressionistas de seu trabalho nesse período, privilegiava a complementaridade das cores, utilizando diferentes tons de verdes e azuis, em contraste com vermelhos e rosados, presentes mais obviamente nas copas das árvores e folhas dos arbustos, em lados opostos da tela, e também harmonicamente espalhados por toda a composição, na sombra delicada criada pela luz natural, que é representada em tons claros de lilases e violáceos. As formas são criadas fundamentalmente por pinceladas individuais, sem contornos definidos, e a perspectiva frontal sugere um enquadramento fotográfico, já que a fotografia também influenciava os pintores impressionistas franceses.
Fonte: Acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, publicado em 10 de setembro de 2020. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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Guttmann Bicho | Dezenove vinte
Nascido em Petrópolis, Galdino da Costa (Guttmann) Bicho passou a infância em Sergipe, vindo a residir no Rio de Janeiro, onde iniciou-se artisticamente no Liceu de Artes e Ofícios. Durante vários anos, Bicho trabalhou como assistente do retratista francês radicado no Brasil August Petit, com o qual adquiriu uma sólida formação profissional. Frequentou como aluno livre a Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno de, entre outros, João Zeferino da Costa e Eliseu d’Angelo Visconti. A literatura artística da época registra ter sido Gutmann Bicho um espírito inquieto, polêmico, elemento ativo na vida artística carioca no princípio do século, sobretudo antes do predomínio das tendências modernas.
Nas Exposições Gerais, Bicho obteve menção honrosa (1906), pequena medalha de prata (1912) e o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro (1921, com o quadro Panneau decorativo). Na Europa, fixou-se em Paris, mas também passou uma temporada em Lisboa, onde realizou uma exposição particular que obteve boa repercussão. De volta ao Brasil em 1924, conheceu um período de relativa consagração, conquistando na Exposição Geral de 1925 a medalha de ouro. Continuaria participando do certame - então com o nome de Salão Nacional de Belas Artes – até 1954, quando recebeu o Prêmio de Viagem pelo Brasil, embarcando para o Maranhão, estado que lhe forneceria o tema para suas derradeiras paisagens.
Retratista muito admirado, foi também autor de naturezas-mortas e numerosas pinturas de paisagem; nestas últimas, utilizou frequentemente a técnica divisionista, procedimento pela qual é hoje em dia mais lembrado. Espírito polimorfo, Gutmman Bicho projetou ainda prédios, hospitais e barcos, e foi praticante assíduo da arte da cerâmica, que lecionou em um curso por ele mesmo criado em 1947 na Escola Técnica Nacional do Rio de Janeiro e que foi um importante foco de ensino dessa técnica, então ainda pouco difundida no meio artístico brasileiro.
Fonte: DezenoveVinte. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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Questões semânticas na obra de Guttmann Bicho: uma análise do Panneau Decorativo | DezenoveVinte
Nosso primeiro contato com a obra de Galdino Guttmann Bicho (1888-1955) se deu nas dependências do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) do Rio de Janeiro, ainda no início da década de 1990. Lá se encontrava exposto um de seus mais importantes trabalhos, um quadro a óleo de grandes dimensões chamado Panneau Decorativo, realizado em 1921, e que rendeu ao artista o Prêmio de Viagem ao Exterior da Exposição Geral de Belas Artes daquele ano. O trabalho surpreendeu-nos bastante na ocasião, primeiro por possuir uma singular qualidade evocativa, apesar de apresentar um tema aparentemente banal - uma mulher que põe a mesa de chá em uma varanda; depois, por provir de um pintor que até então ignorávamos completamente.
Algum tempo depois, essas impressões foram renovadas quando tivemos oportunidade de ver todo um ciclo inteiro de pinturas de Guttmann Bicho no Centro Municipal de Saúde Necker Pinto, localizado na Ilha do Governador, cidade do Rio de Janeiro. Novamente, o pintor conseguia extrair de um tema prosaico - desta vez as campanhas de sanitarismo no Rio de finais dos anos 1920 -, efeitos sugestivos e poéticos. Com tudo isso, naturalmente, crescia, também, a nossa curiosidade a respeito da personalidade artística por trás de tais realizações.
Desde então, podemos dizer que já germinavam as duas indagações cujas tentativas de resposta constituíram o cerne da dissertação de Mestrado que elaboramos entre 2000-2002 no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro: Quem foi Guttmann Bicho? Qual a natureza dos recursos compositivos que conferiam às suas obras o seu peculiar caráter evocativo? Algumas das conclusões às quais chegamos no que se refere a essa última pergunta constituem o tema principal do presente texto.
Na busca de fontes que pudessem fornecer maiores informações sobre o pintor e sobre sua obra, logo descobrimos que Guttmann Bicho estava longe de ser um artista completamente desconhecido dos historiadores de arte brasileiros. Aluno livre da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), diversas vezes premiado nos certames oficiais, possuidor de uma personalidade muitas vezes lembrada como marcante, teve destacada atuação nos meios artísticos das primeiras décadas do século XX, especialmente nos do Rio de Janeiro, e foi, além disso, um dos principais promotores da cerâmica artística em nosso país. Bicho é citado em todas as principais obras de referência e dicionários de artistas plásticos brasileiros, embora os verbetes a ele destinados sejam pouco extensos e geralmente repetitivos.
No que se refere às questões estilísticas, que aqui constituem o nosso interesse exclusivo, encontramos Guttmann Bicho estreitamente associado, em sua fortuna crítica, às tendências impressionistas e pontilhistas da arte francesa de fins do século XIX. Nesse sentido, já no início da década de 1940, o crítico Carlos Rubens afirmava: “se ao partir para a Europa se dizia que ele era desprovido de qualquer part-pris de escola, quando regressou e expôs o enquadraram no Impressionismo”. Analogamente, Walmir Ayala destaca o “gosto pela pesquisa de luz” verificado na obra do pintor e João Medeiros fala de sua “nítida influência impressionista”. Carlos Cavalcanti, por sua vez, indica com mais precisão que, já antes de sua viagem à Europa, Bicho “ensaiou intuitivamente a aplicação dos princípios do divisionismo ou da mistura óptica de cores de que Seurat e Signac haviam sido os melhores exemplos nos fins do século passado”.
Essa convergência de juízos da nossa crítica de arte mais ou menos recente deixa transparecer uma tendência a privilegiar, na obra do pintor, os aspectos vinculados ao que se convencionou chamar “pura visibilidade”, isto é, aquele ramo da arte do século XX caracterizado por uma preocupação quase exclusiva com o aspecto visual das obras. No que se refere à pintura, sabemos que a ênfase em uma atitude perceptiva mais direta, desvinculada de esquemas reguladores da representação - como a perspectiva linear, por exemplo -, se encontrava já bastante avançada quando do advento do Impressionismo. Logo, porém, em algumas correntes do início do século XX, a articulação do aspecto puramente visual do quadro ganharia ampla autonomia e não iria se submeter nem sequer às impressões recolhidas da realidade empírica.
Paralelamente, essa autonomia da pintura se afirmaria também com relação às demais artes, especialmente a literatura. Porta-voz típico dessa tendência, o crítico estadunidense Clement Greenberg chega a apontar como característica eminentemente modernista da arte o seu caráter “auto-crítico”, que teria como consequência extrema “eliminar dos efeitos específicos de cada arte todo e qualquer efeito que se pudesse imaginar ter sido tomados dos meios de qualquer outra arte ou obtido por meio deles. Assim cada arte se tornaria 'pura' e nessa 'pureza' iria encontrar a garantia de seus padrões de qualidade bem como de sua independência”.
No caso da pintura europeia das primeiras décadas do século passado, tal esforço “de entrincheiramento em sua área de competência” - para usar uma conhecida expressão de Greenberg -, que era já óbvio na eliminação progressiva do caráter anedótico da pintura levada a cabo com as tendências “realistas” de meados do século XIX, acabaria conduzindo a uma total exclusão de qualquer valor semântico na imagem, como pode ser observado em obras de artistas ligados a “vanguardas” novecentistas como o Construtivismo Russo e De Stijl. Essa pintura “abstrata”, com sua autoproclamada negação dos valores referenciais, pareceria inclusive, a alguns historiadores e críticos de arte posteriores, o ápice da pintura modernista.
9. Como já apontamos, as “pesquisas de luz” de Guttmann Bicho, o seu interesse pelos “efeitos de magnífica intensidade cromática” ou a sua extensa produção no gênero da paisagem, foram normalmente lembrados e citados de modo a inserir sua obra na linha evolutiva dessa “pintura pura”. E essa foi também a maneira mais óbvia de ligá-la à genealogia do modernismo brasileiro. Uma leitura crítica semelhante pode ser verificada com relação a obra de diversos outros artistas mais ou menos vinculados aos meios acadêmicos fluminenses tardo-oitocentistas como Eliseu d’Angelo Visconti e, especialmente, Giovanni Battista Castagneto.
10. Algumas declarações do próprio Guttmann Bicho poderiam mesmo ser utilizadas para embasar tais leituras. Em uma entrevista dada ainda na década de 1910, encontrada em um álbum de recortes do próprio pintor, este afirmava: “O tema é sempre uma cousa acessória e secundária [...] o mérito de um pintor se manifesta muito mais na qualidade e na maneira da pintura do que nos assumptos escolhidos”. E, de fato, uma tendência à exclusiva organização visual do campo do quadro é verificável em várias obras de Bicho, em especial em suas “manchas” de paisagem, obras de dimensões reduzidas e normalmente realizadas ao ar livre, nas quais o motivo é sobretudo um pretexto para um trabalho de pintura onde surge exaltada a tessitura e a vibração cromáticas do quadro.
11. Entretanto, um exame mais atento da produção do pintor serviria para relativizar essa leitura crítica, já que diversas obras de Guttmann Bicho não limitam-se à afirmação do aspecto puramente visual da imagem. Na verdade, como aliás a maioria dos pintores de sua geração, Bicho variava enormemente a configuração de seus trabalhos em função sobretudo da natureza diversa dos temas e das encomendas, executando com desenvoltura desde decorações oficiais e retratos, com suas exigências representativas específicas, até o exercício pictural mais pessoal e livre.
12. Naquilo que aqui nos interessa mais precisamente, podemos observar como, em diversos de seus trabalhos, Guttmann Bicho não negligenciava o elemento semântico da pintura, mas, muito pelo contrário, convertia-o em um fator fundamental para o sentido estético da obra. Sem negar as relações de contiguidade verificáveis entre os objetos na realidade empírica, mas indo além delas, e, simultaneamente, afastando-se do caráter alegórico presente em parte da produção de seus contemporâneos, Bicho fazia um uso do elemento semântico que podemos qualificar de verdadeiramente estrutural.
13. Podemos encontrar indicações teóricas a respeito desse tipo de uso do elemento semântico da arte em alguns postulados de correntes de análise da obra de arte normalmente referidas como “estruturalistas”, especialmente aqueles de função poética e princípio de equivalência, sistematizados por Roman Jakobson em seu artigo “Linguística e Poética” (1960). Tais postulados estavam implícitos no pensamento de outros teóricos desde pelo menos os anos 1930 e eram já então pensados como abrangendo todas as manifestações estéticas, como fica explícito nos escritos de, por exemplo, Jan Mukarovsky.
14. Tal uso estrutural do elemento semântico é fundamental para a obtenção de certos efeitos de sentido frequentes - embora não exclusivamente encontrados - em algumas tendências da pintura europeias, a partir de fins do século XIX. Como lembra Roberto Salvini, paralelamente às correntes da “arte pura” por nós já citadas, “o conteúdo, que era muito difícil de banir totalmente, reaparece sob a forma de uma obscura e mística sensação de mistério, como nos Simbolistas e em Gauguin que teoriza a forma sintética como símbolo do mistério e do infinito”. Tal orientação é ainda mais evidente em algumas “vanguardas” modernas como a pintura metafísica italiana e em certos aspectos da Neue Sachlichkeit alemã, do Dadaísmo e do Surrealismo.
15. Analisando obras desses movimentos, podemos verificar que o seu caráter evocativo encontra-se não raras vezes associado à atualização de algumas relações de sentido específicas, que propomos agrupar em quatro tipos principais: a) Similaridade; b) Incompatibilidade; c) Hiponímia; d) Relações metonímicas. Em linhas gerais, esses são os mesmos tipos de relações estudados pelos semanticistas que procuram descrever a estrutura semântica das línguas naturais. De maneira ainda mais fundamental, essas relações de sentido encontram-se intimamente relacionadas com a própria estrutura daquilo que poderíamos denominar sistema conceitual humano.
16. No presente texto, nos limitaremos a demonstrar, além do uso das equivalências compositivas, a maneira como algumas dessas relações de sentido se encontram atualizadas no já citado Panneau Decorativo de Guttmann Bicho, que, nosso entender, é um bom exemplo do uso estrutural do elemento semântico ao qual acima nos referimos. O Panneau é, provavelmente, uma das obras mais bem sucedidas de toda a carreira de Bicho. Distante dos temas alegóricos ou históricos ainda usualmente associadas à produção de artistas ligados à ENBA, o pintor apresenta-nos uma cena simples e prosaica, onde uma mulher - figura inspirada em sua primeira esposa, Diva Freire -, coloca a mesa de chá em um ambiente pouco demarcado, aparentemente uma varanda de subúrbio, repleta de objetos variados.
17. O quadro, de fatura relativamente contida - apenas na área branca do vestido da mulher pode-se observar um uso mais enfático de empastamento -, apresenta uma aplicação discreta dos princípios pontilhistas, mais perceptível na parede que ocupa a maior parte da metade esquerda da obra e onde pode-se verificar uma vibração cromática de pontos azuis sobre um fundo de cor mais terrosa. Na composição predominam as direções ortogonais e uma divisão em áreas de cor separadas por fortes contrastes de matiz, que não raramente ostentam saturações bastante acentuadas.
18. O principal fator que estabelece uma relação de equivalência entre alguns dos elementos mais destacados do quadro (a mulher, o cachorro, a mesa, a cadeira) é o fato deles partilharem uma mesma orientação espacial, estando todos lateralmente perfilados. Nesse sentido, mesmo as eventuais distorções perspectivas dos móveis são atenuadas de maneira a não contradizer a tendência à lateralidade. Somado ao desenho linear bastante preciso e ao tratamento pictórico controlado, essa lateralidade quase onipresente ajuda a reforçar o sentido de artificialidade do quadro: apesar de tratar-se de uma cena do quotidiano, paira no ar uma estranha sensação de rigidez hierática e de congelamento.
19. O princípio de unificação dos elementos de uma obra através de uma mesma orientação espacial é bastante comum na história da arte. Como exemplos de quadros quase completamente subordinadas a esse princípio compositivo e que mantém com o trabalho de Bicho relações estilísticas e temporais relativamente próximas, poderíamos aqui citar as primeiras grandes composições do francês Georges Seurat, como o quadro Banhistas em Asnières (1883), da National Gallery de Londres, ou o famoso Domingo à Tarde na Ilha do Grand Jatte (1884) , hoje no Art Institute de Chicago. Todavia, é também possível que as referências do pintor brasileiro para seu quadro sejam menos recentes: a lateralidade como princípio compositivo unificador é quase uma norma na arte da pintura e dos relevos escultóricos praticada pelas civilizações antigas, sendo que os egípcios, assírios, gregos, entre outros povos, aplicavam-na frequentemente. Sabemos que a ENBA possuía diversas moldagens de gesso de peças antigas, especialmente greco-romanas, e como Bicho por vezes expressou a sua admiração por estas, é bastante plausível que o tenham influenciado na realização do Panneau Decorativo.
20. Vimos como o estabelecimento de uma mesma orientação espacial - no caso, a lateralidade - instaura um forte fator de similaridade entre elementos semanticamente diversos de uma mesma obra; a relativa sensação de estranheza que esse procedimento provoca deriva em parte do fato de sugerir a existência de uma espécie de “vínculo existencial” entre os objetos que afeta. Todavia, se por um lado a lateralidade serve como fator de similaridade entre elementos de significado referencial mais ou menos díspares (mulher, mesa, etc.), por outro, quando diante de uma verdadeira identidade semântica, como no caso, das duas xícaras colocadas sobre a mesa, Guttmann Bicho utiliza orientações espaciais opostas a fim de criar um contraste visual subjacente: assim, a xícara da esquerda é colocada com a borda para cima e a da direita com a borda para baixo. Esse conjunto de dimensões reduzidas com relação ao todo do quadro, é, no entanto, bastante importante por encontrar-se no centro do mesmo e atuar em certa medida como pivô de toda composição, como veremos mais à frente.
21. Outro tópico a respeito do Panneau que gostaríamos de analisar refere-se às relações metonímicas - mais especificamente às representações da parte pelo todo - nele verificáveis. Como é comum nas imagens visuais fixas, a apresentação da maioria dos elementos no quadro de Bicho não chega a ser integral: os mesmos são sempre mais ou menos “cortados” pelos limites do plano do quadro ou ocultos por sobreposições. No entanto, a maioria de tais elipses (para usarmos um outro termo linguístico) não chega a apresentar efeitos semânticos muito notáveis, como podemos constatar, por exemplo, no caso da mulher ou da mesa, das quais apenas as extremidades inferiores não são mostradas.
22. Um tanto diferente é o caso de dois outros elementos, o cachorro e a cadeira, os quais apresentam “cortes” mais acentuados. Essa primeira equivalência entre os dois elementos é reforçada por outra relativa à disposição espacial dos mesmos que são colocados de forma perfeitamente simétrica com relação ao eixo vertical central do quadro (o cachorro na extremidade inferior direita, a cadeira na extremidade inferior esquerda). Alertados por essas equivalências primárias, podemos então constatar a existência de outras similaridades subjacentes aos dois elementos: em primeiro lugar, tanto o cachorro quanto a cadeira apoiam-se sobre quatro “pernas”; além disso, apresentam dinâmicas visuais um tanto semelhantes, ainda que simetricamente orientadas em relação ao plano do quadro. Assim, graças a um mesmo tipo de operação metonímica, a obra revela-nos as semelhanças morfológicas existentes entre elementos referenciais à primeira vista bastante distintos.
23. Um último e importante fator para a compreensão do Panneau Decorativo que gostaríamos de aqui destacar refere-se à maneira bastante intencional com a qual Guttmann Bicho procura relacionar a ordem categorial dos objetos apresentados e a disposição relativa dos mesmos no plano do quadro. Poderíamos resumir tal fato dizendo que o quadro é dividido em duas partes e em cada uma delas predominam elementos semânticos co-hipônimos. Nesse sentido, a vertical da parede, localizada quase exatamente no centro da pintura, deveria ser entendida como um eixo compositivo básico que separa a obra em duas metades as quais apresentam entre si um contraste semântico fundamental: à direita dessa vertical central, predominam elementos possuidores dos componentes semânticos orgânico/natural - a mulher, o cachorro, as folhas da vegetação, enquanto à esquerda, em oposição, predominam os elementos com os componentes semânticos inorgânico/cultural - a própria parede, a mesa como o aparelho de chá, as lanternas japonesas, etc. Essa oposição semântica é ainda reforçada através de um subtema estritamente visual, o contraste estabelecido entre as modulações de configuração e cor bastante variadas que predominam na vegetação à direita e o tratamento bem mais regular dado à parede à esquerda, com a sua suave e quase uniforme vibração pontilhista.
24. Essa divisão não possui, todavia, um caráter absoluto. Antes, ela estabelece nas duas metades complementares o que poderíamos chamar de duas regências semânticas opositivas, nas quais predominam diferentes ordens categoriais. Essas regências, por sua vez, não são unívocas: à direita, por exemplo, podemos ver um elemento cultural (a cerca), enquanto na área à esquerda, flores e outras plantas introduzem um contraponto semântico equivalente. O fato de várias das plantas à esquerda, colocadas em vasos, possuírem um caráter mais “cultivado” e, inversamente, a cerca à direita possuir um aspecto bastante rústico, parece indicar que o pintor utiliza esses elementos para realizar passagens semânticas: a função de tal artifício é evitar uma separação compositiva que de outro modo tornar-se-ia demasiado rígida. Ele relativiza, não obscurece totalmente a separação entre as duas metades do quadro, que continuam a ser percebidas como semanticamente contrastantes.
25. Nesse contexto, é justamente a figura da mulher que serve de ponte entre as duas metades da obra. Por um lado, ela participa, por sua própria essência, do domínio dos seres naturais à direita do quadro - no entanto, é importante notar que ela parece pouco vinculada à esse domínio, chegando mesmo a dar-lhe as costas. Por outro lado, está vestida com roupas que são semanticamente mais próximas do mundo dos objetos culturais à sua frente, mundo este que é, ele próprio, um índice da atuação humana. Esse papel de mediação aparece eloquentemente expresso no gesto da mulher, que, ordenando o “microcosmo” central da mesa de chá, toca simultaneamente nas flores (um elemento orgânico/natural) e na xícara (um elemento inorgânico/cultural).
26. Se desejarmos, podemos resumir nossa análise com uma interpretação - não isenta de reducionismos - afirmando que Guttmann Bicho nos apresenta no Panneau Decorativo uma espécie de proposição visual na qual o mundo representado é dividido em dois níveis categoriais distintos e contrastantes - um natural e outro cultural -, cada qual com a sua própria identidade e com dignidade e valor equivalentes. Todavia, esses dois níveis, a princípio separados, se interpenetram de uma maneira respeitosa e são inter-relacionados sobretudo pela presença e pela ação do ser humano - no quadro representado pela figura da mulher -, que participa dos dois níveis categoriais distintos que são a base da concepção de mundo expressa pelo pintor nessa obra específica.
27. Gostaríamos de encerrar lembrando que, se no presente texto nos limitamos a demonstrar de que maneira Guttmann Bicho apresenta no quadro analisado um uso eminentemente estrutura do elemento semântico da imagem - do qual podemos encontrar paralelos na articulação de outros elementos da forma -, tal uso não se limita de maneira alguma ao Panneau Decorativo. Diversas outras obras de Bicho apresentam procedimentos análogos, sendo o ciclo de pinturas no Centro Municipal de Saúde Necker Pinto ao qual nos referimos no início do texto talvez a sua realização mais complexa nesse sentido.
28. Por fim, desejaríamos frisar que aqui não fizemos mais do que esboçar alguns aspectos da utilização estrutura do elemento semântico nas imagens estéticas, a qual necessitaria ainda de estudos mais aprofundados. Desde já podemos crer, todavia, que os procedimentos que aqui descrevemos brevemente são bastante frequentes na História da Arte e podem vir a fornecer, no futuro, subsídios importantes para uma compreensão mais adequada de uma grande gama de objetos artísticos nos quais a instância semântica desempenha um papel compositivo fundamental.
Fonte: DezenoveVinte, “Questões semânticas na obra de Guttmann Bicho: uma análise do Panneau Decorativo”, publicado por Arthur Valle, em agosto de 2006. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS Ernesto Nazareth | DezenoveVinte
1. Galdino Guttmann Bicho (1888-1955) é um nome pouco discutido nos círculos da historiografia de arte brasileira. Usualmente lembrado como uma personalidade forte, irreverente e polêmica, Bicho era filho de pai português e mãe descendente de alemães e nasceu na cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro, mas passou quase toda a infância na região Nordeste brasileira, em cidades como Penedo e Aracaju. Durante sua vida - marcada por memoráveis peripécias, das quais não citaremos aqui mais do que algumas passagens -, travou contato estreito com algumas das mais interessantes figuras da intelectualidade brasileira de inícios do século passado e com toda a plêiade de artistas plásticos que dominou a cena artística fluminense, antes do advento do Modernismo.
2. Nesse contexto, a sua atuação polimorfa - além de pintor, foi ceramista, artista gráfico e arquiteto -, teve considerável importância, especialmente durante as primeiras três décadas do século XX. Desde 1906, seus trabalhos já figuravam na Exposição Geral de Belas Artes, então o maior certame artístico do Brasil. Nessa época, ele ainda se apresentava como discípulo de Auguste Petit, retratista francês radicado no Rio de Janeiro na década de 1860 e muito solicitado desde os tempos do Segundo Reinado. Bicho também frequentou o Liceu de Artes e Ofícios e a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), onde foi aluno livre e manteve contato com mestres decisivos para a sua formação, como Belmiro de Almeida e Eliseu Visconti. Nas Exposições Gerais de Belas Artes, recebeu todas as principais premiações, tendo sido a mais importante, sem dúvida, o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, ganho em 1921 por um quadro chamado Panneau Decorativo, que hoje pertence ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Depois de tal consagração, o artista figurou com frequência como membro do júri da Exposição Geral e teve também uma importante atuação como professor, além de expor em diversas capitais brasileiras.
3. De toda essa atividade, hoje pouco se fala. Na nossa historiografia de arte, Guttmann Bicho habita uma espécie de limbo, cujo aspecto nebuloso as breves e repetitivas referências presentes nos dicionários de artistas plásticos brasileiros fazem pouco para aclarar. Nesse ostracismo, Bicho não está só: junto com ele, se encontra toda uma geração de artistas que, oriundos da ENBA e começando a atuar igualmente na passagem para o século XX, foi praticamente esquecida, obliterada por uma imagem exclusivamente retrógrada e repressora da instituição oficial, forjada mormente pela retórica dos defensores do Modernismo, desejosos de se valorizar, por contraste, como renovadores e libertários. A unilateralidade de tal manobra ideológica já há algum tempo vem sendo relativizada, bem como o que há de insustentável na crença em uma ruptura radical nas artes visuais brasileiras, cujo “divisor de águas” seria a Semana de Arte Moderna de 1922. Hoje, parece óbvio que a produção dos artistas ligados a ENBA nas primeiras décadas do século XX possuía grande diversidade e vitalidade e, ao mesmo tempo que manteve os laços com a produção oitocentista, apontou decididamente para concepções renovadoras do fazer pictórico. No momento, porém, ainda escasseiam os estudos aprofundados sobre tal produção, que permanece sendo de difícil acesso para os eventuais interessados.
4. O presente artigo pretende trazer uma contribuição nesse último sentido, através de um estudo de caso bastante circunscrito: analisando um conjunto de pinturas realizadas por Guttmann Bicho por volta de 1930, para o atual Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Ernesto Nazareth, localizado na Ilha do Governador, Estado do Rio de Janeiro, pretendemos apresentar um exemplo da complexidade estrutural que, via de regra, pode ser encontrada na produção de artistas oriundos da ENBA no início do século passado.
5. Tal ciclo de pinturas, que retrata a ações dos sanitaristas no combate ao surto de febre amarela que assolou o Rio de Janeiro em finais dos anos 1920, apresenta algumas características peculiares. Em primeiro lugar, dentro da obra de Guttmann Bicho, é um dos trabalhos da maturidade do artista que decididamente se afasta do tratamento pontilhista, que fora bastante frequente em sua produção desde a década de 1910, e que se intensificara após a sua estadia na França. É importante salientar tal fato, uma vez que muitos comentaristas privilegiaram quase exclusivamente essa tendência pontilhista na obra do artista, com a intenção, mais ou menos manifesta e nada inocente, de recuperá-lo como uma espécie de “precursor” das tendências modernistas ligadas à afirmação da pura visibilidade pictórica. A obra de Bicho, todavia, não comporta uma tal redução. Nesse sentido, o ciclo de pinturas que analisaremos é um excelente exemplo da maneira como Guttmann Bicho manipulava o aspecto semântico da imagem como elemento fundamental para a estruturação de suas obras.
6. Em segundo lugar, se nas pinturas do posto de saúde Bicho afasta-se da “tentação” abstracionista, por outro lado ele nega, simultaneamente, o caráter alegórico que caracteriza boa parte de pintura decorativa realizada por seus contemporâneos de geração. Bastaria lembrar aqui das decorações para as duas grandes sedes do poder legislativo construídas na então Capital Federal durante os anos 1920 - os atuais Palácio Tiradentes e Palácio Pedro Ernesto -, assinadas por nomes como Lucílio de Albuquerque, João Timotheo da Costa e os irmãos Rodolpho e Carlos Chambelland, repletas de figurações alegóricas e/ou retratando em chave heroicizante personagens e passagens da história brasileira, para nos darmos conta da singularidade das pinturas de Bicho, cujo caráter é bem mais prosaico e sóbrio. Essa divergência é um indicador das particularidades da orientação estética de Bicho e também daquela diversidade da produção pictórica da época, acima aludida. Cremos que a particularidade da obra se deve, igualmente, às condições bastante singulares que envolveram a sua concepção e realização, e às quais gostaríamos de nos referir no que se segue.
7. O CAPS Ernesto Nazareth localiza-se na atual Avenida Paranapuan, número 435, na Freguesia, bairro da Ilha do Governador. Pela ausência de documentação, vários detalhes de sua história são ainda obscuros e demandam maiores investigações. Sabemos que o prédio de dois andares, cuja construção teria alcançado seu término às vésperas da Revolução de 1930, funcionou inicialmente como um centro de saúde - tido como o primeiro da região -, assumindo posteriormente diversas funções: além de servir como posto de vacinação, abrigou originalmente um lactário, e, nas suas mais de sete décadas de atuação, lá funcionaram serviços de pneumologia sanitária, dermatologia, fonoaudiologia, entre outros. Em meados da década de 1990, foi instalado no posto um centro de atendimento destinado ao tratamento de pacientes portadores de distúrbios psicológicos. As fontes disponíveis reiteradamente afirmam, ainda, que a ação de Guttmann Bicho foi fundamental na idealização do prédio.
8. É o que testemunha, por exemplo, o médico Phocion Serpa, que na época da fundação do posto chefiava o Serviço de Saneamento Rural do Estado do Rio de Janeiro e era amigo de Bicho - este, inclusive, retratou Serpa em quadros que figuraram nas Exposições Gerais de 1929 e 1930. Em um texto publicado no Jornal do Commercio, por ocasião da morte de Bicho, em 1955, Serpa recorda que, no final dos anos 1920, o Rio de Janeiro fora assolado por um surto de febre amarela que alarmou as autoridades sanitárias. Assim que a doença se alastrou para Ilha do Governador, Guttmann Bicho - sempre lembrado por seus ideais comunitários e como ferrenho defensor das riquezas naturais da localidade -, se apresentou voluntariamente para trabalhar como “mata-mosquito”, como eram popularmente conhecidos os sanitaristas dedicados à função de eliminar os insetos transmissores da doença. Nesse sentido, sua atuação teria também sido importante, contribuindo para a resolução de conflitos que frequentemente surgiam entre os funcionários da saúde pública e os habitantes locais, submetidos à pressão de uma rigorosa vigilância sanitária. Depois que a doença foi controlada, seria novamente Bicho quem teria a ideia de aproveitar um terreno que fora transferido à Saúde Pública para a construção de um posto de saúde. Como afirma Serpa, “o edifício que se ergueu no local, só se tem, graças ao entusiasmo de Guttmann Bicho, que se desdobrou em mestre de obras, desenhando a planta, em operário, preparando o terreno, furando os cafofos, britando e alinhando pedras, transportando tijolos, amassando e carregando o barro [...] o artista pintou a óleo e ornamentou as paredes do edifício.”
9. Para a decoração do CAPS Ernesto Nazareth, Guttmann Bicho realizou ao todo onze telas: duas delas encontram-se no andar superior e retratam cenas de aleitamento, recordando uma das funções originais do posto de saúde. As outras nove encontram-se no hall de entrada do andar térreo. As pinturas foram realizadas a óleo sobre telas coladas diretamente nas paredes do posto de saúde, seguindo o então usual método do marouflage. Atualmente, o estado de conservação do conjunto é precário: no final da década de 1980, após uma campanha promovida pelas entidades culturais da Ilha do Governador, as pinturas foram tombadas na categoria de bem público municipal, mas seus trabalhos de restauração, até o momento da escrita do presente texto, não foram iniciados.
10. Como pode ser intuído pelas plantas e elevações do Esquema 1, as pinturas do andar térreo cobrem toda a extensão das paredes do lado direito e esquerdo do hall de entrada, começando a partir de cerca de 1,50 metros do chão, sendo limitadas, na parte inferior, por um friso em argamassa decorado com motivos florais e, na parte superior, pelo próprio teto do hall. As pinturas contornam, inclusive, os vãos das portas que dão acesso a consultórios laterais e que individualizam, grosso modo, nove quadros independentes, cada um dos quais apresentando uma cena diferente. Temos, dessa maneira, quatro quadros na parede direita, enquanto na esquerda estão localizados os outros cinco.
Fonte: DezenoveVinte, “O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS Ernesto Nazareth” publicado por Arthur Valle, em 1 de janeiro de 2007. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
Crédito fotográfico: DezenoveVinte. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
Galdino Guttmann Bicho (23 de novembro de 1888, Petrópolis, Brasil — 9 de julho de 1955, Rio de Janeiro, Brasil), mais conhecido como Guttmann Bicho, foi um pintor, ceramista e professor brasileiro. Formou-se no Liceu de Artes e Ofícios e na Escola Nacional de Belas Artes, onde teve aulas com mestres como Zeferino da Costa, Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti. Influenciado pelo impressionismo e pelo divisionismo, destacou-se como retratista e paisagista, com obras que exploravam a luz, o mar e a natureza. Ganhou o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro em 1921, estudando em Paris e Lisboa. Foi professor da Escola Técnica Nacional e contribuiu para o ensino de cerâmica no Brasil. Sua obra transitou entre a tradição acadêmica e a modernidade. Atualmente, sua arte é preservada em museus e coleções públicas e particulares.
Galdino Guttmann Bicho | Arremate Arte
Galdino Guttmann Bicho nasceu em 23 de novembro de 1888 em Petrópolis e cresceu no Nordeste, entre Penedo e Aracaju, onde se formou um olhar sensível à luz e ao mar. Mudou-se para o Rio de Janeiro, formou-se no Liceu de Artes e Ofícios e estudou na Escola Nacional de Belas Artes com mestres como Zeferino da Costa, Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti.
Trabalhou como assistente do retratista francês August Petit, aprendendo técnicas refinadas de pintura.Nas exposições da ENBA, conquistou prêmios importantes: menções honrosas em 1906 e 1907, pequena medalha de prata em 1912, e em 1921 ganhou o prestigioso Prêmio de Viagem ao Estrangeiro com o painel pontilhista Panneau décoratif.
Estudou na Europa, passou uma temporada em Paris e Lisboa, e voltou ao Brasil em 1924, onde alcançou medalha de ouro no Salão de 1925. Sua obra é rica e variada: destacou-se como retratista, pintor de naturezas-mortas, paisagista com influência impressionista, especialmente com uso de divisionismo (pintura pontilhista). Também se dedicou à cerâmica, criando e ministrando curso na Escola Técnica Nacional do Rio em 1947.
Morou por muitos anos na Ilha do Governador e retratou suas paisagens. Era considerado tecnicamente habilidoso, com uma postura artística ambivalente: moderno e tradicional ao mesmo tempo. Fez retratos de intelectuais como Farias Brito, ilustrações históricas e obras com influências da arte japonesa.
Faleceu no Rio de Janeiro em 9 de julho de 1955.
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Guttmann Bicho | Wikipédia
Galdino Guttmann Bicho (Petrópolis, 23 de novembro de 1888 — Rio de Janeiro, 9 de julho de 1955) foi um pintor brasileiro.
Vida e obra
Guttmann Bicho, nascido em Petrópolis, era filho de pai português e mãe descendente de colonos alemães que imigraram e fixaram residência nesta cidade no século XIX.
Passou a infância em Sergipe, nas cidades de Penedo e Aracaju. Mais tarde veio a residir no Rio de Janeiro, onde iniciou-se artisticamente no Liceu de Artes e Ofícios. Durante vários anos, no início de sua carreira, Guttmann Bicho trabalhou como assistente do retratista francês radicado no Brasil August Petit, com o qual adquiriu uma sólida formação profissional.
Frequentou como aluno livre a Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno de, entre outros, Zeferino da Costa, Belmiro de Almeida, Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti. Nas Exposições Gerais, Guttmann Bicho obteve menção honrosa (1906), pequena medalha de prata (1912) e o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro (1921, com o quadro Panneau decorativo). Na Europa, fixou-se em Paris, mas também passou uma temporada em Lisboa, onde realizou uma exposição particular que obteve excelente repercussão.
De volta ao Brasil em 1924, conheceu um período de relativa consagração, conquistando na Exposição Geral de 1925 a medalha de ouro. Continuaria participando do certame, então com o nome de Salão Nacional de Belas Artes, ainda em 1954, quando recebeu o Prêmio de Viagem pelo Brasil. Embarcou então para o Maranhão, estado que lhe forneceria o tema para suas derradeiras paisagens.
Retratista admirável, foi também autor de naturezas-mortas e numerosas pinturas de paisagem. Nestas últimas, utilizou frequentemente o divisionismo, uma técnica de pintura pontilhista, pela qual Guttmann Bicho é hoje em dia presumivelmente mais lembrado. Foi também, influenciado pelo Impressionismo, e fez uso das pesquisas de luz e sombra deste movimento artístico.
Na Escola Técnica Nacional do Rio de Janeiro, em 1947, passou a ensinar técnicas artísticas em cerâmica. Destacou-se-se entre os artistas de sua época por sua orientação dita conservadora, aos olhos do cânone modernista brasileiro hoje vigente.
Tendo residido na cidade do Rio de Janeiro, na Ilha do Governador, Guttmann pintou aspectos de suas praias e areais.
Guttmann Bicho era cunhado do escritor Agripino Grieco.
Fonte: Wikipédia. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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Exposições
1906 - 13ª Exposição Geral de Belas Artes
1907 - 14ª Exposição Geral de Belas Artes
1910 - 17ª Exposição Geral de Belas Artes
1911 - 18ª Exposição Geral de Belas Artes
1912 - 19ª Exposição Geral de Belas Artes
1913 - 20ª Exposição Geral de Belas Artes
1914 - 21ª Exposição Geral de Belas Artes
1915 - 22ª Exposição Geral de Belas Artes
1916 - 23ª Exposição Geral de Belas Artes
1917 - 24ª Exposição Geral de Belas Artes
1918 - 25ª Exposição Geral de Belas Artes
1920 - 27ª Exposição Geral de Belas Artes
1921 - 28ª Exposição Geral de Belas Artes
1924 - 31ª Exposição Geral de Belas Artes
1924 - 2º Salão da Primavera
1925 - 32ª Exposição Geral de Belas Artes
1926 - 33ª Exposição Geral de Belas Artes
1927 - 34ª Exposição Geral de Belas Artes
1928 - 35ª Exposição Geral de Belas Artes
1929 - 36ª Exposição Geral de Belas Artes
1930 - 37ª Exposição Geral de Belas Artes
1933 - 39ª Exposição Geral de Belas Artes
1934 - 3º Salão do Núcleo Bernardelli
1937 - 5º Salão Paulista de Belas Artes
1944 - 50º Salão Nacional de Belas Artes
1981 - Artistas Brasileiros da Primeira Metade do Século XX
1994 - Bienal Brasil Século XX
2011 - Labirintos da Iconografia
2013 - Retrato POA
2015 - Mater Fecunda a Pinacoteca Aldo Locatelli de 1884 a 1943
2017 - Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira
2018 - O Despertar das Formas - vestígios da modernidade na Pinacoteca Aldo Locatelli
2018 - Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira
2021 - Nossos Artistas Italianos
Fonte: GUTTMANN Bicho. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025. Acesso em: 16 de julho de 2025. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
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Guttmann Bicho | Acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo
Nascido Galdino da Costa Bicho (Petrópolis, RJ, 1888 – Rio de Janeiro, RJ, 1955), Guttmann Bicho adotou como alcunha o apelido que recebera da mãe, por sugestão de Carlos Maúl (1887–1974), escritor, um de seus companheiros no circuito intelectual boêmio do Rio de Janeiro. Natural de Petrópolis, residiu em Sergipe durante a infância, mudando-se, já adulto, para o Rio de Janeiro, então o centro político e cultural do País, onde buscou terreno fértil para suas aspirações artísticas. Iniciou seus estudos no Liceu de Artes e Ofícios e trabalhou, por vários anos, como assistente do retratista francês Auguste Petit (1844–1927). Frequentou também a Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno, entre outros, de João Zeferino da Costa (1840–1915), Eliseu Visconti (1866–1944) e Belmiro de Almeida (1858–1935), as principais influências em sua trajetória inicial.
Recebe, em 1921, o Grande Prêmio de Viagem ao Exterior, com o quadro Panneau Decorativo (atualmente no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro), cena em que uma figura feminina, inspirada em sua esposa, Diva Freire, serve uma mesa de chá. É uma obra que ilustra seu talento singular para enriquecer com carga poética mesmo os temas mais prosaicos do cotidiano, o que pode ser apreciado também na série de pinturas que produziu para o Centro de Assistência Psicossocial (CAPS) Ernesto Nazareth, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, por volta de 1930, em que retrata o trabalho dos colaboradores sanitaristas que combatiam a febre amarela. Na Europa, Guttmann Bicho expôs, com considerável sucesso, em Lisboa. Ao retornar ao Brasil, em 1924, teve um período de significativo reconhecimento, ao conquistar a Medalha de Ouro na Exposição Geral de 1925, e foi o responsável por introduzir o Curso de Cerâmica na Escola Técnica do Rio de Janeiro. Continua participando do Salão Nacional de Belas Artes até que, em 1954, recebe um segundo Prêmio de Viagem, desta vez pelo Brasil, indo ao Maranhão, que passa a ser inspiração de muitas das paisagens que viria a pintar posteriormente.
Na tela Luz e sombra (1925), Bicho representa um banco em uma das ruelas de um parque ou jardim, em que a luz do sol incide filtrada pelas árvores. Ele acreditava que a simplicidade dos temas não interferia no resultado ou impacto final da obra: “O tema é sempre uma cousa acessória e secundária; [...] o mérito de um pintor se manifesta muito mais na qualidade e na maneira da pintura do que nos assumptos escolhidos” (Apud VALLE, 2006). Explicitando as tendências impressionistas de seu trabalho nesse período, privilegiava a complementaridade das cores, utilizando diferentes tons de verdes e azuis, em contraste com vermelhos e rosados, presentes mais obviamente nas copas das árvores e folhas dos arbustos, em lados opostos da tela, e também harmonicamente espalhados por toda a composição, na sombra delicada criada pela luz natural, que é representada em tons claros de lilases e violáceos. As formas são criadas fundamentalmente por pinceladas individuais, sem contornos definidos, e a perspectiva frontal sugere um enquadramento fotográfico, já que a fotografia também influenciava os pintores impressionistas franceses.
Fonte: Acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, publicado em 10 de setembro de 2020. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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Guttmann Bicho | Dezenove vinte
Nascido em Petrópolis, Galdino da Costa (Guttmann) Bicho passou a infância em Sergipe, vindo a residir no Rio de Janeiro, onde iniciou-se artisticamente no Liceu de Artes e Ofícios. Durante vários anos, Bicho trabalhou como assistente do retratista francês radicado no Brasil August Petit, com o qual adquiriu uma sólida formação profissional. Frequentou como aluno livre a Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno de, entre outros, João Zeferino da Costa e Eliseu d’Angelo Visconti. A literatura artística da época registra ter sido Gutmann Bicho um espírito inquieto, polêmico, elemento ativo na vida artística carioca no princípio do século, sobretudo antes do predomínio das tendências modernas.
Nas Exposições Gerais, Bicho obteve menção honrosa (1906), pequena medalha de prata (1912) e o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro (1921, com o quadro Panneau decorativo). Na Europa, fixou-se em Paris, mas também passou uma temporada em Lisboa, onde realizou uma exposição particular que obteve boa repercussão. De volta ao Brasil em 1924, conheceu um período de relativa consagração, conquistando na Exposição Geral de 1925 a medalha de ouro. Continuaria participando do certame - então com o nome de Salão Nacional de Belas Artes – até 1954, quando recebeu o Prêmio de Viagem pelo Brasil, embarcando para o Maranhão, estado que lhe forneceria o tema para suas derradeiras paisagens.
Retratista muito admirado, foi também autor de naturezas-mortas e numerosas pinturas de paisagem; nestas últimas, utilizou frequentemente a técnica divisionista, procedimento pela qual é hoje em dia mais lembrado. Espírito polimorfo, Gutmman Bicho projetou ainda prédios, hospitais e barcos, e foi praticante assíduo da arte da cerâmica, que lecionou em um curso por ele mesmo criado em 1947 na Escola Técnica Nacional do Rio de Janeiro e que foi um importante foco de ensino dessa técnica, então ainda pouco difundida no meio artístico brasileiro.
Fonte: DezenoveVinte. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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Questões semânticas na obra de Guttmann Bicho: uma análise do Panneau Decorativo | DezenoveVinte
Nosso primeiro contato com a obra de Galdino Guttmann Bicho (1888-1955) se deu nas dependências do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) do Rio de Janeiro, ainda no início da década de 1990. Lá se encontrava exposto um de seus mais importantes trabalhos, um quadro a óleo de grandes dimensões chamado Panneau Decorativo, realizado em 1921, e que rendeu ao artista o Prêmio de Viagem ao Exterior da Exposição Geral de Belas Artes daquele ano. O trabalho surpreendeu-nos bastante na ocasião, primeiro por possuir uma singular qualidade evocativa, apesar de apresentar um tema aparentemente banal - uma mulher que põe a mesa de chá em uma varanda; depois, por provir de um pintor que até então ignorávamos completamente.
Algum tempo depois, essas impressões foram renovadas quando tivemos oportunidade de ver todo um ciclo inteiro de pinturas de Guttmann Bicho no Centro Municipal de Saúde Necker Pinto, localizado na Ilha do Governador, cidade do Rio de Janeiro. Novamente, o pintor conseguia extrair de um tema prosaico - desta vez as campanhas de sanitarismo no Rio de finais dos anos 1920 -, efeitos sugestivos e poéticos. Com tudo isso, naturalmente, crescia, também, a nossa curiosidade a respeito da personalidade artística por trás de tais realizações.
Desde então, podemos dizer que já germinavam as duas indagações cujas tentativas de resposta constituíram o cerne da dissertação de Mestrado que elaboramos entre 2000-2002 no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro: Quem foi Guttmann Bicho? Qual a natureza dos recursos compositivos que conferiam às suas obras o seu peculiar caráter evocativo? Algumas das conclusões às quais chegamos no que se refere a essa última pergunta constituem o tema principal do presente texto.
Na busca de fontes que pudessem fornecer maiores informações sobre o pintor e sobre sua obra, logo descobrimos que Guttmann Bicho estava longe de ser um artista completamente desconhecido dos historiadores de arte brasileiros. Aluno livre da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), diversas vezes premiado nos certames oficiais, possuidor de uma personalidade muitas vezes lembrada como marcante, teve destacada atuação nos meios artísticos das primeiras décadas do século XX, especialmente nos do Rio de Janeiro, e foi, além disso, um dos principais promotores da cerâmica artística em nosso país. Bicho é citado em todas as principais obras de referência e dicionários de artistas plásticos brasileiros, embora os verbetes a ele destinados sejam pouco extensos e geralmente repetitivos.
No que se refere às questões estilísticas, que aqui constituem o nosso interesse exclusivo, encontramos Guttmann Bicho estreitamente associado, em sua fortuna crítica, às tendências impressionistas e pontilhistas da arte francesa de fins do século XIX. Nesse sentido, já no início da década de 1940, o crítico Carlos Rubens afirmava: “se ao partir para a Europa se dizia que ele era desprovido de qualquer part-pris de escola, quando regressou e expôs o enquadraram no Impressionismo”. Analogamente, Walmir Ayala destaca o “gosto pela pesquisa de luz” verificado na obra do pintor e João Medeiros fala de sua “nítida influência impressionista”. Carlos Cavalcanti, por sua vez, indica com mais precisão que, já antes de sua viagem à Europa, Bicho “ensaiou intuitivamente a aplicação dos princípios do divisionismo ou da mistura óptica de cores de que Seurat e Signac haviam sido os melhores exemplos nos fins do século passado”.
Essa convergência de juízos da nossa crítica de arte mais ou menos recente deixa transparecer uma tendência a privilegiar, na obra do pintor, os aspectos vinculados ao que se convencionou chamar “pura visibilidade”, isto é, aquele ramo da arte do século XX caracterizado por uma preocupação quase exclusiva com o aspecto visual das obras. No que se refere à pintura, sabemos que a ênfase em uma atitude perceptiva mais direta, desvinculada de esquemas reguladores da representação - como a perspectiva linear, por exemplo -, se encontrava já bastante avançada quando do advento do Impressionismo. Logo, porém, em algumas correntes do início do século XX, a articulação do aspecto puramente visual do quadro ganharia ampla autonomia e não iria se submeter nem sequer às impressões recolhidas da realidade empírica.
Paralelamente, essa autonomia da pintura se afirmaria também com relação às demais artes, especialmente a literatura. Porta-voz típico dessa tendência, o crítico estadunidense Clement Greenberg chega a apontar como característica eminentemente modernista da arte o seu caráter “auto-crítico”, que teria como consequência extrema “eliminar dos efeitos específicos de cada arte todo e qualquer efeito que se pudesse imaginar ter sido tomados dos meios de qualquer outra arte ou obtido por meio deles. Assim cada arte se tornaria 'pura' e nessa 'pureza' iria encontrar a garantia de seus padrões de qualidade bem como de sua independência”.
No caso da pintura europeia das primeiras décadas do século passado, tal esforço “de entrincheiramento em sua área de competência” - para usar uma conhecida expressão de Greenberg -, que era já óbvio na eliminação progressiva do caráter anedótico da pintura levada a cabo com as tendências “realistas” de meados do século XIX, acabaria conduzindo a uma total exclusão de qualquer valor semântico na imagem, como pode ser observado em obras de artistas ligados a “vanguardas” novecentistas como o Construtivismo Russo e De Stijl. Essa pintura “abstrata”, com sua autoproclamada negação dos valores referenciais, pareceria inclusive, a alguns historiadores e críticos de arte posteriores, o ápice da pintura modernista.
9. Como já apontamos, as “pesquisas de luz” de Guttmann Bicho, o seu interesse pelos “efeitos de magnífica intensidade cromática” ou a sua extensa produção no gênero da paisagem, foram normalmente lembrados e citados de modo a inserir sua obra na linha evolutiva dessa “pintura pura”. E essa foi também a maneira mais óbvia de ligá-la à genealogia do modernismo brasileiro. Uma leitura crítica semelhante pode ser verificada com relação a obra de diversos outros artistas mais ou menos vinculados aos meios acadêmicos fluminenses tardo-oitocentistas como Eliseu d’Angelo Visconti e, especialmente, Giovanni Battista Castagneto.
10. Algumas declarações do próprio Guttmann Bicho poderiam mesmo ser utilizadas para embasar tais leituras. Em uma entrevista dada ainda na década de 1910, encontrada em um álbum de recortes do próprio pintor, este afirmava: “O tema é sempre uma cousa acessória e secundária [...] o mérito de um pintor se manifesta muito mais na qualidade e na maneira da pintura do que nos assumptos escolhidos”. E, de fato, uma tendência à exclusiva organização visual do campo do quadro é verificável em várias obras de Bicho, em especial em suas “manchas” de paisagem, obras de dimensões reduzidas e normalmente realizadas ao ar livre, nas quais o motivo é sobretudo um pretexto para um trabalho de pintura onde surge exaltada a tessitura e a vibração cromáticas do quadro.
11. Entretanto, um exame mais atento da produção do pintor serviria para relativizar essa leitura crítica, já que diversas obras de Guttmann Bicho não limitam-se à afirmação do aspecto puramente visual da imagem. Na verdade, como aliás a maioria dos pintores de sua geração, Bicho variava enormemente a configuração de seus trabalhos em função sobretudo da natureza diversa dos temas e das encomendas, executando com desenvoltura desde decorações oficiais e retratos, com suas exigências representativas específicas, até o exercício pictural mais pessoal e livre.
12. Naquilo que aqui nos interessa mais precisamente, podemos observar como, em diversos de seus trabalhos, Guttmann Bicho não negligenciava o elemento semântico da pintura, mas, muito pelo contrário, convertia-o em um fator fundamental para o sentido estético da obra. Sem negar as relações de contiguidade verificáveis entre os objetos na realidade empírica, mas indo além delas, e, simultaneamente, afastando-se do caráter alegórico presente em parte da produção de seus contemporâneos, Bicho fazia um uso do elemento semântico que podemos qualificar de verdadeiramente estrutural.
13. Podemos encontrar indicações teóricas a respeito desse tipo de uso do elemento semântico da arte em alguns postulados de correntes de análise da obra de arte normalmente referidas como “estruturalistas”, especialmente aqueles de função poética e princípio de equivalência, sistematizados por Roman Jakobson em seu artigo “Linguística e Poética” (1960). Tais postulados estavam implícitos no pensamento de outros teóricos desde pelo menos os anos 1930 e eram já então pensados como abrangendo todas as manifestações estéticas, como fica explícito nos escritos de, por exemplo, Jan Mukarovsky.
14. Tal uso estrutural do elemento semântico é fundamental para a obtenção de certos efeitos de sentido frequentes - embora não exclusivamente encontrados - em algumas tendências da pintura europeias, a partir de fins do século XIX. Como lembra Roberto Salvini, paralelamente às correntes da “arte pura” por nós já citadas, “o conteúdo, que era muito difícil de banir totalmente, reaparece sob a forma de uma obscura e mística sensação de mistério, como nos Simbolistas e em Gauguin que teoriza a forma sintética como símbolo do mistério e do infinito”. Tal orientação é ainda mais evidente em algumas “vanguardas” modernas como a pintura metafísica italiana e em certos aspectos da Neue Sachlichkeit alemã, do Dadaísmo e do Surrealismo.
15. Analisando obras desses movimentos, podemos verificar que o seu caráter evocativo encontra-se não raras vezes associado à atualização de algumas relações de sentido específicas, que propomos agrupar em quatro tipos principais: a) Similaridade; b) Incompatibilidade; c) Hiponímia; d) Relações metonímicas. Em linhas gerais, esses são os mesmos tipos de relações estudados pelos semanticistas que procuram descrever a estrutura semântica das línguas naturais. De maneira ainda mais fundamental, essas relações de sentido encontram-se intimamente relacionadas com a própria estrutura daquilo que poderíamos denominar sistema conceitual humano.
16. No presente texto, nos limitaremos a demonstrar, além do uso das equivalências compositivas, a maneira como algumas dessas relações de sentido se encontram atualizadas no já citado Panneau Decorativo de Guttmann Bicho, que, nosso entender, é um bom exemplo do uso estrutural do elemento semântico ao qual acima nos referimos. O Panneau é, provavelmente, uma das obras mais bem sucedidas de toda a carreira de Bicho. Distante dos temas alegóricos ou históricos ainda usualmente associadas à produção de artistas ligados à ENBA, o pintor apresenta-nos uma cena simples e prosaica, onde uma mulher - figura inspirada em sua primeira esposa, Diva Freire -, coloca a mesa de chá em um ambiente pouco demarcado, aparentemente uma varanda de subúrbio, repleta de objetos variados.
17. O quadro, de fatura relativamente contida - apenas na área branca do vestido da mulher pode-se observar um uso mais enfático de empastamento -, apresenta uma aplicação discreta dos princípios pontilhistas, mais perceptível na parede que ocupa a maior parte da metade esquerda da obra e onde pode-se verificar uma vibração cromática de pontos azuis sobre um fundo de cor mais terrosa. Na composição predominam as direções ortogonais e uma divisão em áreas de cor separadas por fortes contrastes de matiz, que não raramente ostentam saturações bastante acentuadas.
18. O principal fator que estabelece uma relação de equivalência entre alguns dos elementos mais destacados do quadro (a mulher, o cachorro, a mesa, a cadeira) é o fato deles partilharem uma mesma orientação espacial, estando todos lateralmente perfilados. Nesse sentido, mesmo as eventuais distorções perspectivas dos móveis são atenuadas de maneira a não contradizer a tendência à lateralidade. Somado ao desenho linear bastante preciso e ao tratamento pictórico controlado, essa lateralidade quase onipresente ajuda a reforçar o sentido de artificialidade do quadro: apesar de tratar-se de uma cena do quotidiano, paira no ar uma estranha sensação de rigidez hierática e de congelamento.
19. O princípio de unificação dos elementos de uma obra através de uma mesma orientação espacial é bastante comum na história da arte. Como exemplos de quadros quase completamente subordinadas a esse princípio compositivo e que mantém com o trabalho de Bicho relações estilísticas e temporais relativamente próximas, poderíamos aqui citar as primeiras grandes composições do francês Georges Seurat, como o quadro Banhistas em Asnières (1883), da National Gallery de Londres, ou o famoso Domingo à Tarde na Ilha do Grand Jatte (1884) , hoje no Art Institute de Chicago. Todavia, é também possível que as referências do pintor brasileiro para seu quadro sejam menos recentes: a lateralidade como princípio compositivo unificador é quase uma norma na arte da pintura e dos relevos escultóricos praticada pelas civilizações antigas, sendo que os egípcios, assírios, gregos, entre outros povos, aplicavam-na frequentemente. Sabemos que a ENBA possuía diversas moldagens de gesso de peças antigas, especialmente greco-romanas, e como Bicho por vezes expressou a sua admiração por estas, é bastante plausível que o tenham influenciado na realização do Panneau Decorativo.
20. Vimos como o estabelecimento de uma mesma orientação espacial - no caso, a lateralidade - instaura um forte fator de similaridade entre elementos semanticamente diversos de uma mesma obra; a relativa sensação de estranheza que esse procedimento provoca deriva em parte do fato de sugerir a existência de uma espécie de “vínculo existencial” entre os objetos que afeta. Todavia, se por um lado a lateralidade serve como fator de similaridade entre elementos de significado referencial mais ou menos díspares (mulher, mesa, etc.), por outro, quando diante de uma verdadeira identidade semântica, como no caso, das duas xícaras colocadas sobre a mesa, Guttmann Bicho utiliza orientações espaciais opostas a fim de criar um contraste visual subjacente: assim, a xícara da esquerda é colocada com a borda para cima e a da direita com a borda para baixo. Esse conjunto de dimensões reduzidas com relação ao todo do quadro, é, no entanto, bastante importante por encontrar-se no centro do mesmo e atuar em certa medida como pivô de toda composição, como veremos mais à frente.
21. Outro tópico a respeito do Panneau que gostaríamos de analisar refere-se às relações metonímicas - mais especificamente às representações da parte pelo todo - nele verificáveis. Como é comum nas imagens visuais fixas, a apresentação da maioria dos elementos no quadro de Bicho não chega a ser integral: os mesmos são sempre mais ou menos “cortados” pelos limites do plano do quadro ou ocultos por sobreposições. No entanto, a maioria de tais elipses (para usarmos um outro termo linguístico) não chega a apresentar efeitos semânticos muito notáveis, como podemos constatar, por exemplo, no caso da mulher ou da mesa, das quais apenas as extremidades inferiores não são mostradas.
22. Um tanto diferente é o caso de dois outros elementos, o cachorro e a cadeira, os quais apresentam “cortes” mais acentuados. Essa primeira equivalência entre os dois elementos é reforçada por outra relativa à disposição espacial dos mesmos que são colocados de forma perfeitamente simétrica com relação ao eixo vertical central do quadro (o cachorro na extremidade inferior direita, a cadeira na extremidade inferior esquerda). Alertados por essas equivalências primárias, podemos então constatar a existência de outras similaridades subjacentes aos dois elementos: em primeiro lugar, tanto o cachorro quanto a cadeira apoiam-se sobre quatro “pernas”; além disso, apresentam dinâmicas visuais um tanto semelhantes, ainda que simetricamente orientadas em relação ao plano do quadro. Assim, graças a um mesmo tipo de operação metonímica, a obra revela-nos as semelhanças morfológicas existentes entre elementos referenciais à primeira vista bastante distintos.
23. Um último e importante fator para a compreensão do Panneau Decorativo que gostaríamos de aqui destacar refere-se à maneira bastante intencional com a qual Guttmann Bicho procura relacionar a ordem categorial dos objetos apresentados e a disposição relativa dos mesmos no plano do quadro. Poderíamos resumir tal fato dizendo que o quadro é dividido em duas partes e em cada uma delas predominam elementos semânticos co-hipônimos. Nesse sentido, a vertical da parede, localizada quase exatamente no centro da pintura, deveria ser entendida como um eixo compositivo básico que separa a obra em duas metades as quais apresentam entre si um contraste semântico fundamental: à direita dessa vertical central, predominam elementos possuidores dos componentes semânticos orgânico/natural - a mulher, o cachorro, as folhas da vegetação, enquanto à esquerda, em oposição, predominam os elementos com os componentes semânticos inorgânico/cultural - a própria parede, a mesa como o aparelho de chá, as lanternas japonesas, etc. Essa oposição semântica é ainda reforçada através de um subtema estritamente visual, o contraste estabelecido entre as modulações de configuração e cor bastante variadas que predominam na vegetação à direita e o tratamento bem mais regular dado à parede à esquerda, com a sua suave e quase uniforme vibração pontilhista.
24. Essa divisão não possui, todavia, um caráter absoluto. Antes, ela estabelece nas duas metades complementares o que poderíamos chamar de duas regências semânticas opositivas, nas quais predominam diferentes ordens categoriais. Essas regências, por sua vez, não são unívocas: à direita, por exemplo, podemos ver um elemento cultural (a cerca), enquanto na área à esquerda, flores e outras plantas introduzem um contraponto semântico equivalente. O fato de várias das plantas à esquerda, colocadas em vasos, possuírem um caráter mais “cultivado” e, inversamente, a cerca à direita possuir um aspecto bastante rústico, parece indicar que o pintor utiliza esses elementos para realizar passagens semânticas: a função de tal artifício é evitar uma separação compositiva que de outro modo tornar-se-ia demasiado rígida. Ele relativiza, não obscurece totalmente a separação entre as duas metades do quadro, que continuam a ser percebidas como semanticamente contrastantes.
25. Nesse contexto, é justamente a figura da mulher que serve de ponte entre as duas metades da obra. Por um lado, ela participa, por sua própria essência, do domínio dos seres naturais à direita do quadro - no entanto, é importante notar que ela parece pouco vinculada à esse domínio, chegando mesmo a dar-lhe as costas. Por outro lado, está vestida com roupas que são semanticamente mais próximas do mundo dos objetos culturais à sua frente, mundo este que é, ele próprio, um índice da atuação humana. Esse papel de mediação aparece eloquentemente expresso no gesto da mulher, que, ordenando o “microcosmo” central da mesa de chá, toca simultaneamente nas flores (um elemento orgânico/natural) e na xícara (um elemento inorgânico/cultural).
26. Se desejarmos, podemos resumir nossa análise com uma interpretação - não isenta de reducionismos - afirmando que Guttmann Bicho nos apresenta no Panneau Decorativo uma espécie de proposição visual na qual o mundo representado é dividido em dois níveis categoriais distintos e contrastantes - um natural e outro cultural -, cada qual com a sua própria identidade e com dignidade e valor equivalentes. Todavia, esses dois níveis, a princípio separados, se interpenetram de uma maneira respeitosa e são inter-relacionados sobretudo pela presença e pela ação do ser humano - no quadro representado pela figura da mulher -, que participa dos dois níveis categoriais distintos que são a base da concepção de mundo expressa pelo pintor nessa obra específica.
27. Gostaríamos de encerrar lembrando que, se no presente texto nos limitamos a demonstrar de que maneira Guttmann Bicho apresenta no quadro analisado um uso eminentemente estrutura do elemento semântico da imagem - do qual podemos encontrar paralelos na articulação de outros elementos da forma -, tal uso não se limita de maneira alguma ao Panneau Decorativo. Diversas outras obras de Bicho apresentam procedimentos análogos, sendo o ciclo de pinturas no Centro Municipal de Saúde Necker Pinto ao qual nos referimos no início do texto talvez a sua realização mais complexa nesse sentido.
28. Por fim, desejaríamos frisar que aqui não fizemos mais do que esboçar alguns aspectos da utilização estrutura do elemento semântico nas imagens estéticas, a qual necessitaria ainda de estudos mais aprofundados. Desde já podemos crer, todavia, que os procedimentos que aqui descrevemos brevemente são bastante frequentes na História da Arte e podem vir a fornecer, no futuro, subsídios importantes para uma compreensão mais adequada de uma grande gama de objetos artísticos nos quais a instância semântica desempenha um papel compositivo fundamental.
Fonte: DezenoveVinte, “Questões semânticas na obra de Guttmann Bicho: uma análise do Panneau Decorativo”, publicado por Arthur Valle, em agosto de 2006. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
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O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS Ernesto Nazareth | DezenoveVinte
1. Galdino Guttmann Bicho (1888-1955) é um nome pouco discutido nos círculos da historiografia de arte brasileira. Usualmente lembrado como uma personalidade forte, irreverente e polêmica, Bicho era filho de pai português e mãe descendente de alemães e nasceu na cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro, mas passou quase toda a infância na região Nordeste brasileira, em cidades como Penedo e Aracaju. Durante sua vida - marcada por memoráveis peripécias, das quais não citaremos aqui mais do que algumas passagens -, travou contato estreito com algumas das mais interessantes figuras da intelectualidade brasileira de inícios do século passado e com toda a plêiade de artistas plásticos que dominou a cena artística fluminense, antes do advento do Modernismo.
2. Nesse contexto, a sua atuação polimorfa - além de pintor, foi ceramista, artista gráfico e arquiteto -, teve considerável importância, especialmente durante as primeiras três décadas do século XX. Desde 1906, seus trabalhos já figuravam na Exposição Geral de Belas Artes, então o maior certame artístico do Brasil. Nessa época, ele ainda se apresentava como discípulo de Auguste Petit, retratista francês radicado no Rio de Janeiro na década de 1860 e muito solicitado desde os tempos do Segundo Reinado. Bicho também frequentou o Liceu de Artes e Ofícios e a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), onde foi aluno livre e manteve contato com mestres decisivos para a sua formação, como Belmiro de Almeida e Eliseu Visconti. Nas Exposições Gerais de Belas Artes, recebeu todas as principais premiações, tendo sido a mais importante, sem dúvida, o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, ganho em 1921 por um quadro chamado Panneau Decorativo, que hoje pertence ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Depois de tal consagração, o artista figurou com frequência como membro do júri da Exposição Geral e teve também uma importante atuação como professor, além de expor em diversas capitais brasileiras.
3. De toda essa atividade, hoje pouco se fala. Na nossa historiografia de arte, Guttmann Bicho habita uma espécie de limbo, cujo aspecto nebuloso as breves e repetitivas referências presentes nos dicionários de artistas plásticos brasileiros fazem pouco para aclarar. Nesse ostracismo, Bicho não está só: junto com ele, se encontra toda uma geração de artistas que, oriundos da ENBA e começando a atuar igualmente na passagem para o século XX, foi praticamente esquecida, obliterada por uma imagem exclusivamente retrógrada e repressora da instituição oficial, forjada mormente pela retórica dos defensores do Modernismo, desejosos de se valorizar, por contraste, como renovadores e libertários. A unilateralidade de tal manobra ideológica já há algum tempo vem sendo relativizada, bem como o que há de insustentável na crença em uma ruptura radical nas artes visuais brasileiras, cujo “divisor de águas” seria a Semana de Arte Moderna de 1922. Hoje, parece óbvio que a produção dos artistas ligados a ENBA nas primeiras décadas do século XX possuía grande diversidade e vitalidade e, ao mesmo tempo que manteve os laços com a produção oitocentista, apontou decididamente para concepções renovadoras do fazer pictórico. No momento, porém, ainda escasseiam os estudos aprofundados sobre tal produção, que permanece sendo de difícil acesso para os eventuais interessados.
4. O presente artigo pretende trazer uma contribuição nesse último sentido, através de um estudo de caso bastante circunscrito: analisando um conjunto de pinturas realizadas por Guttmann Bicho por volta de 1930, para o atual Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Ernesto Nazareth, localizado na Ilha do Governador, Estado do Rio de Janeiro, pretendemos apresentar um exemplo da complexidade estrutural que, via de regra, pode ser encontrada na produção de artistas oriundos da ENBA no início do século passado.
5. Tal ciclo de pinturas, que retrata a ações dos sanitaristas no combate ao surto de febre amarela que assolou o Rio de Janeiro em finais dos anos 1920, apresenta algumas características peculiares. Em primeiro lugar, dentro da obra de Guttmann Bicho, é um dos trabalhos da maturidade do artista que decididamente se afasta do tratamento pontilhista, que fora bastante frequente em sua produção desde a década de 1910, e que se intensificara após a sua estadia na França. É importante salientar tal fato, uma vez que muitos comentaristas privilegiaram quase exclusivamente essa tendência pontilhista na obra do artista, com a intenção, mais ou menos manifesta e nada inocente, de recuperá-lo como uma espécie de “precursor” das tendências modernistas ligadas à afirmação da pura visibilidade pictórica. A obra de Bicho, todavia, não comporta uma tal redução. Nesse sentido, o ciclo de pinturas que analisaremos é um excelente exemplo da maneira como Guttmann Bicho manipulava o aspecto semântico da imagem como elemento fundamental para a estruturação de suas obras.
6. Em segundo lugar, se nas pinturas do posto de saúde Bicho afasta-se da “tentação” abstracionista, por outro lado ele nega, simultaneamente, o caráter alegórico que caracteriza boa parte de pintura decorativa realizada por seus contemporâneos de geração. Bastaria lembrar aqui das decorações para as duas grandes sedes do poder legislativo construídas na então Capital Federal durante os anos 1920 - os atuais Palácio Tiradentes e Palácio Pedro Ernesto -, assinadas por nomes como Lucílio de Albuquerque, João Timotheo da Costa e os irmãos Rodolpho e Carlos Chambelland, repletas de figurações alegóricas e/ou retratando em chave heroicizante personagens e passagens da história brasileira, para nos darmos conta da singularidade das pinturas de Bicho, cujo caráter é bem mais prosaico e sóbrio. Essa divergência é um indicador das particularidades da orientação estética de Bicho e também daquela diversidade da produção pictórica da época, acima aludida. Cremos que a particularidade da obra se deve, igualmente, às condições bastante singulares que envolveram a sua concepção e realização, e às quais gostaríamos de nos referir no que se segue.
7. O CAPS Ernesto Nazareth localiza-se na atual Avenida Paranapuan, número 435, na Freguesia, bairro da Ilha do Governador. Pela ausência de documentação, vários detalhes de sua história são ainda obscuros e demandam maiores investigações. Sabemos que o prédio de dois andares, cuja construção teria alcançado seu término às vésperas da Revolução de 1930, funcionou inicialmente como um centro de saúde - tido como o primeiro da região -, assumindo posteriormente diversas funções: além de servir como posto de vacinação, abrigou originalmente um lactário, e, nas suas mais de sete décadas de atuação, lá funcionaram serviços de pneumologia sanitária, dermatologia, fonoaudiologia, entre outros. Em meados da década de 1990, foi instalado no posto um centro de atendimento destinado ao tratamento de pacientes portadores de distúrbios psicológicos. As fontes disponíveis reiteradamente afirmam, ainda, que a ação de Guttmann Bicho foi fundamental na idealização do prédio.
8. É o que testemunha, por exemplo, o médico Phocion Serpa, que na época da fundação do posto chefiava o Serviço de Saneamento Rural do Estado do Rio de Janeiro e era amigo de Bicho - este, inclusive, retratou Serpa em quadros que figuraram nas Exposições Gerais de 1929 e 1930. Em um texto publicado no Jornal do Commercio, por ocasião da morte de Bicho, em 1955, Serpa recorda que, no final dos anos 1920, o Rio de Janeiro fora assolado por um surto de febre amarela que alarmou as autoridades sanitárias. Assim que a doença se alastrou para Ilha do Governador, Guttmann Bicho - sempre lembrado por seus ideais comunitários e como ferrenho defensor das riquezas naturais da localidade -, se apresentou voluntariamente para trabalhar como “mata-mosquito”, como eram popularmente conhecidos os sanitaristas dedicados à função de eliminar os insetos transmissores da doença. Nesse sentido, sua atuação teria também sido importante, contribuindo para a resolução de conflitos que frequentemente surgiam entre os funcionários da saúde pública e os habitantes locais, submetidos à pressão de uma rigorosa vigilância sanitária. Depois que a doença foi controlada, seria novamente Bicho quem teria a ideia de aproveitar um terreno que fora transferido à Saúde Pública para a construção de um posto de saúde. Como afirma Serpa, “o edifício que se ergueu no local, só se tem, graças ao entusiasmo de Guttmann Bicho, que se desdobrou em mestre de obras, desenhando a planta, em operário, preparando o terreno, furando os cafofos, britando e alinhando pedras, transportando tijolos, amassando e carregando o barro [...] o artista pintou a óleo e ornamentou as paredes do edifício.”
9. Para a decoração do CAPS Ernesto Nazareth, Guttmann Bicho realizou ao todo onze telas: duas delas encontram-se no andar superior e retratam cenas de aleitamento, recordando uma das funções originais do posto de saúde. As outras nove encontram-se no hall de entrada do andar térreo. As pinturas foram realizadas a óleo sobre telas coladas diretamente nas paredes do posto de saúde, seguindo o então usual método do marouflage. Atualmente, o estado de conservação do conjunto é precário: no final da década de 1980, após uma campanha promovida pelas entidades culturais da Ilha do Governador, as pinturas foram tombadas na categoria de bem público municipal, mas seus trabalhos de restauração, até o momento da escrita do presente texto, não foram iniciados.
10. Como pode ser intuído pelas plantas e elevações do Esquema 1, as pinturas do andar térreo cobrem toda a extensão das paredes do lado direito e esquerdo do hall de entrada, começando a partir de cerca de 1,50 metros do chão, sendo limitadas, na parte inferior, por um friso em argamassa decorado com motivos florais e, na parte superior, pelo próprio teto do hall. As pinturas contornam, inclusive, os vãos das portas que dão acesso a consultórios laterais e que individualizam, grosso modo, nove quadros independentes, cada um dos quais apresentando uma cena diferente. Temos, dessa maneira, quatro quadros na parede direita, enquanto na esquerda estão localizados os outros cinco.
Fonte: DezenoveVinte, “O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS Ernesto Nazareth” publicado por Arthur Valle, em 1 de janeiro de 2007. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.
Crédito fotográfico: DezenoveVinte. Consultado pela última vez em 16 de julho de 2025.